domingo, 26 de fevereiro de 2023

Seleta Piauiense - Elias Paz e Silva

Fonte: Google

 

ouço um clamor dentro

 

Elias Paz e Silva (1963)

 

ouço um clamor dentro

de mim

um rio fluindo por

entre

ossos veias pelos

 

lágrimas são sorrisos

há cores

no arco-íris na existência

harmonia sem fim brota enfim

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Presidentes da UBE-PI: ELMAR CARVALHO


Semanalmente traremos informações e curiosidades sobre as pessoas ilustres que passaram pela presidência da União Brasileira de Escritores do Piauí (Ube-pi). ✨

O terceiro presidente da UBE-PI é o escritor José Elmar de Melo Carvalho. Nasceu em 09 de abril de 1956, na cidade de Campo Maior. 

Poeta, contista, cronista, romancista e ensaísta, escreveu diversas obras, como os livros Noturno de Oeiras e Rosa dos ventos Gerais. 📚


Você já o conhecia ?

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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

CORES, FLORES E DOLORES

Fonte: Google

                             

CORES, FLORES E DOLORES


Elmar Carvalho


Nesta manhã, a caminho do fórum, reparei num pé de lírio, nascido no pequeno jardim de uma casa simples, de esquina. A copa da pequena árvore se transformou em puras flores, de alvura imaculada. Flores níveas, pequenas, de quatro pétalas. Em seguida, perlonguei o muro da casa do advogado Gilberto Nunes, recentemente falecido.

É quase uma chácara, em pleno centro comercial e histórico de Regeneração. A residência fica no centro do terreno, do tamanho de um quarteirão, rodeada de árvores diversas, várias frutíferas, entre as quais um pernalta e esgalhado jenipapeiro; algumas, grandes e copadas. Sobre o muro vetusto, de tijolos aparentes, se debruçam arbustos ornamentais, a derramar suas belas flores, de coloração e feitios diversos, como um presente aos transeuntes, que muitas vezes sequer reparam na beleza desse pequeno jardim botânico, no coração da cidade.

Essa vivenda, referta de plantas ornamentais, como madressilvas, buganvílias, margaridas e flamboyants é uma catilinária florida e contundente ao poema de Cesáreo Verde, utilitarista, a cantar com entusiasmo as árvores exclusivamente frutíferas da quinta. Os lírios miúdos me fizeram lembrar os grandes lírios de São José, que conheci na minha meninice, em José de Freitas.

De suas grandes taças era exalado um suave, porém embriagante perfume, que deixava siderados os poetas simbolistas, a cometerem seus versos melódicos, sugestivos, cheios de brancuras liriais, de níveas brancuras nebulosas, que lhes faziam sonhar com as peles alvas de monjas ciliciadas, e com castas donzelas inalcançáveis em suas torres ebúrneas, ou com fogosas damas, na consumição de desejos interditos.

Os lírios me fizeram lembrar o caramanchão da casa do professor Lima Couto, em Parnaíba, com quem tantas vezes conversei sobre poesia, cultura e educação, em minha juventude sonhadora. O velho mestre era um poeta bissexto, admirador de Longfellow, cujos versos traduzira de forma admirável, pois fora professor de inglês. Fora também livreiro e diretor de colégio público. Admirava, creio, o ex-governador Chagas Rodrigues, sobretudo porque ele, numa administração avançada para os padrões da época, com a implantação do planejamento e da criação de empresas públicas, estadualizara o Ginásio Parnaibano.

Os lírios, as flores e os cheiros me fizeram viajar no tempo e no espaço, e eu retornei ao país de minha infância, e senti o cheiro forte dos alecrins pisados na procissão do Senhor dos Passos, em que eu me comovi demasiadamente com o seu sofrimento, com o sofrimento de sua mãe, na cerimônia do encontro, em que a púrpura e o roxo das vestes era a própria exteriorização dos corações lacerados, das chagas vivas das lanças e dos cravos.  

5 de maio de 2010

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Seleta Piauiense - Ednólia Fontenele

 

Fonte: Google/Edilson Morais Brito

IMPIAUIDOSAMENTE


Ednólia Fontenele (1960) 

 

nesta cama

não haverá poesia

vendo-te distante

terra minha.

recordar o sabor

do arroz "maria isabel"

da paçoca com carne-de-sol

leva-me até "o manuelzinho"

lá em Campo Maior.

nesta noite

não sonharei,

ao fechar os olhos

não enxerguei o Igaraçu

estender seu braço

para abraçar a ilha grande

de Santa Isabel

entre jovens que comem

casquinhos de caranguejo

lá no cabana

tão lentamente

quase imperceptível passar

buscando em seu próprio leito

a cumplicidade para um coito

com as águas do mar.  

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Ao Dr Deusdedit Moita

Fonte: Google


 

Ao Dr Deusdedit Moita


Carlos Henriques de Araújo

Memorialista, cronista e poeta


Trinta dias já se passaram, mas uma dor “profunda” continua entre seus familiares e amigos. A lembrança de sua integridade, sua lealdade, seu compromisso com a justiça, sua dedicação para com os familiares, amigos e todas as pessoas que tiveram o privilegio de conviver com ele. 

O corpo físico é a síntese do universo que funciona em harmonia com o Divino. Quando o homem se conscientiza dos seus deveres para com a natureza, o corpo humano e o espiritual se interligam numa harmonia divina, do amor, da felicidade e da alegria  fruto dessa união.

Todos nós vamos morrer um dia. Nossa passagem pela terra, como o próprio nome diz, é passageira. Estamos aqui na terra para uma experiência como seres humanos, pois somos espírito, fragmentos do Espírito maior – Deus. Muitas pessoas estiveram na missa de corpo presente, no funeral e na missa do sétimo dia para lhe dar seu último adeus e cumprimentar seus familiares. 

Como odontólogo, professor e escritor ele nos deixa uma obra maravilhosa. Como pessoa, pai, marido, sogro e amigo nos deixa uma lembrança carinhosa e uma saudade infinita.

Ele escreveu  sete livros: Atirando a esmo; Crônicas nordestina; Acertando na mosca; Crônicas agudas; Estórias e fatos; O charlatão diplomado; O resto depois de tudo. Todos compostos de crônicas, pequenos contos, casos e estórias engraçadas, retratando a vida no interior, na fazenda com gente humilde no seu dia a dia. A leitura de seus livros me inspiraram a escrever também. 

A história do Dr Deusdedit fica eternizada aqui na terra pela lembrança dos seus alunos na universidade, seus clientes no consultório odontológico, seus familiares, seus amigos, e nos seus livros. Sua história  aqui na terra termina, mas uma outra começa, com nova realidade, em outra dimensão junto ao nosso criador. 

O ser humano é um “universo” único no qual, seus elementos constituem a verdadeira harmonia do conjunto de fatores da nossa realidade. A mente humana é a gerente da nossa vontade, dela emanam nossos pensamentos e ideias e, consequentemente, nossas atitudes e ações. E o Dr Deusdedit foi um ícone nesse universo.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Des. João Menezes, um simpático amigo

Fonte: Google

 

Des. João Menezes, um simpático amigo

 

Elmar Carvalho

 

Após muitos anos de serviço público, ingressei na magistratura em 20 de dezembro de 1997. Em julho de 1998, vim a conhecer o Des. João Menezes mais de perto. Estava eu à porta de uma das casas da Colônia de Férias, quando ele ia passando em direção à casa em que estava hospedado.  Me cumprimentou, e entabulamos rápida conversa. Diria que “nossos santos bateram”, como se costuma dizer. De imediato, notei que ele era uma pessoa cordial, afável e muito simpática.

Nas oportunidades subsequentes em que nos encontrávamos sempre lhe apreciava a mesma cordialidade e simpatia. Ficou sabendo que eu era escritor e poeta, e parecia ter uma genuína alegria com as minhas eventuais conquistas nessa seara. Diria mesmo que ele parecia ter certo orgulho disso. Fiquei feliz quando ele tomou posse como presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, cargo que exerceu de 2002 até o dia 07 de novembro de 2003, quando se aposentou, no dia em que completava 70 anos de vida.

Creio que no final de 2010, quando eu já havia alcançado mais de 35 anos de serviço público, fui ao gabinete do Des. Edvaldo Moura, então presidente do TJPI, para resolver assunto relacionado com meu pedido de “abono permanência”; ali encontrei o Des. João Menezes, que me acolheu com a cordialidade e simpatia de sempre. Nesse encontro, aconteceu um episódio jocoso, diria mesmo anedótico, de que eu e ele fomos protagonistas. Para não repetir o que já escrevi alhures, transcrevo o que consta em meu e-book Diário Incontínuo, disponível no site da Amazon:

“Fui ao Tribunal de Justiça, na sexta-feira, tratar de vários assuntos, um dos quais de meu interesse funcional. Ao entrar no gabinete da presidência, além do presidente Edvaldo Moura, encontrei o des. João Menezes da Silva, que também presidiu a corte de Justiça do Piauí. Trata-se de cidadão afável, educado, e que sempre me foi muito simpático, desde o meu início na magistratura.

