quinta-feira, 29 de junho de 2023

Um breve passeio pelo Labirinto dos versos ” Elmarianos”

Carlos Evandro M. Eulálio, Celson Chaves, Elmar Carvalho e Domingos José Carvalho


Um breve passeio pelo Labirinto dos versos ” Elmarianos”

 

Frederico A. Rebelo Torres (*)

 

A evolução artística de Elmar Carvalho é evidente ao analisar a transformação de sua escrita ao longo dos anos. Sua juventude durante a ditadura militar no Brasil despertou nele uma necessidade de expressão subversiva e clandestina, moldando sua sensibilidade artística. Naquela época, os jovens escritores, como Carvalho, enfrentaram restrições impostas pelo regime autoritário, o que os levou a desenvolver técnicas literárias que permitiam escrever "por entre as entrelinhas". Essa experiência influenciou sua poesia, conferindo-lhe um caráter político e subversivo.

Com o passar dos anos, Elmar Carvalho amadureceu e aprimorou sua arte, tornando-se um homem culto e erudito. Sua maturidade trouxe-lhe uma nova perspectiva e uma maior capacidade de expressão literária. Atualmente, sua poesia é admirada por sua riqueza literária, sutileza e sofisticação de suas palavras.

Acredita-se que a vivência durante a juventude, em meio à repressão e à necessidade de disfarce e subversão, tenha contribuído para que Carvalho mesclasse elementos clandestinos e subversivos à sua poesia atual, de maneira mais sutil e sofisticada. Essa mescla resulta em uma poesia que transcende a mera denúncia política, incorporando uma dimensão estética e lírica que dialoga com os grandes nomes da literatura.

 Aqui separamos apenas dois poemas, como amostra, entre algumas centenas de sua produção recente ou dos anos 70.

"INSÔNIA –

 No silencio abissal/da noite estagnada/a engrenagem pesada/do tempo se desenrola/e desaba sobre mim.

 As botas cadenciadas/das horas marcham/- lentas, lesmas-/marcham infinitamente/na noite sem fim...

 

Ao mergulhar na poesia de Elmar Carvalho, somos envolvidos por uma atmosfera densa e enigmática. Seus poemas capturam as nuances da condição humana, explorando temas como solidão, alienação e a efemeridade do tempo. Por exemplo, em 'INSÔNIA', Carvalho nos transporta para o silêncio abissal da noite estagnada, onde a engrenagem pesada do tempo se desenrola implacavelmente. A marcha lenta das horas, como botas cadenciadas, ecoa na noite sem fim, transmitindo a angústia e a desolação do sujeito diante da marcha inexorável do tempo.

"ENIGMA”

entre o som /o sono/o sonho/a sombra e a sobra/eu me decomponho/em escombros/em farpas e agulhas/escarpas e fagulhas.".

 

Em 'ENIGMA', Elmar Carvalho nos convida a decifrar um enigma poético, mergulhando em uma atmosfera de ambiguidade e desconstrução. Através de uma linguagem concisa e impactante, ele evoca elementos sensoriais, como o som, o sono, o sonho e a sombra. A decomposição do eu lírico é representada por escombros, farpas e agulhas, sugerindo um processo de fragmentação e desintegração. As escarpas e fagulhas adicionam uma sensação de movimento e energia, como se houvesse uma faísca de esperança em meio ao caos. O poema desafia o leitor a desvendar suas múltiplas camadas de significado, explorando a dualidade e a busca pelo sentido em um mundo de incertezas.

Ao analisar a poesia de Elmar Carvalho, podemos estabelecer interessantes relações com alguns dos autores, como Theodor Adorno, Roland Barthes e Charles Baudelaire. Assim como Adorno, Carvalho traz à tona a crítica social e a reflexão sobre as estruturas de poder, porém, de forma mais subliminar. Sua poesia funciona como um espelho fragmentado que reflete a condição humana em sua complexidade e contradição, remetendo-nos às ideias de Barthes sobre a polissemia e a multiplicidade de interpretações.

Da mesma forma, a influência de Baudelaire pode ser notada na abordagem de Carvalho em relação à cidade e à vida urbana. Assim como Baudelaire explorou as contradições e os contrastes da Paris do século XIX, Carvalho transpõe esse olhar para o contexto contemporâneo, retratando a solidão e o anonimato nas grandes metrópoles.

Em suma, a poesia de Elmar Carvalho é um convite para uma jornada de reflexão e apreciação estética. Sua habilidade em transmitir significados complexos por meio de uma linguagem elevada e simbólica é resultado tanto de sua vivência em um período de repressão quanto de seu aprimoramento intelectual e não menos filosófica ao longo dos anos. Seus poemas capturam a essência da existência humana e desafiam o leitor a explorar as camadas mais profundas da experiência humana. A leitura de sua poesia é uma experiência profunda e enriquecedora, destinada a leitores cultos e eruditos que apreciam a sutileza e a sofisticação literárias.

(*) Frederico A. Rebelo Torres – Escritor

Da ACADEMIA MIGUELALVENSE DE LETRAS, CONFRARIA CAMÕES, SOCIEDADE PIAUIENSE DE POESIA, ACADEMIA DE LETRAS DO VALE DO LONGA, e das seguintes entidades AMLH, AHMOCAMPI, UBE e ALB.

terça-feira, 27 de junho de 2023

Carta a um filho querido

 

Fonte: Google

Recebi uma bela e elegíaca carta, por WhatsApp, do engenheiro Flaviano Carvalho, em que dirige comoventes palavras a seu filho Matheus, médico falecido aos 28 anos de idade, alguns meses atrás. Segue abaixo a missiva, em que ele ainda pranteia a morte precoce de seu filho e amigo:

"Querido Mateus,


Hoje faz quatro meses desde aquele trágico acidente que nos tirou você de forma tão repentina e cruel, e a dor da sua ausência ainda me consome como se fosse ontem, dilacerando meu coração pela dor e pela tristeza, e a saudade que sinto de você só aumenta a cada dia que passa.

É com um nó na garganta e lágrimas nos olhos que escrevo a você, meu amado filho, que foi tão precocemente arrancado de nossas vidas. 

A vida, às vezes, nos coloca diante de situações que parecem impossíveis de compreender, e esse terrível acidente que tirou sua vida é uma delas. A cada dia que passa, percebo o quanto sua falta é insuportável e como sua presença faz tanta falta em nossas vidas. 

É difícil acreditar que não poderei mais ouvir o som de sua risada contagiante, sentir sua presença iluminar a sala enriquecendo nossas vidas, compartilhar momentos e testemunhar o orgulho que você sentia pela sua família, especialmente pela nossa Princesa Alice, sua amada filhinha.

