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CRÔNICA OU CONTO?
Elmar Carvalho
Disse-lhe
Jesus: Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e
creram. (João 20:29)
Todo aquele
que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em
seu coração (Mt 5:28)
Na sexta-feira passada, feriado
nacional, minha mulher resolveu lavar nossa casa na zona rural de Teresina.
Para isso contratou uma moça da redondeza e levamos o Mundico, que costuma
fazer serviços de conservação e conserto em nossa casa da cidade, há vários
anos. Ele presta esses serviços para nossos vizinhos, de modo que é pessoa de
nossa amizade e confiança.
À boca da noite, resolvemos tomar
umas talagadas de uma boa calibrina com caju. Ele tentou ler o rótulo da
garrafa, mas não o conseguiu, seja por causa de certa deficiência visual ou provavelmente por causa de sua condição de (quase) analfabeto, de modo que
eu tive que ler para ele o nome da cachaça, por sinal fabricada em Inhuma.
Após algumas doses, a seu pedido,
passamos a tomar cerveja. Quando terminou o Jornal Nacional, minha mulher veio
até onde nós estávamos, uma área interligada à varanda, a que dei o nome de
Pasárgada, em homenagem a Manuel Bandeira e a seu famoso poema. Entre séria e
meio na brincadeira, ela disse que o Mundico já estava ficando meio “melado”,
uma vez que a sua língua já estaria meio embolada. Mundico sorriu e disse que
não, que ainda estava “bonzinho”. Pouco depois, minha mulher deixou o recinto e
foi para o quarto, assistir a algum programa de TV.
Conversamos sobre assuntos
diversos, porém banais, do cotidiano, e sobre algumas passagens de nossas
vidas. Uma ou duas cervejas depois, algo estranho aconteceu. Em dado momento,
ao falar de um conhecido que já dera muitas cabeçadas na vida, eu disse que o
pai de todos os pecados seria o egoísmo, por razões que não expliquei. O
Mundico, então, com toda autoridade, convicção e firmeza, contudo sem
arrogância ou empáfia, me retrucou que era o desejo. A voz, a fluência da fala,
o tom de autoridade, me deram a certeza ou pelo menos a convicção de que eu não
estava mais falando com o meu amigo, pessoa simples e humilde, embora
inteligente em suas poucas letras.
Respondi a esse questionamento,
arguindo que o egoísmo poderia gerar desejos pecaminosos. A suposta entidade
não respondeu, como se tivesse plena certeza do que falara ou como se não
desejasse discussão e polêmica. Todavia, depois me lembrei que Jesus nos alertara
sobre as ciladas do desejo; que um simples olhar malicioso para a mulher do
próximo já seria um adultério. Aduzi que o pecado começara com a Queda do
homem, mas sem mencionar os nomes de Adão ou Eva, ou o chamado pecado original,
e tampouco sem fazer referência ao episódio bíblico da árvore do conhecimento
ou do fruto proibido do Jardim do Éden. Sem também citar essas palavras ou
expressões, me respondeu, com muita autoridade, que o pecado já existia antes
da Queda.
Fiquei arrepiado, com uma espécie
de calafrio e, não devo negar, me veio um certo sobrosso. Fiz uma breve oração,
e pedi a Deus que me desse coragem, inspiração e inteligência para enfrentar
aquela entidade, seja lá quem ela fosse. Redargui que Nosso Senhor Jesus Cristo
é quem estava no princípio, como o Verbo, por meio de quem Deus criara o tempo
e o espaço, ou seja, o Universo. O espírito que falava através do Mundico
insistiu que o pecado já existia antes da Queda, antes de o homem perder a
imortalidade. Concordei que sim, que antes do homem existira a Rebelião dos
Anjos. Mas não usei a palavra Satanás ou diabo; nem ele, tampouco.