Disse-lhe que estava requerendo meu abono previdenciário, em virtude de minha permanência na atividade. Há vários meses completei tempo de serviço e idade para aposentar-me, uma vez que comecei a trabalhar aos dezenove anos, quando ingressei na ECT e posteriormente na extinta SUNAB, sem sofrer a interrupção de um dia sequer, em minha prestação laboral.

O des. João Menezes, a sorrir com gosto, ao saber de minha pretensão, e sabendo que também me dedico às letras e à cultura, indagou-me por que eu desejava a gratificação, uma vez que eu, por ser poeta, deveria viver de brisa e de coisas etéreas e espirituais, e não de bens financeiros e econômicos. Respondi-lhe que o poeta poderia dispensar as coisas materiais, mas que a sua família precisava de alimentos e outros bens concretos, inclusive dinheiro. Por fim, expliquei ao bom magistrado João Menezes, que era o juiz que sustentava o poeta, encarnado na mesma pessoa física, que sou eu mesmo.

Dizem que o intelectual Eduardo Prado, ao contemplar verdejante campo, teria perguntado a sua mulher Alice, em criativo jogo de palavras: “De que ali se vive?” Conta a lenda, que ela, imediatamente, teria respondido com outro trocadilho em torno do nome do marido: “É do ar do prado”. Não podendo eu, ao contrário de Alice, mesmo cultivando as coisas espirituais, viver apenas de brisa, espero seja o meu abono deferido.”

Em 20 de dezembro de 2014 me aposentei, e no ano seguinte publiquei o meu livro Confissões de um juiz, no qual, de forma resumida, narrei o caso anedótico acima. Dei um exemplar ao caro amigo Des. João Menezes, advertindo-o de que nele se encontrava o nosso episódio hilário. Algumas vezes, recordávamos esse fato, e ele ria com muito gosto, e fazia comentários a respeito, de forma sempre bem-humorada.

Algumas vezes, ele me contou fatos de sua vida de juiz. Por essas histórias pude perceber que ele tinha uma inteligência emocional arguta e uma sabedoria de vida apropriada para resolver as questões, que lhe eram submetidas, sem necessidade de firulas da hermenêutica, de sibilinas doutrinas ou de altas teses doutrinárias. Resolvia esses imbróglios com o seu bom-senso e alto senso de justiça e de querer, realmente, fazer Justiça.

Agora, que meus pais se foram, que muitos de meus mais estimados amigos já estão partindo para o “outro lado do mistério”, começo a achar mais verde e mais bonita a outra margem do rio, e já começo a preparar o meu óbolo para o velho barqueiro Caronte. E os encontrarei numa das moradas do Pai, de que nos falou Jesus.    

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Seleta Piauiense - Rogério Newton

 

Fonte: Google

A outra face

 

Rogério Newton (1959)

 

quando nasci

meu pai e minha mãe

untaram algodão de palavras


passaram no meu peito

e na minha fronte

sopraram búzios nos ouvidos


na rua de pedra

meninos lenhadores tangiam jumentos

chocalhos soavam como a flauta de khrishna


o riacho borbulhava entre as pedras

um anjo barroco sertanejo sorria


os passos

do meu pai e da minha mãe

ressoam nesta casa


por isso choro

de alegria


tenho o coração em chamas

as mãos vazias


toda manhã

bebo gotas de orvalho


não sei por que teimas

em lembrar a cozinha

da casa da infância


o céu estrelado

acima das paredes ocre

das carnaúbas


a cinza fria recolhida

por mãos negras


sia domingas, baziliza

sancha, luzia

maria do ôi cego, das dores


impossível esquecer essa lembrança

quente como os doces

de minha mãe no fogão de lenha


o pote de barro

apara água da chuva

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Depoimento sobre Alcenor Candeira Filho

Alcenor em charge de Fernando di Castro

 

Depoimento sobre Alcenor Candeira Filho

 

Elmar Carvalho


Anos atrás o poeta e escritor Alcenor Candeira Filho escreveu uma série de depoimentos sobre figuras ilustres de Parnaíba, em vários setores de atividade. Em razão disso, escrevi um depoimento sobre ele, meu amigo há mais de quatro décadas. No dia em que ele faz 76 anos de vida, achei por bem republicá-lo, como uma homenagem a tudo que ele fez em prol do serviço público, da educação e da literatura.

 

1

 

Quando fui deixar vários exemplares da obra Novas Páginas Parnaibanas, enviados pelo seu autor, para serem distribuídos aos acadêmicos e visitantes da Academia Piauiense de Letras, o seu presidente, o jurista e escritor Nelson Nery Costa, consultou-me sobre a conveniência de lançá-los em evento de nosso sodalício, o que teve a minha pronta concordância e aplauso.

 

Assim, neste sábado, véspera do segundo turno da eleição presidencial, o livro foi lançado em nosso auditório, juntamente com os seguintes: O cantinho do poeta, de Jonas Piauí, por mim apresentado e prefaciado, Ermelinda, de Lili Castelo Branco, que teve a excelente apresentação do seu filho (e sucessor na APL) Heitor Castelo Branco Filho, e Teoria e realidade da desobediência civil, apresentado de forma elucidativa por seu autor, Nelson Nery Costa. Ao apresentar Novas páginas parnaibanas, disse que iria fazer uma espécie de depoimento e crônica memorialística sobre Alcenor Candeira Filho, porquanto nossa amizade perfaz quatro décadas. Tentarei, a seguir, recompor o meu discurso, baseado no roteiro mnemônico, a que me ative.

 

Tendo meu pai assumido a chefia da Empresa de Correios e Telégrafos em Parnaíba, fomos residir nessa cidade em junho de 1975, quando eu tinha 19 anos de idade. Em setembro desse ano fui morar em Teresina, para ingressar na ECT, mas no começo de 1977 retornei, em virtude de aprovação em vestibular, para fazer Administração de Empresas na Universidade Federal do Piauí, cujo curso era ministrado exclusivamente no Campus Ministro Reis Velloso, em Parnaíba.

 

Nessa época, quando o poeta Alcenor Candeira Filho foi aos Correios, para postar ou receber correspondência, um carteiro, sabedor de minha condição de literato, me chamou para conhecê-lo. Mas eu, um tanto retraído, algo tímido nos contatos iniciais, preferi vê-lo à distância, sem me dar a conhecer. Muitos anos depois, soube que ele lia os poemas de feição modernista que eu publicava nos jornais Folha do Litoral e Norte do Piauí, e um pouco mais tarde no alternativo Inovação.

 

O postalista, cujo nome não consigo recordar, disse-me, com postura algo confidencial, como se revelasse um segredo ou mistério, que Alcenor se formara em Direito para tentar reabrir o processo criminal sobre a morte trágica de seu pai, para dessa forma conseguir a condenação dos responsáveis pelo fato delituoso. Contudo, em livro que posteriormente escreveu sobre o assunto, o poeta afirmou jamais ter alimentado esse objetivo.

 

Ainda cheguei a ver um opúsculo, que alguém dera a meu pai, o qual continha a tese de defesa do brilhante causídico, jurista e escritor Celso Barros Coelho, que apesar disso se tornou amigo do poeta, tendo ambos sido colegas como procuradores federais (lotados no INSS), no magistério superior (UFPI) e como membros da Academia Piauiense de Letras (APL). O pequeno livro, em virtude de mudanças residenciais, terminou sendo extraviado, o que muito lamento, pois hoje poderia ser uma relíquia de minha biblioteca, pela raridade, e por ser um documento referente a um fato rumoroso do Piauí, e que abalou Parnaíba, no último trimestre do ano de 1959.

 

No começo de 1977 fiz amizade com Paulo de Athayde Couto, meu colega do curso de Administração de Empresas, filho do professor Lima Couto, poeta e erudito, que, para gáudio meu, admirava meus poemas, e com quem conversei tantas vezes, sobre poesia e outros assuntos culturais, debaixo do caramanchão do jardim de seu sobrado. Lima Couto admirava os poetas Abgar Renault, Longfellow e Tagore, dos quais recitava de memória alguns versos.

 

Paulo Couto, também poeta, começou por essa época a publicar crônicas no jornal Folha do Litoral. Em sua companhia, fui algumas vezes à casa do Alcenor, datando daí a nossa amizade, que se mantém inalterável e sólida, através do respeito e da admiração recíprocos, regada a muita conversa e eventuais goles de cerveja. O Paulo e eu participamos dos seguintes livros: Salada Seleta (prefaciado por Alcenor), Galopando, Em três tempos e Poesia do Campus (editado em minha gestão no Diretório Acadêmico 3 de Março).

 

2

 

Nas vezes em que estive na casa de Alcenor, via na parede o retrato em preto e branco de seu pai, cuja essência biográfica e morte trágica já conhecia, mas nunca lhe indaguei a respeito, como se isso fosse um tabu ou assunto interdito, ao menos para mim. Porém, como no poema drummondiano, sabia que não se tratava apenas de uma fotografia na parede, mas de um símbolo do amor e da saudade, que certamente lhe pungiam a alma de poeta e de filho, como bem se pode constatar na leitura do poema elegíaco Passando em revista, cuja estrofe inicial transcrevo:

 

Passando em revista

o tempo da noite

vejo que meu pai

Alcenor Rodrigues Candeira

(trucidado em 59

pela família Cavalcante)

continua na parede

sem cabelos brancos

como eu não queria.

