quinta-feira, 12 de agosto de 2021

UM RATO DE BIBLIOTECA


 

UM RATO DE BIBLIOTECA

 

Marcelino Barroso de Carvalho

 

No dia 17 de maio do corrente ano, num dos diálogos que costumo entabular com o poeta Elmar Carvalho (sobre uma crônica por ele dedicada à sua irmã Josélia), de repente, ele me envia um áudio e diz que escolheu essa forma para comunicar o falecimento de um grande amigo seu, na cidade de Parnaíba. Quando comecei a ouvir o áudio, minha mente foi “direto” à pessoa de Jorge da Costa Carvalho, a quem conheci em 1978, logo que cheguei a Recife para o mestrado. Elmar confirma minha suspeita e eu passo a fazer algumas considerações sobre o amigo falecido, as quais ele pediu que eu transformasse em uma crônica ou depoimento em sua homenagem. Desafio aceito, por tratar-se de alguém que, por sua excepcional inteligência, sempre esteve presente em minha memória, mesmo estando afastado de mim há muitos anos, por circunstâncias naturais da vida, inclusive a distância geográfica.

Jorge Carvalho vivia nos corredores da velha Faculdade de Direito do Recife (UFPE), pois era o tempo de efervescência das manifestações comandadas, no meio universitário, por Marcos Freire, e, no meio rural, por Dom Hélder Câmara, em face do ambiente político que apontava certo enfraquecimento do regime militar de 1964. Era irrequieto, como seria de esperar-se dos jovens engajados de sua geração. Aqui no Piauí, já nos anos 1980, ainda voltamos a nos ver, mas, depois, perdemos contato. Com a notícia de seu falecimento, supus que estava em intenso sofrimento, para afrontar um dos mais rigorosos preceitos do espiritismo, de que era praticante. Uma perda desse jaez e nessa circunstância destroça a vida de familiares e amigos. Disse, na ocasião, a Elmar: “Não lhe desejo uma reencarnação incerta, mas a vida eterna, na paz do Senhor Deus e do seu Espírito Consolador”.

No final de maio, um grupo de intelectuais parnaibanos se junta ao poeta Elmar e promove a live “Tributo ao Poeta Jorge Carvalho”, uma justa e bela homenagem! Nessa ocasião, pude aquilatar a profundeza dos conhecimentos do homenageado e a fertilidade de sua verve. Nada me causou estranheza, porque Jorge era um autêntico rato-de-biblioteca, ou – o que dá no mesmo – rato-de-livraria. Eu ia à biblioteca da Faculdade praticamente todo dia e às livrarias, várias vezes por semana. Onipresente, Jorge estava sempre numa e noutras. De quando em vez, incursionava pelo Sebo do Brandão (um dos pioneiros do Brasil, no gênero), ao lado da Matriz da Boavista, e lá encontrava o Jorge. Acho que ele me perseguia, pois não me dava trégua. Só nunca o encontrei na Igreja da Conceição, nem na Capela do Colégio Salesiano, onde eu assistia às missas de domingo. Afinal, ele não morava perto de mim.

Na biblioteca da Faculdade, todos os funcionários o conheciam e sabiam que ele tinha fome de livros. Os bibliotecários – Marta, Ângela, Naide e Edmilson – sempre me davam notícia dele: “Jorge esteve/está aqui”. Não sei como um sujeito que andava e falava tão apressado conseguia conquistar tanta gente. Na Livro 7 (Rua 7 de Setembro, Recife), que, do início dos anos 1970 ao final dos 1990, foi a maior livraria do Brasil, era a mesma coisa: todos o conheciam. A genialidade do Tarcísio Pereira, seu proprietário, criou um novo conceito de livraria, a livraria-biblioteca, onde se podia ler os livros sem obrigação de comprar. Para efetividade desse conceito, havia vários espaços de leitura, de conversa e até para uma cervejinha, com um grande acervo de discos, que você podia ouvir e até comprar. Jorge dividia seu tempo entre a Faculdade de Direito do Recife e a Livro 7, onde se reunia a nata da intelectualidade recifense. A grandiosidade dessa livraria foi reconhecida em várias edições do Guiness Book. Depois de fechá-la, por causa da desumanização do centro do Recife, Tarcísio se tornou editor de livros, mas a Covid-19 ceifou sua vida, em janeiro deste ano, aos 73 anos de idade.

Volto ao Jorge Carvalho. Rato-de-biblioteca (ou de livraria), ele, literalmente, comia livros, mas não os comia sozinho; solidário, partilhava-os com os amigos, como testemunha o poeta Elmar Carvalho, destinatário de remessas sucessivas de impressos que ele adquiria com sofreguidão. A fome por livros é fome de conhecimento; é uma fome que torna a pessoa irrequieta, ansiosa. Nunca vi saciedade no Jorge Carvalho e pensei, sinceramente, que ele morreria de fome, fome de livros, fome de conhecimento, fome de saber. Talvez tenha sido isso mesmo, porque o silencio dos sábios é, não raro, sintoma de um vazio que somente se preenche com mais-saber. Se eu fosse um poeta, teceria uns versos em sua memória. Desprovido, porém, de estro, socorro-me de Elmar Carvalho, evocando a Recife que Jorge tanto amava: “seus lampadários / multicores / ilusórios e utópicos / como os primeiros amores / cheios de mágoas: / caleidoscópios / aquários” (Rosa dos ventos gerais, p. 135).   

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