Acredite, meu querido filho, eu preferiria estar escrevendo esta carta para lhe contar o quanto eu te amo, o quanto me orgulho de você e o quanto eu desejo ver você crescer e alcançar seus sonhos. Mas a vida é cruel e injusta em suas reviravoltas, e agora estou aqui, lutando para encontrar forças para continuar sem você ao meu lado.

Lembro-me tão vividamente daquele final de tarde em que partimos juntos, em uma viagem que deveria ser um momento especial entre nós dois. Estávamos ansiosos porque iríamos morar no mesmo prédio, compartilhar risadas, histórias e reforçar ainda mais o nosso convívio. Mas, em um instante, tudo mudou, uma fração de segundo e nossa realidade foi destroçada, o veículo invadindo sua pista preferencial, e você, com um reflexo rápido, desviou o carro para evitar uma colisão frontal e então o carro tombando por três vezes, e quando parou percebi que você estava inerte, o traumatismo craniano que você sofreu foi fatal, gritei por você várias vezes, como se pudesse acordá-lo de um sono profundo, fiz respiração boca a boca, massagens cardíacas, e por fim pedi que me levasse com você. Eu me recordo de cada detalhe, dos barulhos da lataria do carro arrastando-se pelo asfalto, o som dos vidros quebrando, a poeira levantando, e cada um dos três tombos, como se estivesse gravado em minha mente para sempre.

Você era um homem de inteligência brilhante, dotado de uma mente lógica que desafiava os limites do conhecimento. Tinha paixão e habilidade pela música, e esta paixão e habilidade musical eram apenas um reflexo da sua alma criativa e sensível e que você levava para a sua profissão de Médico, sendo um verdadeiro modelo de médico humano. Sua dedicação à medicina e aos seus pacientes era inspiradora. Sua paixão pela busca do conhecimento e sua vontade de ajudar os outros sempre foram impressionantes. você conquistou uma carreira de sucesso na medicina. Ser professor na faculdade onde se formou era um testemunho da sua dedicação e do seu conhecimento admirável. Seus alunos o amavam e aprendiam com você, não apenas sobre medicina, mas também sobre ser um médico humano, compassivo e dedicado ao bem-estar dos outros. Você era um modelo a ser seguido, não apenas para sua família, mas também para seus amigos e colegas. Sua partida deixou um vazio imenso nesse mundo, tanto para a sua família quanto para seus amigos e colegas de trabalho.


Mas além de suas habilidades e talentos, você era um filho maravilhoso, um irmão amoroso, um esposo dedicado e um pai incrível. Alice, sua filhinha esperta e inteligente, era o seu orgulho e alegria. Ver você interagindo com ela era um espetáculo de amor e cuidado. A forma como você a ensinava e a encorajava, sempre com um sorriso no rosto, enchia meu coração de alegria. A cada olhar e sorriso dela, podíamos ver o amor e o cuidado que você dedicava a ela e ver este amor era emocionante. Você sempre reservava um tempo especial para brincar com ela e compartilhar momentos preciosos juntos. Você a ensinava, a guiava e a amava incondicionalmente. Alice é o seu legado, um pequeno raio de sol que carrega um pedaço de você consigo. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para ser o avô amoroso que você seria como pai, mas sinto profundamente a sua falta nessas experiências compartilhadas. Alice era e sempre será um reflexo do amor e bondade que você irradiava, e tenho certeza de que ela sempre lembrará do pai incrível que você foi.

Lembrarei para sempre do seu sorriso cativante, da sua energia contagiante e do seu coração generoso, dos nossos momentos juntos, das risadas compartilhadas, das conversas profundas e dos conselhos trocados. Agora, tudo isso se transformou em memórias preciosas que guardarei dentro de mim. Você sempre se dedicou com afinco a tudo que fez, ao seu esporte desde criança, o Judô que o fez ter disciplina, aos estudos, à engenharia que quase se formou, e por fim a medicina, abraçando a carreira médica com paixão e dedicação. Seu compromisso em ajudar os outros era inspirador, e eu me sinto imensamente orgulhoso por ter dois filhos brilhantes e agora me falta você.

Mateus, meu filho amado, esta carta é uma expressão do amor eterno que sinto por você. A dor da sua perda é insuportável, A saudade que tenho é avassaladora, e parece que cada dia fica mais difícil sem você. Mas, apesar da tristeza que nos acompanha, tentamos encontrar conforto nas lembranças preciosas que temos de você. Suas conquistas, seus sorrisos, seu amor e sua dedicação permanecerão vivos em nossos corações. Prometo que honrarei sua memória seu legado e os valores que você tanto prezava. Continuarei a apoiar seu irmão que também está devastado com sua partida, prometo também que cuidarei da sua família da melhor forma possível. Flávia, Raissa e Alice também sentem profundamente sua falta e estão enfrentando essa perda com coragem e amor. Juntos, encontraremos forças uns nos outros para superar essa tristeza nos apoiando mutuamente. Alice é uma Princesa e especial para todos nós, vamos garantir que ela cresça sabendo quem você era, o quanto a amava e o quanto você sempre estará presente em sua vida.

Mateus, meu querido filho, eu queria poder lhe dizer o quanto você era amado e admirado, o quanto significava para mim e para todos que tiveram a sorte de conhecê-lo e o privilégio de compartilhar momentos preciosos ao seu lado. Você fará uma falta imensa em minha vida. A dor da sua partida será uma ferida que nunca cicatrizará totalmente. Mas prometo que irei honrar sua memória, seguindo em frente e encontrando significado na vida, mesmo com esse vazio em meu coração. Encontro consolo na esperança de que você esteja em paz, que sua alma brilhante encontre serenidade e descanso olhando por nós de algum lugar onde a dor e o sofrimento não existem.




Meu amado filho, hoje, enquanto me despeço de você, prometo que honrarei sua memória, seu legado e o amor que você espalhou por onde passou. Continuarei a cuidar de Alice como você faria, transmitindo a ela o seu amor e a sua sabedoria.

Sua ausência deixou um vazio que jamais será preenchido, mas o legado que você deixou é um farol de inspiração para todos nós. Continuaremos a lembrar de você com carinho, mantendo vivas as memórias dos momentos felizes que compartilhamos. Seu amor, sua sabedoria e sua generosidade sempre estarão presentes em nossos corações.

Mateus, onde quer que você esteja, espero que esteja em paz. Que você olhe por nós e nos guie com sua luz. Sentiremos sua falta todos os dias, mas encontraremos forças para continuar honrando sua memória e vivendo nossas vidas da melhor forma possível. Sinta-se abraçado por todo o amor que emana de nós. Meu amado filho, saiba que você será para sempre um orgulho para mim, em poder ter convivido com você como filho por esses breves vinte e oito anos. Descanse em paz, meu filho amado. Até o dia em que nos encontraremos novamente.