 

Tampouco tratei desse assunto com Canindé Correia, meu compadre e amigo há quarenta anos, casado com Tânia, sua irmã caçula, cuja mão o velho Alcenor segurava, na hora fatídica, no momento em que os sinos dobravam, não a finados, mas assinalando o instante final para a saída da procissão de Nossa Senhora das Graças, a padroeira da cidade; dobrava ele, no dia 11 de outubro de 1959, às cinco horas da tarde, a última esquina em direção à catedral e a curva fatal de seu destino. Muitos anos depois, o meu parente Geraldinho (Geraldo Majella Nunes de Carvalho) contou-me que seu pai, o magistrado Geraldo Majella de Carvalho, meu professor no curso de Direito, de forma algo enigmática o levou a ver a lápide do túmulo de Alcenor, em que ele leu o epitáfio: “Exemplo de honestidade, coragem e lealdade. ‘... E porque vivo ninguém o venceria covardemente o mataram.’”

 

Nunca seu pai lhe explicou a razão dessa visita inesperada e um tanto misteriosa em seu objetivo ao Cemitério da Igualdade. Nesse velho campo santo, no qual talvez tenha se inspirado H. Dobal, para fazer um poema homônimo, integrante de A Serra das Confusões, foi sepultada a minha prima Verônica Melo, falecida no auge de sua beleza e juventude, em virtude de um acidente com um fogareiro a álcool, cujo túmulo descobri por acaso, se é que existe o que chamamos acaso; a poetisa Luíza Amélia de Queiroz, de cujo mausoléu rebentou magnífica e copada gameleira, que partiu e retorceu a lápide, como para lhe atender o pedido expresso em versos, de que desejava repousar à sombra dessa árvore; o professor Amstein, engenheiro suíço, alto, de barba e cabelos ruivos, de muita verve e imaginação, quase um mitômano, que, no dizer de Renato Castelo Branco, era “barulhento, inconsequente e brincalhão”, e que já chegara a Parnaíba “montado em uma meia-verdade”; minha irmã Josélia, morta quando mal completara 15 anos, no apogeu de sua beleza e contagiante simpatia, em cujo jazigo meu pai fez afixar uma placa com os versos imortais de Da Costa e Silva: “Saudade – asa de dor do pensamento!”

 

Mas a Igualdade do nome é um tanto desmentida porque ao lado de sepulcros singelos estão os suntuosos mausoléus de (outrora) poderosos industriais, políticos e empresários.

 

3

 

Transposta a digressão do parágrafo acima, reponho a locomotiva e o leitmotiv desta crônica memorialística e depoimento nos trilhos. Ao longo desses quarenta anos de amizade, eu e o Alcenor Candeira Filho participamos de muitos projetos literários em comum. À guisa de exemplo, sem consulta a livros e documentos, fomos partícipes de várias coletâneas e antologias, entre as quais cito: Poemágico – a nova alquimia, Poemarít(i)mos, A Poesia Piauiense no Século XX (org. Assis Brasil), Baião de Todos (org. Cineas Santos) e Antologia dos Poetas Piauienses (org. Wilson Carvalho Gonçalves). Fomos coautores de A Poesia Parnaibana e Parnárias – poemas sobre Parnaíba, dos quais também foram coautores Adrião José Neto (do primeiro) e Inácio Marinheiro (do segundo). Fomos ambos colaboradores dos jornais alternativos Inovação, Querela e Abertura, que circularam a partir da segunda metade da década de 1970.

 

Na seara da poesia e da prosa, arrolo os seguintes livros de sua autoria: Sombras entre ruínas, Rosas e pedras, A insônia da cidade, Antologia poética, Teoria do texto e outros poemas, Parnaíba: meu universo, Das formas de influência na criação poética, Aspectos da Literatura Piauiense, Literatura Piauiense no Vestibular, Memorial da cidade amiga e O crime da Praça da Graça. Nestes livros estão estampados belos poemas da literatura piauienses e fulgurantes textos da melhor prosa. Muitos analisam e elucidam aspectos da mais alta relevância de nossa arte literária.

 

O certo é que, em resumo, sua prosa límpida, objetiva, concisa, de bem delineada temática e redação, foi sempre admirável. E sempre lhe aplaudi os poemas, de diferentes matizes, assuntos e época, seja o mais singelo ou o mais criativo, o mais discursivo ou o de maior plasticidade, seja o repassado de telurismo, a cantar a beleza arquitetônica ou natural de Parnaíba, seja o que retrata figuras populares, dramáticas ou jocosas, ou ainda os que denunciam as mazelas sociais e da política. Para não falar de suas intertextualidades inventivas e de seus instigantes metapoemas.

 

4

 

Não tive a honra de ser seu aluno. Contudo, ouvi vários depoimentos sobre sua performance como professor, sobretudo de literatura, no ensino médio. Fátima, minha mulher, foi sua aluna, e sempre teceu entusiasmados elogios às suas aulas, ao modo como ele sabia prender a atenção do discípulo. Sem dúvida pode ele ser considerado um dos melhores mestres dessa disciplina, tanto por ser um cultor das letras, como por ser um leitor voraz de obras literárias e de teoria do texto e da literatura. Posso, assim, afirmar que muitas de suas aulas eram verdadeiras conferências, ele que é um esmerado conferencista e tribuno, tanto pelo conteúdo, quanto pelo timbre, dicção e cadência vocal. Sem medo de errar, posso dizer que ele foi magistral no magistério, que sempre desempenhou com zelo, vocação e entusiasmo.

 

Já tive ocasião de reconhecer que ele foi pioneiro na imprensa alternativa piauiense, sobretudo na que utilizava o mimeógrafo, na qualidade de colaborador e de um dos idealizadores do jornal O Linguinha, cujo número inaugural foi lançado na noite que marcou a passagem de 1971 para 1972. Também afirmei o seu pioneirismo na publicação de livros mimeografados, no formato “apostila”, ao publicar os livros Sombras entre ruínas (1975) e Rosas e pedras (1976), com belos poemas elegíacos, em que se percebia certo pessimismo e algum timbre ou ressonância do simbolismo, sem embargo de sua modernidade e de denúncias socais e políticas, que atacavam as mazelas de então e de sempre. Publiquei essas afirmativas em sítios internéticos e nunca recebi contestação, razão pela qual as reitero agora.

 

Por oportuno e para não ficar me repetindo ou chovendo no molhado, acho melhor trazer à colação o que já disse alhures:

 

Durante quase todo o século XX, até meados da década de 70, a poesia feita no Piauí era um amálgama do simbolismo, do parnasianismo e, principalmente, do romantismo, com a predominância de temáticas elegíacas e, sobretudo, líricas, povoadas de amadas intocáveis, inatingíveis, com os poetas chorando essas paixões interditas. Posso afirmar, sem medo de erro, que o modernismo chegou muito tardiamente ao nosso Estado, mais precisamente na segunda metade da década de setenta (ao menos enquanto sistema literário), com a chamada geração mimeógrafo, geração 70 ou ainda geração pós-69, não importa que nome se lhe queira dar. Chegou para ficar, revisitando todos os ismos e todos os modernismos de 1922 até a contemporaneidade. Tanto isso é verdade, que já tive oportunidade de afirmar no meu opúsculo Aspectos da Literatura Parnaibana:

 

“É preciso que se diga e agora vou dizer, sem vaidade, mas também sem falsa modéstia: antes de Alcenor Candeira Filho, com seus dois livros (“Sombra entre Ruínas” e “Rosas e Pedras”), impressos em mimeógrafo, pioneiros, inclusive em termos de Piauí, da utilização desse equipamento na confecção de livros, que passou a designar uma geração literária, deste escriba e do poeta V. de Araújo, ambos com poemas publicados, ainda nos idos de 1977/1978, nas páginas de “Folha do Litoral”, o que se viam em Parnaíba eram poemas obsoletos e formalmente ultrapassados, sobretudo sonetos de cunho parnasiano, escola já destroçada em 1922, pelo movimento dos modernistas, mas cujos influxos ainda não haviam chegado a Parnaíba, ao menos publicamente, através de livros e jornais.”

 

5

 

Na qualidade de homem e de crítico literário sempre procurou ser franco e veraz, e nunca gostou de fazer concessões espúrias e nem elogios imerecidos. Por isso mesmo não faz promessas que não queira ou possa cumprir. Tanto isso é verdade (e conto isso apenas para ilustrar o seu caráter), que o confrade Homero Castelo Branco, com seu jeito bonachão, relata, com muita verve e graça, uma anedota verídica a seu respeito. Numa disputa eleitoral da Academia Piauiense, ele pediu, por telefone, o voto do poeta Alcenor. Este, com bons modos, mas com a sua reconhecida franqueza, respondeu-lhe que já estava comprometido comigo. Homero, de plano, lhe retrucou, com seu notável senso de humor e presença de espírito: “Pois faz muito bem! Se eu também fosse acadêmico, votaria era no Elmar”. Na eleição seguinte, o Alcenor e eu tivemos a satisfação e honra de lhe sufragar o nome vitorioso.