Notando a fluência, o grau de
aparente certeza, a correção das frases e a argúcia do raciocínio, e sobretudo
a autoridade como ele falava, sem titubeios e sem hesitações, como se tivesse
sido testemunha de tudo, fiquei temeroso, mas tentei me dominar, e olhei
atentamente para o Mundico. E vi que suas feições estavam mudadas. Ele era um
caboclo, descendente de negro e índio, mas naquele instante estava mais claro e
com as feições de um homem branco, como se estivesse transfigurado. Retirei a
vista dele. Mas quando olhei novamente, vi que ele estava voltando a tomar
novamente as feições do velho amigo Mundico. Ainda com certo sobrosso, resolvi
encerrar a libação e deixei o recinto.
No dia seguinte, fiz as minhas
orações costumeiras. Li, como diariamente o faço, a Bíblia e uns livros de
edificação e fortalecimento espiritual e moral. Refleti sobre o que narrei
acima. Tomei a deliberação de nada comentar. Cheguei tarde ao recinto onde se
encontravam minha mulher, minha filha e seu namorado, que acabavam de chegar. O
Mundico fazia alguns serviços, que minha mulher lhe determinara, e respondeu ao
meu cumprimento com a sua simplicidade, alegria e humildade de sempre. Depois,
conversei com ele, mas ele aparentava não se lembrar de nenhum dos episódios
acima narrados. Estava com o seu modo jovial e prazenteiro de sempre.
Um espírita vai achar,
certamente, que um espírito se apossou do meu amigo, para travar a conversa que
teve comigo. Um cético poderá argumentar que ele tinha conhecimentos bíblicos e
teologais ocultos, que lhe afloraram com a bebida, como um desdobramento de sua
personalidade simples e de pouca instrução, muito menos detentora de
conhecimentos teologais. Outros poderão dizer que eu tive uma espécie de visão
ou um breve sonho. E eu não direi nada, exceto que procurei ser fiel ao que
acho que de fato testemunhei, em estado de vigília.
Se eu desejasse enriquecer o meu
texto, poderia ter incrementado o meu diálogo com a suposta entidade, lhe
fazendo perguntas de alta profundidade teologal sobre a natureza de Deus, sobre
seus atributos, sobre como se explicaria a eternidade, sobre a concepção e
ressurreição de Jesus, sobre a sua transfiguração, ou simplesmente lhe
perguntaria se o Big-Bang teria mesmo existido, e o que ou quem estava por trás
ou antes da explosão do átomo primordial. Mas não quis dar a esse diálogo um
tom de confronto ou de mera curiosidade humana.
Como nos últimos meses vinha
orando para que Deus aumentasse a minha Fé, prefiro pensar, mesmo incorrendo em
erro, que esse (suposto) espírito era simplesmente o meu anjo da guarda, que de
forma discreta, sutil, se revelou a mim, para que a minha Fé fosse aumentada.
Aos incrédulos, direi, invocando
o ditado espanhol: “Yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay.”
Muito bom. A entidade, sendo ficção ou não, é uma ótima companheira de tragos. 😁
ResponderExcluirNão tanto, uma vez que tive medo. Kkkkk.
ExcluirBacana!!! Gostei!👏👏👏
ResponderExcluirMuito obrigado.
ResponderExcluirInício meu comentário dizendo que, na qualidade de homem simples, temente a Deus, creio que o que vc vivenciou foi mesmo um espírito que precisava expressar-se por meio de alguém e aproveitou-se do seu amigo, pessoa simples e ingênua, para se fazer ouvir no mundo dos vivos. O espiritismo é uma religião com bases sólidas, e a manifestação dos espíritos não pode ser contestada! O grande Chico Xavier, por meio de sua inigualável mediunidade, nos provou a comunicação entre mortos e vivos!
ResponderExcluirNo frigir dos ovos, além de vc ter tido uma ótima discussão sobre um assunto sempre muito importante, esse espírito… digamos, elevado, lhe proporcionou escrever essa belíssima crônica enriquecedora, tanto do ponto de vista literário quando espiritual, chamando nossa atenção para o “lado de lá”, para onde inexoravelmente, iremos um dia!
Amigo, você comentou muito bem, com muita pertinência e argúcia. Foi direto ao ponto fulcral.
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