Com amor eterno,


Seu pai."


Após alguns minutos de reflexão, resolvi lhe enviar a seguinte resposta:

Não sei bem o que lhe dizer. Mas me sinto no dever de lhe falar algumas palavras. Não existe uma fórmula que possa confortar um pai pela perda de um filho, sobretudo quando esse filho era um ser humano de escol, como era Matheus Nunes Carvalho, pelo que sabemos e pelo teor de sua carta.

Dotado de uma inteligência privilegiada para a música e para a matemática, foi um médico dedicado, zeloso, vocacionado e humanitário, como já tive ocasião de dizer em outro texto. Por tudo isso, tenho a convicção de que ele já esteja numa das moradas da casa de Deus, como nos garantiu Jesus Cristo: “Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito, pois vou preparar-vos lugar” (Jo 14:2).

Assim, Matheus já se encontra numa dimensão de paz e beatitude, em que não existem nem lágrimas e nem dor. Rogo a Deus para que o amigo encontre consolo na lembrança  e na saudade da bondade, da inteligência e da alegria de seu filho, que foi uma criatura luminosa que viveu entre nós, e que agora se encontra perto do Criador, para onde iremos, assim espero em Jesus, algum Dia.

Paz e bem. Fé e Esperança sempre, caro Flaviano.    

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Briga de cachorro



Briga de cachorro


Pádua Marques

Cronista, contista e romancista


No meu tempo de menino não havia coisa nada mais inesperada, excitante e perigosa do que uma briga de cachorros. Mas era naquele momento de grande medo e algazarra que os meninos prestavam atenção e, vendo tudo aquilo, de uns cachorros mordendo os outros, os meninos iriam levar como exemplos pra vida adulta, quando fossem homens feitos, os instintos de defesa. Todo menino tinha por obrigação saber brigar, se defender e, estando dentro de uma briga, sozinho ou na turma, nada de fugir, correr pra dentro de casa.

Briga de cachorro é coisa inesperada. Basta aparecer uma cachorra no cio, que a gente chamava que estava viçando, pra que assim de um minuto pra cima virem de tudo quanto era canto do bairro, das ruas de cima e de baixo, de dentro das cercas e dos muros, aquela nuvem, aquela multidão de cachorros correndo e provocando medo por quem estivesse por perto, mulher, menino e gente velha sentada na porta da rua. 

Quem ficasse na porta de casa falando da vida alheia com um pano de prato no ombro e se deparasse com uma briga de cachorro, era coisa de não acabar tão cedo a conversa. Teve até quem deixasse leite fervendo e o arroz no fogo e só se alertou quando sentiu lá do meio da rua e da calçada da vizinha o cheiro de queimado. E olhe que por causa de briga de cachorro muita gente, muita vizinha ficou intrigada com a outra pela vida toda, sem falar e nem passar na calçada. Coisa de dar careta, virar a cara de lado e dar o dedo no meio de todo mundo, até na procissão.

Porque briga de cachorro chamava atenção até de quem nunca teve um cachorro em casa. De repente era de aparecer na rua uns desses cachorros brancos, brancos encardidos, pretos, listrados, patacados, castanhos, marrons, de pelo crespo, os de ponta de rua, os de mercados, de dentro de cercados e de muros e aqueles com cara de onça. Cachorro de tudo o que era raça, tamanho, procedência e sem dono, desses com cara de vadios. Cachorros saídos do oco do pau, feios, os cheinhos de carrapatos até os caroços dos olhos.

E aquela aflição toda deles correndo na rua, pra cima e pra baixo atrás da cachorra. Um aqui querendo subir na pobrezinha. Ela pra se defender, mordendo um mais afoito enquanto tentava entrar em algum lugar seguro. E entre os que iam ficando pra trás, uns iam mordendo os outros, passando por cima dos pequenininhos, aquela desordem sem fim, fazendo um pedreiro cair da bicicleta. E era nesse instante que às vezes chegava um menino mais pra perto e com a maior falta de respeito jogava areia no meio deles. Porque menino, tinha quem dissesse, era a imagem do Cão.

Briga de cachorro nunca foi ocasião pra ninguém se meter. Cachorro brigando, ninguém chegasse perto. E os meninos, olhando uns pra os outros, calculando ocasião de fazer uma judiação. E os gritos, as vaias, jogavam a areia da rua pra cima fazendo vez de chuva pra ver se acabava aquela contenda medonha. Mas parecia que era pior. E tinha menino até mais perverso que jogava pedra, tiro de baladeira, dava paulada. E lá de dentro de casa alguma velha feia e incomodada com aquela arrumação toda achava de trazer uma bacia com água e jogava no meio deles. Adiantava não. A coisa ficava sem jeito.

As meninas, as mulheres e mães puxando os meninos pequenos curiosos e com rasgo de medo, as velhas cambotas, tratavam de entrar e fechar as portas pra ver a briga dos cachorros pelas janelas, dando opinião quem seria o vencedor, quem era o mais feio, o mais bonito, aquele sujo mais lá no meio dos outros, de onde era aquele ou aqueloutro mais adiante mais parecendo um sabugo. 

Se alguém tentava apartar, era pior. Quanto mais se chegava perto, se tentava acabar com a briga, era como jogar querosene em fogareiro. O jeito era deixar de mão. Aos poucos aqueles que não tiveram a atenção da cachorra viçando iam saindo do bando e tomando o rumo de onde vieram. Alguns até feridos na boca, nos quartos, na barriga, na altura dos olhos e das orelhas. 

E os meninos iam voltando aos seus lugares na esquina de casa, uns achando graça, contando esse ou aquele feito. Outros se pabulando. Mais outros querendo falar mais que os outros e mais outros meninos já maiores falavam sobre os cachorros fazendo aquelas coisas, uma curiosidade já de quem estava saindo da infância. Dali daquele instante extraordinário e tão cheio de surpresas e medo, aquela briga tão desigual e perigosa de cachorros, quando tudo poderia acontecer, os meninos de meu tempo iriam tirar lições de valentia, liderança e astúcia. Essas coisas de levar pra vida de homens de barba no queixo.

domingo, 25 de junho de 2023

(IR)REAL

Fonte: Google

 

(IR)REAL


Elmar Carvalho

 

Eu busco as

mais loucas sinestesias

em minha mente alucinada,

onde as cores aromáticas

se agregam a sons macios,

misturados com aromas térmicos.