 

Como servidor público foi exemplar, ao cumprir os seus deveres com competência e responsabilidade, tanto nos cargos efetivos, como nos de confiança. Procurador federal, foi agente do INSS em Parnaíba por vários anos, sem que se ouvisse o menor ruído que pudesse desabonar sua conduta; antes, pelo contrário. Foi secretário da Educação e de Gestão do município de Parnaíba por doze anos, tendo exercido esses dois cargos com probidade e correção administrativa.

 

Fora da literatura, consolidamos nossa amizade e admiração recíprocas, que já remontam a quatro décadas, através de uma boa conversa e de uns bons goles de cerveja, em saudáveis libações etílicas, como diria o saudoso “confrade” Pereira, ou melhor, o imortal Pacamão, do livro de Assis Brasil e de meus PoeMitos da Parnaíba. E ainda por cima, pertencemos à nação rubro-negra, tendo os amigos Gervásio Castro e Fernando di Castro, irmãos e flamenguistas, nos feito belas charges, em que envergamos a camisa e o glorioso escudo do Flamengo.

 

Fomos motociclistas por muitos anos, de forma que não posso esquecer os meus verdes anos parnaibanos, em que os meus vastos e bastos cabelos ondulados farfalhavam ao vento, a percorrer em minha moto uivante as ruas noturnas de Parnaíba, como um jovem lobisomem que então eu era. Ó tempos! Ó saudades imortais de um tempo extinto, mas sempre ressuscitado na cornucópia incessante da memória.

 

Ao fazer esta espécie de crônica memorialística e depoimento sobre Alcenor Candeira Filho, tive o desiderato de prestar uma homenagem e um reconhecimento a um notável intelectual, professor, poeta e escritor que, com honestidade, sem ciúmes e sem inveja, sempre reconheceu, louvou e exaltou os verdadeiros valores da literatura parnaibana e piauiense, tanto na tribuna de uma sala de aula e dos auditórios, como através de seus livros e escritos avulsos, publicados em periódicos e na internet.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Oeiras na Independência do Brasil

Fonte: Google


Oeiras na Independência do Brasil

 

Reginaldo Miranda [1]

 

Com a precipitação dos acontecimentos em Parnaíba, o sargento-mor[2] João José da Cunha Fidié para ali dirige-se com sua tropa, a fim de abafar os sediciosos que conspiravam contra os interesses de Portugal. Desde a Revolução do Porto, com convocação e instalação das Cortes Constituintes de Lisboa, grande parte da sociedade lusitana defendia abertamente o retorno da família Real, que se encontrava residindo no Rio de Janeiro e o rebaixamento do reino brasileiro à condição de colônia portuguesa. Contra essa situação levantou-se a sociedade brasileira. Não era mais possível subjugar-nos novamente à condição de colônia, pois a nossa sociedade estava amadurecida, consciente de seu poder, não mais aceitando essa humilhação. Foi com esse propósito que a câmara municipal de Parnaíba proclamou solenemente sua adesão à independência e união com Portugal. Mas o que significava essa aparente contradição? Na verdade, não havia contradição. O que proclamaram os parnaibanos foi a permanência do status quo brasileiro: reino livre, independente e por livre vontade, unido a Portugal. Em outras palavras, a manutenção do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, invenção recente de D. João VI.

 

Contudo, essa manifestação contrariava os interesses colonialistas dos constituintes de Portugal, que nos queriam reduzir à situação de colônia e explorar nossos recursos naturais de forma predatória, escravizando-nos. Por essa razão, para abafar essas manifestações, marchou o comandante das armas para Parnaíba, obrigando a retirada dos conspiradores para o Ceará e reduzindo aquela vila à obediência. No entanto, os fatos que se sucederam naquela vila litorânea, as idas e vindas, os altos e baixos, escapam aos objetivos desta solenidade. Aqui, agora, estamos para dizer da participação de Oeiras, a velha capital, nesses sucessos da Independência.

 

Desde que o major Fidié deixara a cidade de Oeiras, a situação modificara-se sensivelmente. Aqueles em que ele mais confiava foram os primeiros que se levantaram em armas para depô-lo e proclamar nossa solene e completa independência do reino de Portugal. Fidié deixara Oeiras em 13 de novembro de 1822, à frente do Batalhão de Primeira Linha e da tropa miliciana. Simbolicamente, trinta dias depois, em 13 de dezembro – Dia de Santa Luzia – seis homens encapuzados invadiram a Casa da Pólvora, surpreendendo os guardas, tomando-lhes as armas e lhes aplicando algumas chibatadas, sem que ninguém os socorresse. Em torno do episódio houve devassa, mas nada foi apurado, sendo o silêncio bastante eloquente. Oeiras tramava. Oeiras conspirava. No silêncio da noite, urdia-se a tessitura da Independência.

 

Esse silêncio só era quebrado pelos sermões de um padre pró-lusitano, vigário colado José Joaquim Monteiro de Carvalho e Oliveira, que pressentia os fatos e fazia alardes, chegando a firmar uma representação, em 31 de dezembro, pedindo a convocação de um conselho civil e militar para apurar assunto muito sério, segundo ele. Reunido o conselho no dia seguinte, com a presença das principais autoridades civis e militares, escusou-se o vigário de indicar nomes alegando que essa indiscrição seria incompatível com seu ministério sagrado. No entanto, depois de votação secreta, deliberou-se pela prisão em suas próprias casas, com sentinela à vista, por conspiração, de José de Sousa Coelho de Faria, José Félix Barbosa, Lourenço de Araújo Barbosa, João Barbosa de Freitas e tenente Ignacio Gomes Correia. Nenhum membro da elite dominante, sendo essa uma mera satisfação momentânea, para continuarem a tramar com segurança.

 

Nessa altura dos acontecimentos chega a Oeiras um correio de Jacobina, na Bahia. Era 11 de janeiro de 1823. Foi quando, depois de quatro meses, as autoridades locais tomaram conhecimento do Grito do Ipiranga e da aclamação de D. Pedro como Imperador Constitucional do Brasil. A situação mudava de figura. Uma portaria e proclamações do novo governo imperial brasileiro noticiava os fatos e os conclamava à adesão. O general Labatut informava que, por ordem do novo imperador brasileiro, se encontrava à frente de um grande exército, sitiando a cidade da Bahia; que no último dia 8 de novembro, patriotas baianos, de armas à mão, haviam mostrado seu valor aos portugueses, matando em combate mais de 200 e ferindo 300, além de fazerem muitos prisioneiros; informava dos reforços que esperava e assegurava-lhes que tão logo subjugasse os lusitanos de Salvador marcharia sobre o Piauí, para ajudar os patriotas locais. Essa notícia coincidia com um levante do destacamento militar da vila de Marvão, hoje Castelo do Piauí, que aderira à Independência. O vale do Crateús ameaçava a capital.

 

Mesmo diante desses fatos, a temerosa e vacilante Junta de Governo do Piauí, avisou ao general Labatut, pelo mesmo estafeta, que permanecia fiel ao governo de Lisboa. E toma medidas tendentes a evitar ser surpreendida pela invasão de patriotas pela divisa cearense. Contudo, sabiam que sua causa estava severamente ameaçada e perdendo apoios. Não sabiam mais em quem confiar. Por essa razão, o ouvidor da comarca, Dr. Francisco Zuzarte Mendes Barreto pede licença para retornar a Portugal, o que foi negado pela Junta de Governo. Era desconfortável a situação para os defensores da causa lusitana.

 

Estavam as coisas nesses termos quando um alvoroço tomou conta da cidade de Oeiras, na manhã de 24 de janeiro de 1823. A cidade acordara novidadesca, com movimento de tropas no largo da matriz. Fugiram na madrugada alguns membros da Junta. Novo governo se instalava. Também, novo sistema político, nova realidade. Estavam completamente desligados de Lisboa e para sempre unidos politicamente ao Rio de Janeiro. Ao romper do dia era grande a agitação e todos buscavam saber das novidades, entender o que realmente acontecia. Os relatos ainda eram desencontrados e somente aos poucos as peças iam se encaixando.

 

De fato, seguindo um plano adredemente traçado, na madrugada daquele dia os patriotas que tramavam em silêncio, derrubaram o governo pró-lusitano e assumiram as rédeas da província. Lideraram o levante o brigadeiro Manuel de Sousa Martins e seu irmão tenente-coronel Joaquim de Sousa Martins, que ficara no comando da força, como delegado de Fidié. Naquela madrugada, Raimundo de Sousa Martins e Francisco Manuel de Araújo Costa, rebelaram o Regimento de Cavalaria n.º 1; Manuel Pinheiro de Miranda Osório e José de Sousa Martins, assaltaram o Quartel de Linha; Ignácio Francisco de Araújo Costa e José Martins de Sousa, cada uma por sua parte, cercaram as residências e prenderam dois comandantes militares pró-lusitanos[3]; Manuel Clementino de Sousa Martins tomou a Casa da Pólvora. Enquanto esses fatos se desenrolavam, faziam patrulha pela cidade, com seu regimento de cavalaria rebelado, os majores Bernardo Antônio Saraiva e Honorato José de Moraes Rego, para apoiarem onde se fizesse necessário.