A loucura vem do cosmo

em taças de cristal com sangue,

em aortas com água,

na alucinação total

de um homem que

se diz lúcido.

Na noite calma

um cão ladra

na solidão de

luzes irreais de

um cemitério de

cruzes partidas e

de esqueletos quebrados.

(E outro cão

responde em mim.)

De repente, eu levito

e me deixo transportar

em êxtase ao

país dos mortos-vivos

e lá eu vejo todos os mortos

e todos os vivos como simples

mortos-vivos.

Depois, eu me sinto preso

em todos os extremos do Universo

e sinto que conquistei

a liberdade cósmica,

pregado no infinito.

 

           Pba, 24.11.77

sábado, 24 de junho de 2023

Chico Miguel: Poeta de múltiplas formas criativas


 

Chico Miguel: Poeta de múltiplas formas criativas

 

Carlos Evandro M. Eulálio*

 

E eis que, tendo Deus descansado no sétimo      

dia, os poetas continuaram a obra da Criação.

Mario Quintana.

 

Francisco Miguel de Moura (Chico Miguel), romancista, cronista, ensaísta e poeta da Geração de 1960, atual ocupante da cadeira nº 8, da Academia Piauiense de Letras, com dezenas de livros publicados, vem produzindo uma notável obra poética pós-moderna, sempre em sintonia com as mais inventivas formas de expressão, sem, no entanto, abandonar os processos criativos da tradição literária. No seu livro de estreia, Areias (objeto de estudo neste ensaio), que veio a lume em 1966, já se identificam índices de uma poesia que o distinguem como um poeta de múltiplas formas criativas, pela capacidade de transitar da tradição às vanguardas.

Areias retorna ao leitor em primorosa 2ª edição pela Editora Life, São Paulo, 2021. O livro mantém o prefácio (Nota à 1ª edição), assinado pelo escritor Fontes Ibiapina que, à época do seu lançamento, reconhece o poeta Chico Miguel não como estreante, mas como um veterano na arte da poesia, ao declarar: “... estamos falando de um poeta. De um postulante, é verdade. Mas postulante com caracteres de titular, capaz de sentar-se a um fauteuil de cenáculo e reger, com sua batuta de veterano na arte do verso, uma orquestra de musas” (MOURA, 2021, p. 13). Essa afirmação de Fontes Ibiapina, quanto à poesia de Chico Miguel, deve-se tanto pela criatividade do discurso literário do poeta quanto pela elaborada forma de expressão. 

No texto de abertura, em sete estrofes livres, com versos pentassílabos ou de redondilha menor, o eu lírico transporta-se para o Jenipapeiro, torrão natal e cenário dos primeiros anos de vida do poeta. A infância, amplamente celebrada na literatura brasileira por muitos poetas em diferentes épocas, é também retratada em alguns poemas do livro, sempre relacionada às primeiras vivências e leituras de mundo do poeta: 

[...]

Vinha a papa-ceia*,

Vinha a lua cheia

e o menino deitado,

deitado na areia

branca, fina, feia.

Depois, peia, peia!

[...]

Não deixes que a areia

Branca da infância

Enferruje e coma

Tua coragem

 

Como a aranha tece,

Tece a tua teia.       

                                                               Areias (MOURA, 2021, p.17)

Nesse poema, tem-se um eu lírico em terceira pessoa, isto é, um narrador que converte a expressão objetiva do discurso épico em manifestação subjetiva de uma experiência individual, por meio da recordação, que caracteriza a essência do gênero lírico, situação em que o poeta dá voz a um eu, e com ele se confunde.  No poema, a participação do épico, em caráter acessório, corrobora o ponto de vista, segundo o qual nenhuma obra se classifica exclusivamente num único gênero literário. Daí constatar-se no texto a fusão entre o lírico e o épico. Ressalte-se o emprego do termo papa-ceia, como incorporação da oralidade linguística no poema, em alusão ao planeta Vênus ou Estrela da Tarde, que no firmamento surge na hora da ceia, antes do anoitecer. Numa outra acepção, Castro Alves menciona a papa-ceia no poema Canção do Africano, com o intuito de mostrar a solidão do africano oprimido em terra estranha:  O sol faz lá tudo em fogo, / Faz em brasa toda a areia; / Ninguém sabe como é belo / Ver de tarde a papa-ceia!

Desde os seus primeiros versos, Chico Miguel mostra o domínio das mais diversas formas fixas de construção poemática, principalmente o domínio do soneto, que o compõe de todos os tipos, como: o tradicional soneto clássico italiano (ou petrarquiano), composto de dois quartetos e dois tercetos; o soneto de formato shakespeariano, formado por três estrofes de quatro versos e uma última de apenas dois versos,  muito usado por Mário Faustino, e o soneto monostrófico de somente uma estrofe, formada pelos quatorze versos. A obra Sonetos da Paixão (Poema em 14 cantos), publicada por Chico Miguel em 1988, é composta em sua totalidade por sonetos monostróficos, em versos decassílabos. Na obra Areias, dos 42 poemas ali reunidos, 26 são sonetos. Haja vista a preferência atual pelas formas livres, o soneto ainda se mantém como expressiva manifestação da poesia lírica. Mesmo aqueles poetas ditos modernistas de primeira hora são autores de consagrados sonetos, como Mário de Andrade (Quarenta anos), Ronald de Carvalho (O filho pródigo), Manuel Bandeira (Luar de maio) e Cassiano Ricardo (Céu e mar). Nas gerações que se seguiram à de 1922, o soneto também se faz presente nas produções de poetas, como Mário Quintana (Na minha rua há um menino doente), Jorge de Lima (O acendedor de lampiões), Cecília Meireles (Soneto antigo), Vinícius de Moraes (Soneto de fidelidade), Augusto Frederico Schimdt (Mar desconhecido), Carlos Drummond de Andrade (Encontro) e outros.

Além do soneto, entre as diversas formas fixas de poesia trabalhadas por Chico Miguel, vale mencionar o acróstico, numa de suas raras feições, denominada teléstico, cuja particularidade consiste na construção da coluna do nome em destaque a partir da última letra de cada verso:

Elisa

 

De tuas unhas quero o esmaltE

              do vestido – o carnavaL

                             do riso – a boca que rI

              do corpo – todas as carneS

             de dentro do corpo – a almA

                                                                                    

(MOURA, 2021, p. 68)

 

                                                                              

Na poesia de Chico Miguel, o tom memorialista (autobiográfico), que reaviva no leitor cenas do passado e os sentimentos que este desperta, é recorrente nos poemas Relógio, Recado a Papai Noel e Canção do Vento, como nestes versos:

                               Quero ir à casa do vento,

                               ver tudo quanto ele faz

                               Quando sai de madrugada.