 

Enfim, assim se desenrolaram os fatos e ao romper do dia o povo respondeu com vivas, aos brados que os irmãos Sousa Martins, os irmãos Araújo Costa, Miranda Osório e outros erguiam à Independência e ao Imperador.

 

Reunidos naquela manhã, os vereadores, chefes militares, juiz de fora e os demais graúdos, em sessão extraordinária do senado da câmara, por unanimidade, ratificaram os fatos e aclamaram com entusiasmo o príncipe D. Pedro como Imperador Constitucional do Brasil.     Em seguida, foi eleita a Junta Provisória de Governo, assim composta: presidente Manuel de Sousa Martins; secretário Manuel Pinheiro de Miranda Osório; e vogais Miguel José Ferreira, Ignacio Francisco de Araújo Costa e Honorato José de Moraes Rego. Na mesma ocasião fizeram os eleitos o juramento e tomaram posse de seus respectivos cargos, de tudo lavrando-se ata de vereação para a perpétua memória dos tempos.

 

Desde então, foi ação primordial do novo governo cooptar as demais vilas da província, arregimentar os corpos militares e consolidar o movimento emancipacionista. No dia seguinte, despacharam mensagem às câmaras das seis vilas piauienses, comunicando os fatos e ordenando que fizessem o mesmo imediatamente; aos dois comandantes militares de Campo Maior, ordenaram que cessassem suas ações e não embaraçassem, direta ou indiretamente, o Sistema do Brasil; ao major Fidié, para abandonar o Piauí; e ao governo pró-lusitano do Maranhão, para guardar neutralidade. Por via das dúvidas, suspenderam a exportação de carnes e tomaram medidas de segurança com relação à divisa maranhense.

 

Aliás, foi preocupação permanente do governo proteger as passagens do rio Parnaíba, com receio de invasão de tropas maranhenses.  Não mostraram receios do retorno de Fidié, mas temiam ataques do governo do Maranhão, que não se concretizou. Talvez, se tivessem concentrado suas ações para deter o major Fidié, em vez de preocupar-se com o Maranhão, teríamos tido melhor sorte na Batalha do Jenipapo.

 

De toda forma, o presidente Manuel de Sousa Martins e seus aliados juntaram tropas e as enviaram para as passagens do rio Parnaíba. Em pouco tempo o capitão Francisco Manuel de Araújo Costa está com sua tropa nos portos de São Gonçalo, Santo Antônio e Poti, onde vai reunir-se ao tenente-coronel Raimundo de Sousa Martins, seu primo e cunhado. Foram dois denodados lutadores. Recebem reforços de Valença, liderados por Claro Luís Pereira de Abreu Bacelar, João da Costa Sousa e Antônio José Leite Pereira de Castelo Branco, gente intemerata, representantes das principais famílias do vale do Berlengas; de Parnaguá, veio somar-se a eles o capitão Tibúrcio José de Borges; cujo contingente engrossa as fileiras do capitão-mor João Gomes Caminha, oeirense que liderava um regimento de Jerumenha.

 

Não se pode esquecer os nomes de Thomé Mendes Vieira, Arnaldo José de Carvalho, José Ignácio Madeira, Mathias de Sousa Rebelo, Francisco Irineu Gomes Correia, João Damasceno Rodrigues, para ficar apenas entre os combatentes do centro e sul piauiense. Tudo gente denodada, brava, que não fugiu ao chamado da pátria.

 

Entram os cearenses arregimentados por Simplício Dias da Silva, João Cândido de Deus e Silva e outros lidadores parnaibanos.

 

Enfim, vem a Batalha do Jenipapo e o posterior cerco de Caxias obrigando a rendição do major João José da Cunha Fidié, que vem trazido para Oeiras e, posteriormente, enviado para a Bahia.  É importante ressaltar que o brigadeiro Manuel de Sousa Martins, presidente da Junta de Governo do Piauí, com o irmão Joaquim, governador das armas e os cearenses capitão-mor José Pereira Filgueiras, comandante das armas do Ceará e Tristão Gonçalves Pereira, vogal da Junta de Governo cearense, tomaram parte pessoalmente no cerco e nas negociações para rendição de Caxias.

 

Depois vieram as chantagens a aleivosias dos cearenses, mas é assunto para outra oportunidade.

 

Manuel de Sousa Martins foi o braço forte, o grande líder desse movimento, por isso assumindo a testa do governo da província, como presidente da Junta de Governo. Não esmoreceu com a derrota dos patriotas em 13 de março, na histórica Batalha do Jenipapo, em Campo Maior, só descansando com a derrota total dos portugueses e prisão de Fidié, depois do cerco de Caxias, em agosto de 1823. É a grande referência da política piauiense durante a fase provincial, com poder inconteste, daí que somente conseguiram transferir a capital quando ele já beirava à senilidade.

 

Concluindo, pode-se dizer que a proclamação de Oeiras, em 24 de janeiro, foi a primeira declaração oficial dos piauienses pela separação política de Portugal. Foi o primeiro ato que ecoou o Grito do Ipiranga no Piauí. E a participação dos piauienses foi decisiva para consolidação da unidade nacional, evitando que o Brasil se desintegrasse como ocorrera na colônia espanhola. Por essas razões, merecem figurar nossos patriotas da Independência entre os heróis da pátria. Muito obrigado.

 

 

 

[1] REGINALDO MIRANDA, advogado com mais de 30 anos de efetiva atividade profissional, cofundador e ex-presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí (AAPP), ex-membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, em duas gestões, ex-presidente da Academia Piauiense de Letras, em dois biênios. Autor de diversos livros e artigos. Possui curso de Preparação à Magistratura (ESMEPI) e de especialização em Direito Constitucional e em Direito Processual (UFPI-ESAPI). Contato: reginaldomirandaadv@gmail.com

 

[2] Antiga patente militar ou correspondente a major.

 

[3] Capitão Agostinho Pires e alferes Dâmaso Pinto da Veiga.   

Seleta Piauiense - Raimundo Alves de Lima - RAL



NOTÍCIAS ESPARSAS


Raimundo Alves de Lima - RAL (1956 - 2013)


Dos países longínquos 

chegam notícias de amor e morte.


Na rua onde moro,

neste momento, há quem jogue cartas,


desfira socos em canalhas, cometa adultério,

morra de tédio.


(Muitas Coisas estão em minha rua,

não em mim)


Fonte: Canção Permanente, edição do autor, 1982.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

AS GRANDES TRAIÇÕES DA HISTORIA DA HUMANIDADE

 

Fonte: Google

AS GRANDES TRAIÇÕES DA HISTORIA DA HUMANIDADE

 

Valério Chaves

Desembargador aposentado do TJPI

 



A história da existência do homem sempre foi marcada por traição de indivíduos que, apesar de aparentemente confiáveis, foram capazes de trair a pátria ou prejudicar seus melhores amigos como forma de obter vantagens pessoais no campo político, ideológico ou religioso.

Os registros históricos revelam que no curso da história do mundo muitas batalhas e guerras foram vencidas ou perdidas não só pela coragem de seus líderes, mas também por influência de espiões e traidores épicos que passaram para a História da humanidade.

Nos tempos atuais, apesar da rapidez com que se modificam os valores sociais, morais, éticos e políticos relacionados à prática de crimes de corrupção revelados através da chamada delação premiada existente no ordenamento jurídico brasileiro, impossível não lembrar de exemplos deixados pelas grandes traições que, pelo rigor de seu simbolismo, pela importância dos réus ou das vítimas, pela coragem ou a covardia do juiz, ultrapassaram as brumas do tempo e causaram consequências desastrosas para o mundo das gentes à custa de recompensas aparentemente desprezíveis.

Mas nem sempre a traição praticada por falsos amigos deu bons resultados.

Recordemos alguns episódios que tiveram desfecho trágico e entraram para a história tamanha a traição de seus protagonistas, como foi o caso de Judas Escariotes que, mesmo sendo um dos doze apóstolos de Jesus Cristo, virou sinônimo de traição ao beijar e entregar o Filho de Deus para os soldados romanos, recebendo como recompensa 30 moedas de prata.

Outro relato descrito no Evangelho do Novo Testamento diz respeito à negação de Pedro perante o Senhor, confirmando a profecia da Última Ceia: “Em verdade te digo que esta noite, antes de cantar o galo, três vezes me negarás” (Mateus, 26, 33-35).

Por esses relatos bíblicos, verifica-se que dois apóstolos de Cristo, apesar de terem tido destino diferentes, cometeram o mesmo erro contra a mesma pessoa (Cristo). Pedro que traiu por medo da agressão dos guardas romanos, tornou-se um dos principais líderes da Igreja Primitiva. Judas que traiu por ambição, foi capaz de suicidar-se por arrependimento.

Nesse contexto, podemos citar ainda aquele que é considerado o maior crime da humanidade cujo processo de prisão e julgamento do réu, culminou na Paixão e Morte de Jesus Cristo pregado na cruz, fato que serviu não só para indignar seus discípulos e seguidores cristãos, mas também para fazer de Pôncio Pilatos um símbolo de juiz covarde e submisso ao medo de perder o cargo de representante do Imperador romano Tíbério Cesar.

Quarenta e quatro anos antes da era cristã, o aristocrático romano Marcus Junius Brutus participou do mais conhecido atentado político da Antiguidade ao colocar em prática um plano para assassinar o então ditador e imperador Júlio César, tornando-se assim o mais famoso traidor da história.

Na época do Brasil Colônia, século XVII, Domingos Fernandes Calabar, por ambição de alguma recompensa ou melhorar de fortuna, traiu os colonizadores portugueses ao compactar-se com invasores holandeses na conquista de terras no Nordeste brasileiro. Depois de preso como desertor covarde, foi punido com a pena de morte na forca.

Em 1792, o coronel Joaquim Silvério dos Reis, movido por ganância, rompeu compromisso de lealdade aos companheiros inconfidentes, e mediante promessa de nomeações de parentes, uma pensão vitalícia do governo português e perdão de suas vultosas dívidas com a Coroa, delatou todos os planos da Inconfidência Mineira, culminando com a morte na forca e esquartejamento de Joaquim José da Silva Xavier – o Tiradentes.

No Livro Quinto das Ordenações Filipinas, promulgada no começo do século XVII incentivando a traição nos crimes de lesa-majestade, encontra-se a verdadeira origem da traição prevendo não só o mero perdão, mas também um prêmio ao indivíduo que apontasse o culpado (Títulos VI e CXVI).

Na sua obra imortal “Dei deliti e delle pene”, publicada no século XVIII, Cesare Beccaria expõe sua opinião contrária aos Tribunais que ofertam impunidade a delatores e traidores cúmplices no processo de um grave delito.

Na peça “Otelo” o Mouro de Veneza, de William Shakespeare (que sempre explorava a traição em suas peças), Desdêmona, a esposa de Otelo, perdeu a vida por causa da traição de Iago. Este sentindo-se injustiçado pelo seu comandante com a nomeação de outro para o posto de tenente, decide se vingar dizendo para o general Otelo que sua mulher Desdenha o traiu. Dominado pelo ciúme, o general mata a esposa. Após saber que tudo não passava de uma mentira de seu alferes Iago, suicida-se.

Noata-se, por fim, que a traição, o medo e a ambição, independentemente do tempo ou posição social de seus protagonistas, fazem parte das virtudes e imperfeições humanas como forças incontidas e inevitáveis que jamais compensarão os prejuízos causados à alma traidora.

(janeiro/2023)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Da Serra da Capivara ao Sertão de Cabrobó

No entorno do busto do Visconde da Parnaíba, vê-se os acadêmicos: Francisco Miguel de Moura, Magno Pires, Reginaldo Miranda, Pe. Tony Batista, Moisés Reis, Plínio Macedo, Fonseca Neto, Des. Oton Lustosa e Elmar Carvalho

Arte: Elmara Cristina
Governador Rafael Fonteles junto à placa do poema Noturno de Oeiras no Hotel do SESC e mensagem de Elmar para Carlos Rubem




Da Serra da Capivara ao Sertão de Cabrobó

 

Elmar Carvalho

 

1

 

Neste sábado, dia 28/01/2023, aconteceu a primeira reunião de nossa APL, após o recesso do final/começo de ano. Todos os acadêmicos que foram ao passeio turístico-cultural a São Raimundo Nonato, Parque Nacional de Serra da Capivara (situado em partes dos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias) e Oeiras foram unânimes em dizer que a viagem foi excelente e proveitosa.

Em minha breve fala, enalteci o passeio, fixando os pontos que achei mais importantes, seja por achá-los mais interessantes, curiosos ou surpreendentes. Na empolgação do discurso, disse que me sagraria o Pero Vaz de Caminha dessa expedição, e escreveria uma crônica sobre ela. É o que tento fazer agora, sem nenhuma consulta a anotações, já que não as fiz.

No sábado, dia 21, seguimos em nossa viagem, cujo ponto de partida foi o estacionamento da Ponte Estaiada Mestre Izidoro França. Procurei uma poltrona perto da janela, através da qual fui olhando a paisagem e as pequenas cidades e povoações, que tantas vezes vi, à límpida luz do sol ou à penumbrosa luz do luar, quando mourejei por vários anos em longínquas comarcas do sul do Piauí. 

Conduziu o ônibus o excelente e prestativo motorista Valdenir José da Costa e foi responsável pela viagem a educada e solícita Jaqueline Nobre, que prestou impecável assistência aos expedicionários, quase todos legalmente idosos, mas, na prática, jovens acima dos sessenta anos. Fizemos uma parada estratégica e logística na progressista Água Branca, cidade do coração, quase diria natal, do presidente Zózimo Tavares, comandante em chefe da expedição. O local da parada não poderia ser mais apropriado: era a lanchonete dos irmãos Sales, frequentadíssima, onde se pode degustar um delicioso e legítimo bolo frito ou um requeijão de primeira qualidade, além de outros quitutes.

Seguindo o plano e o roteiro da viagem, almoçamos em Floriano, e sem mais delongas marchamos rumo a São Raimundo Nonato, em plena caatinga. A viagem transcorreu sem nenhum acidente ou incidente digno de reparo, exceto um que poderia ter sido trágico, mas que a graça de Deus o mitigou. Dona Mécia, esposa do poeta Francisco Miguel de Moura, meu amigo há várias décadas, quando já estávamos nos aproximando de nosso destino, ao se levantar, com o ônibus em movimento, caiu sobre a escada do veículo, mas felizmente só teve dois pequenos ferimentos e hematomas, na região da cabeça. Logo chegamos a SRN e ela recebeu os necessários cuidados médicos, sem constatação de que houvesse algo de maior gravidade. O confrade Plínio Macedo e sua tia Socorro Macedo, por serem naturais da cidade, prestaram todo o apoio a Mécia, que no dia seguinte já estava em plena vitalidade, tanto que lhe disse, brincando, em analogia a um filme de ação, que ela era “dura na queda”.   

Nos instalamos no Real Hotel, no centro da cidade, e seguimos para o prédio do SENAC, em cujo auditório ocorreria a solenidade de nossa Academia. Foi exibido o documentário sobre a história da APL, dirigido e editado por Luciano Klaus, com roteiro do presidente Zózimo Tavares. Foi também projetado o vídeo (clipoema) Miragens de Serra da Capivara, com poema de Elmar Carvalho, fotografias do médico Valdeci Ribeiro de Carvalho, e editado por Claucio Ciarlini. Ambos os audiovisuais foram bastante aplaudidos pelos presentes. O professor universitário Gênesis Naum Farias me solicitou cópia do poema, para publicação em sítio internético.

Após, a mesa foi composta por Zózimo Tavares, presidente da APL, Carmelita de Castro Silva, prefeita municipal, Magno Pires, vice-presidente da APL, Fonseca Neto, palestrante e 1º secretário, além de outras autoridades. A cerimonialista foi a jornalista Vanize Lemos, que exerceu com maestria o seu mister. Houve ainda o lançamento do livro/álbum Piauí – terra querida, filha do sol do equador, com textos e esplêndidas fotografias de André Pessoa.

Fonseca Neto, em sua brilhante palestra, em seu estilo próprio, inimitável, falou da importância do trabalho da confreira Niede Guidon, das descobertas, estudos e análises do apurado labor arqueológico, bem como do notável significado das pinturas rupestres, e da importância disso tudo para a história do Piauí, do Brasil e do mundo.

Ao ouvi-lo fiquei imaginando as labutas, as lutas, as agruras que esses nossos ancestrais, esses “capivarões de Guidon”, no dizer fonsequiano, tiveram que enfrentar, ao relento ou em furnas esconsas, sofrendo picadas de insetos e as chicotadas do frio noturno, das chuvas e das tempestades.

No dia seguinte, domingo, fomos conhecer os cantos e encantos do Parque Nacional de Serra da Capivara. Os cantos porque conhecemos vários sítios e pontos turísticos e os cantos maviosos de aves álacres e belas, como corrupiões, bem-te-vis, galos-de-campina, sabiás e chico-pretos. E encantos porque o parque é todo cheio de encantos, que nos proporcionam sua floresta bem preservada, seus paredões rochosos, e as serranias ao longe. A famosa pedra-furada acaso não seria um portal para uma outra dimensão, talvez ainda mais bela? Alguém já a teria atravessado, em tempos imemoriais, que se perdem na voragem do próprio tempo? Jamais teremos resposta para esse mistério.

Ao fim do périplo, um dos guias, ao saber que eu tinha um poema sobre Serra da Capivara, me disse também ter feito versos, em que louvava essas louçanias, e me conduziu até um tipo de mandacaru, de espinhos pequenos e bem flexíveis. Num gesto quase ritualístico ou de prestidigitação, pôs as pontas dos dedos no topo de um dos “galhos” do cacto e os moveu de cima para baixo, na forma e na velocidade adequadas, e fez surgir o rumor de água, como a escorrer por um córrego, que imaginei ornado por belos seixos. Que mistério encerraria essa singular sonoplastia, nascida de uma planta típica das caatingas secas, adustas, de poucas chuvas, que imitava o som de água corrente, tão cara aos ouvidos dos sertanejos? 

Após o almoço em restaurante do parque, fomos conhecer o Museu da Natureza, concebido em avançada tecnologia, que nos proporcionou diversas experiências sonoras, táteis e visuais, e no campo eletromagnético. Vimos projetados enormes paquidermes, com seus rugidos assustadores, além de imagens panorâmicas e aéreas de todo o parque.