                               - Ah, meu tempo de menino!

                               O vento leva e não traz

                               [...]

                               Se veste fatiota nova

                               no feriado ou domingo.

                               Vento das minhas ideias,

                               tal como as águas dos rios,

                               levas tudo para o mar:

                               - O mar do meu coração!

 

                                                               Canção do vento (MOURA, 2021, p.30)

 

O sentimento da terra natal, como marca da vertente telúrica na obra poética de Chico Miguel, tem neste soneto o exemplo mais representativo desse tema em sua obra: 

                                Entre dois chapadões – terra bendita,

                                de alma mais pura do que a branca areia,

                                terra que ouviu, de minha mãe contrita,

                                rezas a Deus logo depois da ceia.

                              

                                És tão humilde e pequenina aldeia

                                que, pela vida em nosso peito habita.

                                Qual semente daquele que semeia,

                                és semente do amor – terra bendita!

                              

Terra e calor do sol, o frio do luar

a gigantesca sombra do juazeiro,

da carnaubeira, a voz a farfalhar

 

Vê-se, em roda à capela, o casario,

                                               como a adorá-la...Ó Jenipapeiro!

                                               De frente: o vale, o lajeado, o rio.

 

À minha Vila (MOURA, 2021, p. 22).

 

 

O tema da poesia é abordado com frequência pelo autor, como neste poema em forma de epigrama, extraído da obra O Coração do Instante, composição de origem grega, de curta extensão e de conteúdo concentrado:  

                               Libertar um anjo

                               Prender os demônios

devorar os enganos...

 

Nenhum poema é perfeito

ou simples

pra salvar o mundo.

 

Novo Epigrama (MOURA, 2016, p. 365)

 

Esse epigrama, de caráter metalinguístico, questiona em seus versos a própria significação do poema, pela voz do eu lírico em diálogo com o social. 

                Os temas filosóficos e existenciais que falam das questões universais do homem em seu cotidiano, como o amor, a morte, o tempo, a solidão, a saudade e a esperança também comparecem em sua obra. São exemplos os sonetos Espera-Esfera, Filosofia do Trivial, Perdida Esperança, Dúvida e C’est fini. Os poemas O operário, Caminhos, Milagre da divisão, Canto do amor sincero e Paródia a Camões abordam problemas sociais do Nordeste, comuns na sua região. Entre os vários motivos tratados, destacamos um deles, como o êxodo rural:   

                               Não dizem donde vêm

                               nem pra onde vão.

                               Os caminhos são mudos,

                               não sabem se vêm ou se vão.

                               [...]

                               Levam Joões (ficam Marias),

                               levam nuvem, levam chuva,

                               levam fomes, levam vidas

                               montadas em “paus-de-arara”

                               - Tudo a caminho do sul. 

 

                                                                               Caminhos (MOURA, 2021, p.26)

 

A intertextualidade constitui um dos recursos empregados com muita habilidade por Chico Miguel. Em diálogo com Da Costa e Silva, temos um exemplo de referência explícita ao poema Saudade, neste soneto intitulado Visão do Rio Parnaíba:

Parnaíba, te vejo intensamente

na dor de “velho monge” resignado,

a dar vida, prendido na corrente,

a derramar-te longe, e fatigado.

[...]

Nessa faina, ora calma, ora inquieta,

humildemente, carismaticamente,

cantas do canto que cantou o poeta.

 

                                                                               (MOURA, 2021, p. 46)

 

                Logo abaixo do título do soneto (Visão do Rio Parnaíba), o poeta esclarece o leitor entre parênteses: “Com o perdão de Da Costa e Silva, o maior dos poetas piauienses”. Essa advertência reforça a ideia de originalidade do poeta, ao abordar um tema tão recorrente em textos de outros autores. A paródia, outro tipo de intertextualidade, está presente nos sonetos Paródia a Camões e Vaidosos Mortos. O primeiro retoma o poema camoniano Sete anos de pastor Jacob servia, para relacioná-lo “às revisões salariais da classe trabalhadora, em 1965”:

                                               Quantos anos de escravo “jó” servia

                                               o patrão só por simples bagatela!

                                               Mas servindo ao patrão, servia a “ela”,

                                               enquanto o preço do feijão subia.

 

                                                                                                              (MOURA, 2021, p. 72)

 

                O segundo, alusivo ao soneto de Olavo Bilac “Virgens Mortas”, faz uma homenagem ao centenário de nascimento do Principe dos Poetas brasileiros.:

                               Quando um vaidoso morre e na terra se apodrece,

                               murcham flores vizinhas – cardos num momento,

                               para a glória da cinza – Isto é glória ou tormento?

                               Ao pé dele, é à pressa, atinam fazer prece.

 

                                                                                                              (MOURA, 2021, p. 73)

 

Quanto aos poemas em estrofes e versos livres, Chico Miguel os compõe conforme modernas e contemporâneas formas de expressão literária, com harmonia e musicalidade, como neste belíssimo poema lírico-amoroso, extraído do livro Poemas ou/tonais (1991), cujo ritmo se instaura no texto pela fusão da imagem com o significado que se apresentam simultaneamente, como experiência de percepção da realidade, ao revelar algo sobre nós mesmos ou sobre o mundo idealizado pelo eu lírico:

                               na flor de teus lábios

                                               me vi renascido

                                               e nos teus olhos grandes

                                               me fiz crescer

                                               quebrei silêncios

                                               gigantes

                                               acorrentei-me

                                               aos passos negados

                                               à carne trêmula

                                               às asas quebradas

 

                                               com as nuvens crianças

                                               veio o outro entardecer

 

                                               e na escureza das distâncias

                                               curamos incuráveis ânsias:

                                               - o céu não vai saber.

 

Na flor dos teus lábios (MOURA, 2016, p. 134).

 

                O universo poético de Chico Miguel tem suscitado da crítica inúmeros ensaios teóricos que o destacam como um dos nomes mais representativos da poesia brasileira. A exemplo de Manuel Bandeira, Chico Miguel acompanha as transformações literárias de caráter inovador, que tiveram como marco a Semana de Arte Moderna, adaptando-se ao modo de produção poética, nas formas mais inventivas da poesia, do concretismo aos dias atuais.

 

* Carlos Evandro Martins Eulálio, professor e crítico literário, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, segundo ocupante da Cadeira 38, tendo como patrono o poeta popular João Francisco Ferry.

 

Referências

 

ALVES, Castro. In Canção do Africano, extraída da obra Os Escravos, São Paulo: Martins, 1972.

 

MOURA, Francisco Miguel de. Areias. 2.ed. São Paulo: Life Editora, 2021.

 

--------------------------------------- Poesia (IN) completa. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2016, Coleção Centenário, 56.

 

Bibliografia consultada:

 

CUNHA, Helena Parente et al. Os gêneros literários. Teoria Literária 5ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

 

SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização literária do discurso. Rio de Janeiro: Elo Editora, 1984. (Bibliografia consultada)


sexta-feira, 23 de junho de 2023

DISCURSO DE JÔNATHAS NUNES EM FLORIANO (*)

 

Arte: Elmara Cristina



DISCURSO DE JÔNATHAS NUNES EM FLORIANO (*)

 

Senhoras e Senhores,

 



Vivi nesta querida cidade de Floriano, os dias da infância e os idos da mocidade. Rever Floriano, ainda que em pensamento, sempre foi motivo da mais incontida alegria e do mais puro entusiasmo. Reconheço porém, que nem todos se vestem de alegria ao rever a terra e cantar os dias de infância.

Da Costa e Silva já ausente,

Da Costa e Silva, triste sina,

Como se fosse um tormento,

Revia a infância Amarantina,

Na Asa de Dor do Pensamento!

Florianenses, meus conterrâneos,

Nas lonjuras por onde andei

E nas décadas vividas,

Vezes sem conta, me vi,

Viajando ano após ano,

Na doce Asa do Pensamento

Andando nas ruas de Floriano!

E me dou conta de que nessa mãe natureza, nada se compara com a emoção, com o riso do despertar de uma criança para a vida.

Muitas pessoas, eu uma delas, se compadecem com a visão do transeunte terrestre que passa por este mundo sem ter vivenciado a emoção do despertar de uma criança para a vida. Mas por que digo isso?

Senhoras e Senhores, a criança é a imagem mais estonteante que conheço, da mãe Natureza vista na retrospectiva do longo processo evolutivo da espécie. Nosso Universo como sabem, é cheio de Segredos e Maravilhas! E a beleza desse Tesouro Milenar se manifesta de mil formas. Posso aqui citar algumas:

- o sussurro de uma cascata;

- o brilho estelar matutino;

- o diadema do infinito;

- o canto do uirapuru;

- a sinfonia cósmica;

- o Silêncio intergalático;

- o colapso de uma estrela;

Ao tentar ver mais de perto os espasmos dessa Harmonia Suprema, encanta a todos a beleza matemática das Simetrias do Mundo.

No entanto, nenhum desses segredos e maravilhas exibe tanta magia como o riso de uma criança. Por que essas observações me ocorrem agora?

Por circunstâncias benfazejas, me vejo presente nessa querida cidade de Floriano. Ainda assim, não estou dizendo tudo. Sobreleva e muito, estar presente em Floriano na companhia de tão gradas personalidades do mundo intelectual piauiense: Integrantes da Academia Piauiense de Letras, da Academia de Letras e Belas Artes de Floriano e Vale do Parnaíba, e de expoentes outros da cultura piauiense. De tal forma que eu me sinto em situação análoga ao dia da minha posse na Academia Luso-Brasileira de Letras. Ao ouvir a lista dos patronos daquela Academia: Rui Barbosa, Padre Antonio Vieira, Castro Alves, Ramalho Urtigão, Camões, Olavo Bilac, e tantos outros da Luminares da Comunidade Lusófona, me retraí um pouco e perguntei a mim mesmo: rapaz, acho que estou indo longe demais! E agora confesso jamais sonhei estar presente em Floriano na companhia de tão seleto grupo de personalidades.

E, se me permitem, gostaria de convidar a todos para um passeio pelo passado distante de Floriano. Revivo a Floriano de antanho: dos tempos de criança e dos dias da mocidade. Situações pelas quais um dia passei! São tantas! Recomponho imagens, cenas e cenários! São tantos! Na minha frente um cipoal de instantâneos em movimento! O vai-e-vem de pessoas, gente indo, gente voltando, pessoas sentadas, pessoas andando! Gente saindo! Gente entrando! correndo! Em tempo de iphone, a mente me diz devo gravar todo esse cenário e mostrar depois aos entes queridos!



Espantado, observo que o celular não enxerga as cenas vistas por mim. O disco cinzento não tem conexão. O desfilar de imagens parece não ter fim! O lar, a rua, a escola, a igreja, o visual de pessoas especialmente lembradas!



Ouço vozes, sons, e figuras mais ao longe! Do Cansanção, do bairro do Leite e da cidade! Das missas de madrugada, e dos novenários! A Sambaíba de Dona Dorinha e seus bombons que ainda hoje me põem água na boca. As roças da Pitombeira e do Juá, contíguas ao Parnaíba, e separadas por uma cerca de arame farpado. O velho bairro do Leite onde moravam amigos como seu Cinobelino cabeleireiro, o velho Vitório, a família Romão e seu Ângelo, o finado Wash e Dona Clotilde, com os filhos Ferrer, Mariquinha e o irmão mais velho, Valdyr que da noite para o dia, se afastou de todos nós pra ir morar no Rio de Janeiro. Segundo diziam, queria ser soldado da Marinha. Floriano dos tempos do Zepelin; da rua do Bandeira onde a família do padre Zé Albino morava; da rua do Caracol, hoje Coelho Rodrigues; da rua do Fio, hoje Clementino Ribeiro, para onde nos mudamos, já aos onze anos. Os vizinhos, seu Joaquim Monteiro, Tidinha e Crispim, a família de Evinha, a família de Dona Ester, e pouco tempo depois, a família de Dona Clotilde Ferrer.



Floriano do riacho da Onça, da rua do Amarante de seu Mundin e Dona Isaura, da família Noleto, e Dona Maria de Deus cujo filho Moisés ficou doido e foi levado de vapor de Floriano pra Teresina, e a gente, mesmo criança, ainda foi ver a despedida dele, mesmo já doido, de vapor, na beira do rio. E mesmo doido, levado no convés do vapor, fazia discursos em voz alta. Tão alta e tão forte que a boca dele espumava e espalhava saliva pra todo lado.



Floriano de Calixto Lobo, do picolé do bar de seu Bento Leão, dos jumentos com cangalha e duas âncoras pegando água na beira do rio e levando pra vender na usina também de seu Bento Leão.



Floriano dos tempos do Orfila Leão e daquela Senhora cujo nome não lembro, que perdeu o juízo, e espalharam na cidade que ela estava era possuída de um espírito maligno, e nunca entendi como era que a gente acabava indo até a casa dela na altura da rua São João para vê-la possuída por esse espírito.