Tive a nítida sensação de sobrevoar os imensos paredões e desfiladeiros, quando usei o simulador de asa delta, que proporciona imagens cinematográficas em 3 dimensões. Me senti um anjo, sem peso e sem pecado, a voar sobre um abismo vertiginoso de beleza, que um dia sobrevoarei de verdade, quando eu partir para a outra dimensão de uma das casas do Pai, como prometeu Jesus Cristo, de que eu tive a prefiguração nesse voo de mentirinha. 

Fomos em seguida visitar o Museu do Homem Americano, na cidade de São Raimundo Nonato. É um misto de museu convencional, com a formação de ambientes e de exposição de diversos objetos, oriundos das escavações nos diversos sítios arqueológicos do Parque de Serra da Capivara, como utensílios diversos, vasilhas, vasos, armas, pontas de flecha, facas rudimentares, urnas funerárias, esqueletos de animais e de antigos habitantes da caatinga capivarense, e de museu tecnológico, em que imagens são projetadas, sobretudo as das pinturas rupestres, em que se veem animais e as antiquíssimas pessoas da região, em situações que sugerem danças, rituais e outras atividades, inclusive amorosas, como a afamada cena do beijo pré-histórico.

Antes do retorno ao hotel, prestamos singela homenagem ao Dr. Raul Macedo, pai do confrade Plínio Macedo e do Des. Pedro Macedo, ao pé do monumento que tem o seu busto. Foi o primeiro médico do município. Por seu espírito solidário e humanitário, prestou relevantes serviços à região sanraimundense.

À noite, fomos jantar em uma churrascaria perto do nosso hotel. Fizemos breve e alegre libação comemorativa. Ao voltarmos ao hotel, conversamos sobre poesia e poetas. Instigado pelo jornalista e documentarista Luciano Klaus, terminei falando da velha Zona Planetária, mítico cabaré campomaiorense, cujos casarões foram destruídos num forte inverno implacável, de chuvas constantes e torrenciais, mas que ainda remanescem num poema de minha autoria, de igual título, cujos versos iniciais recitei na noite sanraimundense: “Anfion percorre os sulcos / dos discos das vitrolas e as / emoções são alinhadas pedra a pedra. / Apolo é qualquer moço feio / que nos vitrais Narciso se julga. / De repente, Átropos corta o fio da vida / que era tecido pelas Parcas lentamente / pelos golpes de facas, adagas ou estiletes / nas mãos de um velho Pã embriagado.” E a câmara indiscreta de Klaus tudo viu e tudo registrou para os arquivos implacáveis de Luciano.

Na manhã do dia seguinte, cedo, logo após o café, arribamos para a velha Oeiras. Seguimos pela estrada que passa por São João do Piauí, que me fez lembrar do padre Solon Aragão e do poeta Adail Coelho Maia, e pela cidade de Simplício Mendes, na qual foi juiz por alguns anos o confrade e Des. Oton Lustosa. Por essa urbe passei algumas vezes, no início de minha carreira de julgador, em demanda de minha longínqua Comarca de Socorro do Piauí. No entorno do monumento ao médico Isaías Coelho, Oton Lustosa fez breve pronunciamento em que relembrou a sua atuação magistratural na cidade e um pouco de sua vida civil e familiar, ainda com escasso tempo de casado. Foi cumprimentado por velho servidor da Justiça, que dele guardava boas recordações.

Ao rever a estátua do célebre médico Isaías Coelho, me lembrei de histórias que li ou ouvi contar a seu respeito. Numa época em que não havia praticamente exames médicos, mormente na região, tinha grande clientela. Muitos vinham de longínquas paragens para se consultar com esse esculápio do sertão. Pelos seus diagnósticos e medicamentos certeiros, ganhou fama de ter dotes mediúnicos, quase um taumaturgo, senão mesmo um demiurgo. Morreu celibatário, talvez porque tenha desejado dedicar o maior e o melhor esforço de sua vida exclusivamente ao exercício da medicina.

 

2

 

À colonial e episcopal Oeiras chegamos um pouco depois do meio-dia.

Nos hospedamos no Hotel do SESC, cujo nome homenageia o nosso estimado confrade Moisés Reis. Já o Carlos Rubem, guardião dos vetustos solares e da cultura de Oeiras, Promotor de Justiça (e de cultura, como já disse alhures), nos esperava com a sua lhaneza de sempre.

Fez questão de mostrar aos expedicionários uma bela placa metálica, que estampa, no hall do hotel, o meu poema Noturno de Oeiras. Inclusive, no dia seguinte, ele terminou por transformar o jovem governador Rafael Fonteles numa espécie de garoto propaganda do meu poema, ao lhe fotografar ao lado da placa e ao gravar rápido vídeo, com o gestor se referindo ao Noturno.

Após breve descanso, fomos fazer um pequeno passeio turístico. Visitamos o sobrado Major Selemérico, que foi na Oeiras colonial e imperial o Palácio dos Governadores. Vimos os retratos dos presidentes da Província e os governadores do Piauí no período republicano. Vimos a mesa grande, rústica, em que Manuel de Sousa Martins, depois Visconde da Parnaíba, decidiu a adesão do Piauí ao movimento em prol da Independência do Brasil.  É um prédio simples, despojado, sem ostentação de objetos luxuosos, mas em que a história de um tempo antigo parece nos espreitar dos beirais, dos velhos assoalhos, das enrugadas paredes, das frestas dos velhos móveis, da escadaria de pedra.

Estivemos no Solar do Major Doca Nunes, ancestral do ex-governador Wilson Martins. Nesse museu vimos muitos móveis antigos e muitos objetos artísticos, entre os quais belas pinturas e esculturas. Nosso guia exemplar foi o poeta e economista Olavo Braz Barbosa Nunes Filho, que com sua forte e clara voz tudo nos explicava, tudo nos esclarecia, inclusive sobre alguns aspectos da vida familiar de Doca. Muito fiquei honrado quando ele, após elogiar o meu Noturno, me entregou o seu lindo livro/álbum Pedaços de Mim, em que são exibidos textos em prosa e em versos de sua autoria, além de excelentes fotografias autorais de paisagens, plantas, igrejas e obras de arte sacra, sobretudo de Oeiras. 

                Tivemos o prazer de olhar vários compartimentos da vetusta catedral de Nossa Senhora da Vitória. Percorremos sua nave. Vimos velhas imagens de santos. Contemplamos seu retábulo principal, tão bem retratado pelo escritor oeirense Dagoberto de Carvalho Jr., em seu estilo castiço e clássico, em páginas admiráveis, inclusive na sua excelente magna obra Passeio a Oeiras, de cuja sexta edição tive a honra de ser o prefaciador. Visitamos as capelas. Vimos algumas lápides e perguntamos pela do Visconde da Parnaíba, o homem que por maior lapso de tempo governou o Piauí. Uma das pessoas que nos acompanhavam nos informou que o corpo do ilustre oeirense fora enterrado debaixo do altar-mor, mas sem nenhum sinal ou marca, que pudesse indicar o seu jazigo. Seu nome, que não consta em nenhuma lápide, que não encima nenhum epitáfio, contudo está grafado em letras imortais em todos os livros da História Piauiense.

Com a ajuda de guia experiente, devassamos todos os meandros e recônditos do Museu de Arte Sacra, instalado no antigo Palácio dos Bispos. Vimos a Galeria dos Bispos, inclusive do primeiro, Dom Expedito Lopes, que se encontra em processo de beatificação. Fundou o Ginásio Municipal de Oeiras, do qual foi diretor e professor. Sua vida foi tragicamente ceifada, quando servia na Diocese de Garanhuns, pelo padre Hosana de Siqueira e Silva, que se rebelou contra sua admoestação. Seu algoz veio também a ser assassinado algumas décadas depois.

Vimos muitos utensílios sacros, pinturas, esculturas, móveis, além de paramentos de antigos bispos e fotografias. Entretanto, não pudemos ver a famosa e valiosíssima custódia de ouro maciço, cravejada de pedras preciosas, trabalho da mais refinada ourivesaria portuguesa, que, segundo o historiador Pe. Cláudio Melo, fora doada à matriz de Oeiras, no tempo de Tomé de Carvalho, pelo mestre-de-campo Bernardo de Carvalho e Aguiar. Fica guardada em um cofre, em recinto hermeticamente fechado. Essa custódia, que já fora roubada em tempos antigos, só é exibida uma vez por ano, por ocasião da procissão e da missa de Corpus Christie. Segundo Carlos Rubem, quando esse ostensório é levantado na procissão ou na missa, como que um frêmito parece comover os fiéis, numa quase epifania, ousaria dizer. 