Floriano da beira do rio, do Vapor e das Balsas de talo de buriti, a rua Sete de Setembro, e nunca entendi porque, mas o pessoal só chamava rua do Mulambo.



Floriano das missas do padre Pedro, cinco horas da manhã de domingo, discursando na homilia, dirigindo-se aos fiéis falando do lado interior da grade do altar-mor da igreja. Levantando a voz com tanta intensidade, contra os protestantes e os maçons, que a gente mesmo criança, observava instantes em que ele ficava na ponta dos pés. Floriano do Mercado Velho onde havia de tudo, até mesmo tabuleiro com cachos de pitomba pra vender e ajudar minha mãe com alguns trocados. Floriano de seu Milad, do professor Binú, das professoras Jacy, Aliete, Moema Frejat, Zélia Martins e Mundiquinha Drumond. Floriano da Professora Josephina Demes.



Floriano das festas de primeiro de maio, da famosa disputa do “pau de sebo”, na União Artística Operária Florianense bem ali perto da residência de seu Abdias e Dona Noeme. Floriano dos desfiles de Sete de Setembro e das solenidades no Cine Natal organizadas por Otoniel Miranda, irmão de Iracema e Eldinê, filhos do Cheiro Miranda. Floriano do Cheiro Miranda, grande amigo de meu pai, chamava a atenção da gente quando aparecia montado num cavalo, mas de paletó e gravata.



Floriano dos dias de carnaval com aquelas moças fantasiadas de máscara e minha mãe nos afastando delas sob o argumento de que aquilo era coisa do demônio. Floriano das Congadas da rua do Amarante, das Pastorinhas e das festas de Reisado. Floriano das festas de São João, das Solenidades do Dia de Caxias, do Descobrimento da América, sempre com a participação daquele ser humano notável que era o Senhor Eleutério no Grupo Escolar Agrônomo Parentes



Floriano daquele Senhor de nome João Luis, Homem bem de vida e de residência ali bem próxima do Agrônomo Parentes e que havia mandado o filho seu, de nome, se bem me lembro, Nivaldo, estudar no Rio de Janeiro, e lá, esse jovem veio a falecer, pouco tempo depois, ao que se comentava na época, abatido por um raio fulminante quando passeava na areia da praia de Copacabana, onde fazia mau tempo. O corpo foi transportado de volta até Floriano e seu sepultamento comoveu a cidade toda, e seu pai construiu um mausoléu para eterna memória do filho que ele tanto amava.



Floriano de Dona Filó com os grupos de canto na Igreja; aquela senhora tão distinta e de presença constante nas atividades religiosas da paróquia; e do amigo Bispo, Sacristão da Igreja. Floriano de Dona Elvina, caridosa esposa de seu Mundico Castro, na época considerado o homem mais rico de Floriano. Floriano da Sapataria Lima, Farmácia Sobral, Farmácia Rocha, Farmácia Coelho; Floriano de Doutor Sebastião Martins que conheci e vi pela primeira vez, dentro de minha casa na localidade Cansanção, para onde ele foi numa tarde, quase uma légua de distância, consultar o mano caçula Aurimar, doente, acamado e anêmico. Não esqueço ele entrando em casa com uma valise na mão, e quando foi abrir, vi surpreso que a maleta dele era diferente das outras, abrindo e fechando não pela lateral, mas pelo meio. Floriano do Dr. Demerval, que ao me consultar ainda criança, comentou para minha mãe que eu tinha o coração dilatado, e essa informação me deixou intrigado e preocupado por muitos anos. Floriano de Doutor Oswaldo da Costa e Silva e de seu Raimundo José de Araújo Costa, no Consultório de quem minha mãe me levava e eu ia morrendo de medo, pois sem anestesia, a dor de dente era insuportável. Floriano do Cine Natal, do Politeama, e da Avenida de Seu Bento Leão, do Calixto Lobo, do Tufi e do seu Abdalla, do Salomão Mazuad, do Floriano Club, e do Salomão Barguil, da família Bucar, e da Janete Bucar, esta garota era nossa colega contemporânea do Ginásio Santa Teresinha e tida por todos nós como a garota mais bonita do Ginásio.



Floriano da Avenida do seu Bento Leão, de onde saia tantas vezes estampando no rosto a alegria de uma criança chupando um picolé. Floriano dos dias de Circo e dos dias de pelada de futebol ali na praça da Igreja, quando ainda não era calçada.



Floriano do Agrônomo Parentes, do Odorico Castelo Branco e do Ginásio Santa Teresinha, onde meus olhos e a mente foram se abrindo para a vida. Floriano de Jacy Sobral, minha primeira professora, que algumas vezes com a mão sobre minha mão, me encaminhou no traçado das primeiras letras. Floriano de Eliete Sobral, minha professora tão bonita, no Odorico Castelo Branco. Floriano do professor Madeira, e meu professor de Francês no Ginásio Santa Teresinha, e que morava ali na praça do Mercado velho, próximo à residência de seu Milad, e que certo dia comoveu seus alunos com a notícia de que tinha ficado doido e a primeira providência depois de doido foi soltar todos os passarinhos do viveiro que tinha em casa, e nunca mais apareceu pra dar aula. Floriano do Juá e do Bom Jardim e do Riacho Fundo, onde fui tantas vezes com alçapão, pés descalços e braços nus, tentando pegar algum canarinho amarelo.



E finalmente, Floriano de minha mãe, Dona Cota, pela alegria que tinha em dizer que eu era seu filho, pela felicidade que eu sentia ao lado dela, estando em casa ou lhe fazendo companhia, vezes sem conta, andando a pé, nas ruas, praças e casas de Floriano, e conhecer tantas famílias de seu bem querer, com Dona Isaura, Dona Diva, Dona Noeme, Dona Clotilde, e tantas outras. Floriano de Aurino Nunes, meu pai, pela resistência espartana com que enfrentou a luta para criar e manter família tão numerosa, sobretudo em face da doença que sacrificou grande parte de sua vida.



E finalmente Floriano daquela criança para quem esta cidade foi tão hospitaleira, gentil e acolhedora, e ainda além de tudo isso, serviu de verdadeira base de Cabo Canaveral, a base do Cansanção, de onde partiu para a descoberta do mundo, para a conquista de um lugar ao sol E ganhou o mundo, tendo conquistado o trunfo e o triunfo de haver constituído com Maria Helena, uma família em que os quatro filhos são todos PhD.



Por último, volto minha vista para os Acadêmicos da Academia Piauiense de Letras, e Academia de Letras e Belas Artes de Floriano!



Esta Solenidade, histórica é a primeira da APL em Floriano nos seus cento e seis anos de profícua atividade literária.



LETRAS E ARTES! ARTES E LETRAS!



Aqui se cruzam dois mundos: o das LETRAS e o MUNDO DAS ARTES!



O Conjunto Interseção desses dois MUNDOS, Senhores, é a ARTE LITERÁRIA?



A Magia da Arte explora a beleza das Simetrias da Natureza, vem lapidando o mundo de símbolos, sons, fonemas elaborados no cérebro humano, e erigindo o edifício da ARTE LITERÁRIA.



Senhores, A ARTE DIVINA DA POESIA É A QUINTESSÊNCIA DA ARTE LITERÁRIA.



Somente a arte divina da poesia poderia descrever, com perfeição, os dias da infância e os idos da mocidade vividos em uma cidade tão querida como Floriano. A minha frente, desfilam quatro desses pró-homens da poética literária de alto nível: Da Costa e Silva, Casimiro de Abreu, Chico Miguel e Elmar Carvalho!



Inebriado de emoção da infância amarantina, o Príncipe dos poetas piauienses, Da Costa e Silva, certa feita, das lonjuras do Rio de Janeiro, afirmou sobre Amarante:



.... “minha Terra é um céu....se há um céu sobre a Terra!”!



Imagino, então, se Da Costa e Silva tivesse conseguido “subir”, ainda que fosse a nado, as águas do Velho Monge, e passado sua infância em Floriano! Teria conhecido, e, por certo, ficaria abismado com o pôr de sol da beira-rio da terra de Josefina Demes!







Mais ainda, o insigne poeta se sentiria igualmente cativado com o charme impar da mulher florianense! Maravilhado, anos mais tarde, é bem provável, Da Costa e Silva exaltaria, de forma muito mais incisiva, e usando o artigo definido do idioma de Camões, diria sobre Floriano:



“....minha Terra é o céu.....se é que o céu é aqui na Terra!”.



Que o diga o imigrante árabe, as levas de sírios e libaneses, aqui chegados nas primeiras décadas do sec. XX, e daqui nunca mais saíram!



E Casimiro de Abreu?.... descrevendo a infância em sua terra natal, aquele povoado escondido, bem ao lado da cidade de Macaé, no Rio de Janeiro, e que hoje guarda seu próprio nome! O grande vate fluminense vai até o fundo da arte literária mais pura, e desabafa no lindo poema:



MEUS OITO ANOS:



“Oh!....que saudades que tenho

Da aurora da minha vida

Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais!.....”.

......................................................

Conheço a Macaé interiorana, e bem posso afirmar: tivesse Casimiro de Abreu vivido a infância na terra de Janete Bucar, e varado as madrugadas alegres da beira-rio florianense, além dos lindos versos de – Meus Oito Anos, Casimiro de Abreu ainda acrescentaria:



A melhor parte da vida,

É sentir ano após ano,

A sensação incontida

De ter nascido em Floriano!





E o conterrâneo Acadêmico e poeta Francisco Miguel de Moura? Nascido lá nas bandas de Picos, na sua querida Francisco Santos, Chico Miguel, já homem feito, foi visto, certa feita, cantando a dor e a tristeza do retorno à terra berço!...em suas próprias palavras:



“ Oh casa onde nasci, já não existes!

Vi o sítio, pisei-me em tuas pedras...

Como rastro de dor, por que resistes?

Por que tantos espinhos ainda medras? ”



E me quedei perguntando: O que houve então, Chico Miguel?

O que te fez distante ficar?

Se é que a terra, o Riachão,

Nunca saiu do lugar!

A resposta, diriam todos:

O passado está a mostrar,

Nas arribadas do pai

O notívago, soturno

Miguel Guarani boiadeiro!

Foi-se embora o Riachão!

Meu torrão Jenipapeiro!





Comandante Chico Miguel, se o destino o houvesse premiado com a infância nas águas mansas da beira-rio de Floriano, seguramente sua vasta obra literária teria se dividido entre a Floriano do Parnaíba, e o Parnaíba de Floriano.



Finalmente me volto para o Acadêmico Elmar Carvalho. E me pergunto:

E se o grande poeta Elmar,

Sem precisar passar pano,

Pudesse na vida optar:

O NOTURNO das Oeiras?

Ou NOTURNÃO de Floriano?

O contraste emociona!

Se o NOTURNO mostra o passado,

O NOTURNÃO lembra o futuro!

Ali, se o passado chora!

No outro o futuro ri!

SE um é o passado Oeirense!

O outro, o Zepelin florianense!

Se um, o passado remonta,

No outro, o futuro desponta!

Floriano tão jovem, nascido já nos primórdios do Brasil republicano, tem sido reduto inapagável de um modelo de vida pacato, alegre, altaneiro, agradável e feliz. Floriano, Cidade Senhora de si e de seu futuro radiante! Já o NOTURNO de Oeiras, da terra Dagobertiana de Moisés Reis, tão bem descrito pelo poeta Elmar, reflete o contexto e os mistérios de um passado colonial multissecular! E que passado!



O NOTURNO Elmariano de OEIRAS não é o passado de volta ou volta ao passado. Mas representa, a um tempo, a miragem poética de instantes vividos na plebe rude, alguns deles carregados de tristeza e do realismo mais puro!



SÃO INSTANTES ELMARIANOS:



< meia noite nas Oeiras!

< silêncio de cemitério!

< fantasmas vão caminhando!

< o tilintar de louçaria!

< rangido em assoalho!

< no tablado, pancadaria!

< ruido em cada sobrado!

< badalada e tropelia!

< defunto tocando sino!

< Igreja sem campanário!

< visagens rezando em côro!

< mistério pra todo lado!

< donzelas que metem medo!

< um mundo mal-assombrado!





O NOTURNÃO de Floriano, traz o silêncio da noite florianense, ainda tão jovem. As madrugadas alegres da beira-rio, relembram o frenesi dos rodamoinhos sociais provocados pelo transporte fluvial, a agitação citadina dos zepelins, hidroaviões, e dos primeiros voos comerciais! As primeiras linhas de ônibus chegando e partindo: o ônibus do Chicão para Teresina e os ônibus do Araújo e do Josué Sepúlveda para o sul piauiense! E o sangue novo, benfazejo do imigrante árabe.



Minhas palavras aqui, constituem uma singela homenagem àquela juventude buliçosa dos idos da mocidade, emergindo em cada alvorada festiva da primavera florianense.

Muito obrigado.

(*) Discurso de Jônathas Nunes, pronunciado no dia 16/06/2023, na sede da Fundação Floriano Clube, por ocasião da instalação da Academia Piauiense de Letras em Floriano, quando foi lançado seu livro de memórias “De Floriano para o mundo”.