À noite, no Cine-Teatro Oeiras, uma das obras marcantes do coronel Orlando Carvalho, foi realizada a sessão especial da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico de Oeiras - IHO, de que sou sócio correspondente. Além de membros das duas instituições e pessoas da sociedade oeirense, compareceram várias autoridades, entre as quais o governador, o prefeito municipal, deputados e vereadores. Compuseram a mesa o presidente da APL Zózimo Tavares, o governador Rafael Fonteles, o presidente da Assembleia Legislativa, Franzé Silva, o prefeito José Raimundo de Sá Lopes, o presidente da Câmara Municipal, Espedito Martins, o ex-governador Wilson Martins, a presidente do IHO, Inácia Rodrigues Ferreira, o bispo diocesano Dom Edilson Soares Nobre,  o 1º secretário da APL, Fonseca Neto, e os conferencistas Moisés Reis e Reginaldo Miranda.

Foram exibidos o documentário sobre a História da APL (direção e edição de Luciano Klaus, e roteiro de Zózimo Tavares) e o clipoema Noturno de Oeiras, poema de Elmar Carvalho, com produção, fotografias e edição de Inamorato Reis, interpretado por Claucio Gonçalves de Carvalho. Ambos os vídeos foram entusiasticamente aplaudidos.

Moisés Reis, advogado de notável competência e ética,  em nome do IHO, pronunciou um magnífico discurso de recepção, com sua voz pausada, de límpida e bela entonação. Traçou breve panorama da história da Academia, da qual é destacado integrante, e fez a exímia louvação de alguns de seus patronos e membros. Não sou tão humilde a ponto de deixar de transcrever o trecho com que ele me distinguiu:

 

“E foi assim que o amigo e confrade Elmar Carvalho, filho de Oeiras pelos laços formais de merecido título de cidadania, que já havia se tornado oeirense por coração, vocação, predestinação e devoção, como afirma em seu opúsculo “Oeiras na Alma e no Coração” foi assim, repito, que o prezado confrade, alimentado pelo espírito secular e modelador da alma, interpretou muito bem a característica peculiar, idiossincrásica, do cidadão oeirense, através de seus poemas, crônicas, textos literários e discursos. Quem, desta cidade, não já recitou o seu célebre poema Noturno de Oeiras, ‘navegando na noite de um tempo que não termina?’”

 

O outro orador da noite foi o grande historiador Reginaldo Miranda, que se houve com não menos brilhantismo, ao pronunciar esplêndida conferência sobre a data magna de 24 de Janeiro, em seu bicentenário. Falou sobre a importância e significado dessa efeméride, quando o brigadeiro Manuel de Sousa Martins encabeçou o movimento que marcou a adesão do Piauí à Independência do Brasil e ao império instituído por D. Pedro I, com a instituição de uma junta governativa, da qual ele era o presidente. Fez vibrante elogio ao inolvidável fato histórico e arrancou entusiasmados aplausos de todos os oeirenses.    

No dia 24, data em que se celebra a adesão do governo do Piauí à Independência do Brasil, os acadêmicos da APL fomos participar da solenidade comemorativa dessa efeméride no Memorial do 24 de Janeiro, em que, além do ato de levantamento das bandeiras do Brasil, pelo governador Rafael Fonteles, do Piauí, pelo ex-governador Wilson Martins (em cujo governo foi erigido o Memorial, com exceção da estátua de bronze do Visconde da Parnaíba) e de Oeiras, pelo prefeito José Raimundo, o governador do Estado depositou uma corbélia de flores aos pés da estátua do brigadeiro Manuel de Sousa Martins.

Após essa cerimônia, fomos ao centro, no carro que conduzia Wilson Martins e o caro José Augusto Nunes, seu primo, antigo caçador (de conversa) na Furna da Onça, dileto amigo, que considero o último Fidalgo da Velha Mocha, onde visitamos a Galeria do Divino, que Olavo Braz criou e instalou, sem ajuda do poder público, em casa de sua propriedade, no entorno da Praça das Vitórias. Todos os objetos de arte sacra exibidos nesse espaço cultural foram por ele adquiridos. Creio tenha ele se inspirado no Museu do Divino de Amarante, criado às expensas do professor Marcelino Leal Barroso de Carvalho, e por este mantido em casa sua, igualmente sem ajuda oficial. Nessa galeria ele também expõe, em chapas de vidro, variados poemas de oeirenses ou sobre a velha cap, entre os quais, para gáudio meu, o Noturno de Oeiras.

Nos dirigimos, guiados pelo incansável e intimorato Carlos Rubem, à Casa de Pólvora, localizada nas cercanias da igreja do Rosário, no bairro de igual nome. É um edifício rústico, com uma única porta de madeira maciça, feito em pedra de cantaria.

Consta que no dia 13 de dezembro de 1822, vários oeirenses encapuzados renderam os guardas, subordinados ao comandante das armas, o português João José da Cunha Fidié, que já se encontrava em Parnaíba, e levaram as armas e munições que encontraram nesse paiol. Deram uma boa surra nos guardas e desapareceram no vão da história, sem que nunca se lhes descobrissem as identidades, pelo que ficaram como heróis anônimos.

 

3

 

À tarde, após o almoço e breve repouso, iniciamos a viagem de retorno a Teresina, via Regeneração, em que se se contemplam deslumbrantes paisagens, do alto de serras, e se percorre longo trecho da Chapada Grande. Também se veem extensas plantações de soja, que se perdem na linha do horizonte.

Fizemos breve parada turística, afetiva e sentimental em Regeneração, em virtude de que o Des. Oton e eu exercemos por vários anos a magistratura nessa histórica Comarca e de que nela, há várias décadas, o ex-presidente Reginaldo Miranda exerce a advocacia com proficiência, zelo e ética, e também pelo fato de que nós três temos o Título de Cidadãos Honorários dessa cidade e município, outrora vila e aldeamento nos tempos coloniais e imperiais. Reginaldo e o advogado Márcio Freitas, que participou da excursão com o seu filho João Gabriel, jovem bem informado e já um erudito, são casados com regenerenses. O Luciano Klaus gravou breves depoimentos, no entorno da imponente igreja de São Gonçalo, dos confrades Oton, Reginaldo e deste escrevinhador metido a escrivão.

Os acadêmicos Oton Lustosa e Reginaldo Miranda discorreram sobre suas ligações telúricas, afetivas e sentimentais com a cidade, assim como a respeito de suas experiências pessoais e laborais.

Em meu depoimento, recordando os velhos tempos do aldeamento indígena, falei que por ela e nas suas imediações passaram índios alegres, que gostavam de música e de dança; que o próprio padroeiro São Gonçalo fora um santo alegre e festeiro, a tocar sua viola; que os folguedos de São Gonçalo deveriam ser incentivados; que nela passara três a quatro dias, no começo dos anos 70, no apogeu de minha adolescência, tão estuante de vida e entusiasmo, quando nela dançara e namorara; que me batizara regenerense, na ocasião em que na companhia do soldado Raimundinho ou Pereira visitara as nascentes efervescentes do Mulato, a molhar a cabeça com uma cuia e quando recebi o meu Título de Cidadania, proposto pelo vereador Neto Leal. Falei ainda do meu esforço em movimentar com a possível celeridade os inúmeros processos. 

Sugeri ao Klaus fosse feito um documentário da viagem. Notei pela sua evasiva e sorriso maroto que isso já estava planejado por ele e pelo roteirista Zózimo Tavares. Nada mais lhe foi perguntado e nada mais ele disse.

Fizemos nova parada na indefectível Lanchonete Sales, na amorável e aprazível Água Branca do presidente Zózimo.

Em algum ponto da viagem, já nos aproximando de Teresina, de microfone em punho, a Jaqueline Nobre nos convocou a dizermos algumas palavras sobre a viagem. Os que falamos fomos unânimes em dizer que a expedição fora excelente e sem nenhum percalço digno de nota, exceto aquele a que já me referi.

Julgo importante acrescentar que, durante a viagem, se formaram várias rodas de conversas, entre os passageiros que se encontravam em cadeiras vizinhas. Participei de uma roda formada por Reginaldo Miranda, Fonseca Neto e a professora Socorro Barros, da qual vez ou outra participavam Márcio Freitas e João Gabriel Freitas. A conversava girava sobre assuntos diversos e aleatórios, mas com predominância de temas culturais e históricos. Aprendi muito com todos eles.

Encerrando o meu mister de escrivão da viagem, afirmo que não seguirei o exemplo de Pero Vaz de Caminha, que em sua magnífica carta a El-Rei, verdadeira certidão de nascimento do Brasil colonial, fez um pedido de ordem pessoal e aludiu, de maneira insólita, a certas vergonhas. Assim, nada pedirei e terei vergonha suficiente para não falar na vergonha de quem quer que seja.

Ao anoitecer, no estacionamento da Ponte Estaiada, ponto inicial e final da viagem, encontramos a nos esperar os nossos familiares e entes queridos. Como nos velhos filmes: The end.  

 

(*) Participaram da viagem: Valdenir José da Costa, Jaqueline Nobre, Zózimo Tavares e Regina, Jasmine Malta, Des. Oton Lustosa e Lindaura, Márcio Freitas, João Gabriel, Cremísia, Luciano Klaus, Jairo Moura, Maykon Douglas, Vanize Lemos, Plínio Macedo, Francisco Miguel de Moura e Mécia, Reginaldo Miranda e Maira, Fonseca Neto, Socorro Barros e Elmar Carvalho. Obs.: os acadêmicos Magno Pires, padre Toni Batista e Moisés Reis foram em transporte próprio.