segunda-feira, 30 de outubro de 2023

O dia em que Saci Pererê deu um pau na turma do Halloween

 


O dia em que Saci Pererê deu um pau na turma do Halloween

 

Pádua Marques (*)

 

Fazia tempo que todo mundo esperava e finalmente aconteceu ali na baixada do São Luiz Gonzaga, próximo da casa do bispo. O encontro do temido Saci Pererê com aquele pessoal da Nova Parnaíba, os Halloweens, todos filhos de gente de dentro da rua e metidos a ricos. Eram uns cinco, se muito. Mas eram tudo rabo de burro. Gente que pro dê cá essa palha vivia aos bandos insultando com gracejos as filhas alheias mulheres, velhos, aleijados, essa gente que ia e vinha do Macacal no rumo da Grarita e dos Tucuns

 

Viviam esperando uma oportunidade pra bater no pobre morador do Macacal e que vivia de casa pra o trabalho numa oficina mecânica na rua Vera Cruz. Saci Pererê era aleijado, mas trabalhava muito na oficina do padrinho, seu Gervásio Coelho. O motivo da malquerença era uma brincadeira de mau gosto de alguns rapazes filhos de famílias dito ricas no Nova Parnaíba, ver o pobre Saci correr com uma perna só.

 

Saci Pererê era de paz, não mexia com ninguém, mas tinha uma vantagem de ser um grande capoeirista. Quem ensinou pra ele essa arte de seus antepassados ninguém até hoje soube dizer na Parnaíba. Muito feio, andava de calção vermelho e usava com um gorro na cabeça, na oficina era considerado um exemplo de funcionário e nos finais de semana era o goleiro no time do Cristal no Bariri.

 

Tinha já uns dezessete anos, negrinho taludo, mas tirando o aleijamento era muito querido por todos os vizinhos no Macacal e colegas de trabalho. Morava com a mãe, dona Dica, uma agregada dos Campos Veras, uma negra velha lavadeira de roupa, de canela fina, rosário de contas no pescoço, que costumava de vez em quando ir até a quitanda do velho Zacarias comprar um quarteirão de querosene pra alumiar a pequena casa de barro de duas portas, duas três janelas e apenas um quarto.

 

Naquele dia da briga, do encontro entre os Halloweens e o negro Saci Pererê o bairro Nova Parnaíba fedeu a cão sapecado! Tudo por volta do meio-dia, hora em que o negro Saci Pererê subia na hora do almoço pra casa. Vieram dois pela frente e três por trás os maiores, tudo no tope de quinze anos. Fecharam Saci Pererê. O mais afoito, um moleque de cabelos acobreados, com um pedaço de pau na mão, gritou pro aleijado correr dentro.

 

Ele de onde estava não se mexeu. Tentou abrir caminho. Um segundo fechou a passagem entre o muro da casa do bispo Dom Felipe Conduru Pacheco até a calçada. Saci Pererê recuou e procurou em vão uma pedra. Mas naquela altura o terceiro, um moleque franzino e de cara ossuda lhe deu um chute nas costelas. O chute fez Saci Pererê se abaixar. Na volta o aleijado deu um voo por cima dos dois mais próximos e já caiu derrubando o quarto, um dos maiores, que estava ali mais pra observar.

 

A partir daquele instante foi vista uma das maiores e mais extraordinárias brigas de rua perigosas já acontecidas na cidade de Parnaíba. Saci Pererê, uma figura das mais conhecidas do Macacal estava ali no Nova Parnaíba em desvantagem brigando com cinco rapazes. Foi cangapé, rabo de arraia, estrelinha pra ninguém botar defeito.

 

Nessa altura vinha passando uma mulher puxando uma menina e ao invés de procurar ajuda pra acabar com aquele contenda, ficou foi olhando se tremendo toda. Era uma briga desigual, quatro rapazes tentando bater em um pobre aleijado! Saci Pererê calculava os golpes e ia se defendendo. Saci lutava com a fúria de um cachorro doido. Os agressores abriam roda a foram fechando. E foi juntando gente na rua, os estudantes do Ginásio São Luiz Gonzaga jogando areia e até aposta estava sendo feita.

 

Foi coisa de uma meia hora de luta desigual. Quatro contra um! Saci estava cansado, sem seu gorro, todo coberto de areia, mas não desistia. E foi chegando mais gente, uns tentando apartar a briga, outros deixando, os gritos, os assobios, nomes feios, filha dessa e filho daquele, mata esse negro aleijado, faça isso com o pobre não!

 

Alguém se lembrou de bater na porta da casa de Dom Felipe Conduru Pacheco, que naquele momento ainda devia estar chochilando depois do almoço, outro mais adiante pensou no prefeito Acrísio Furtado ou do outro lado nos Campos na igreja de São Sebastião, de padre Roberto Lopes. E a briga ia engrossando o movimento do Nova Parnaíba. No meio daquele alvoroço sem tamanho, alguém já estava no caminho da casa da dona Dica.

 

E aqueles rabos de burro, meninos de boas famílias, que não queriam nada na vida, de pais metidos a políticos importantes, muitos corretores de negócios nas grandes firmas comerciais na rua Grande, insultando em plena luz do dia um pobre negrinho aleijado, trabalhador de uma oficina de seu Gervásio Coelho! Que já nem se importavam com a presença de tanta gente. Coisa de chamar a atenção de toda a Nova Parnaíba!

 

Saci Pererê estava cansado, sujo de areia, quase nu, suado, tinha perdido sua hora de descanso do almoço, mas os cinco rapazes do Nova Parnaíba, esse era filho de doutor fulano de tal, aquele mais lá, sobrinho do professor sicrano, esse aqui era filho de dona beltrana e assim as identidades iam aparecendo.

 

Os rapazes tinham levado uma surra e tanto. Felizmente não houve sangue. Passava de uma hora da tarde, muita gente voltando pra seus serviços no centro de Parnaíba. A briga só acabou com a chegada de um tocador de tuba da Banda Municipal que tirou o cinturão e saiu cobrindo todo mundo. Correu gente batendo o pé na bunda, tanto os brigões quanto quem fazia plateia. O cinturão foi descendo nas costas, no espinhaço, nas pernas, onde fosse pegando. O músico não queria conversa e nem de saber quem era esse ou aquele. Todo mundo já pra suas casas! E Saci Pererê, que tratasse de tomar vergonha e deixasse de procurar briga com filhos de autoridades!!

 

*Pádua Marques, romancista, cronista e contista. Membro efetivo da Academia Parnaibana de Letras e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba.

domingo, 29 de outubro de 2023

AUTOBIOGRAFIA

 

Fonte: Google

AUTOBIOGRAFIA


Elmar Carvalho

 

Após seguir os mais ásperos caminhos,

Napoleão avesso, eu próprio me coroei

com uma coroa de cravos e espinhos.

Subi montes, rompi charcos,

atravessei grutas sem luz,

com os ombros esmagados

ao peso de férrea cruz.

Em noites de névoas e luares

sofri e cantei perdido nos lupanares.

Em dias de sol escaldante e incandescente,

fui casto Dante

e Baudelaire delirante e indecente,

pelas tardes mornas de ressacas e orgias.

No Olimpo a que subi em busca

dos mitos, à procura de Zeus,

pregaram-me numa cruz onde

puseram irônica tabuleta: “Rei dos Judeus”.

Por frígida e pálida manhã,

envolto em solidão e neblina,

rasguei e perdi minha toga purpurina.

Cheio de ódio e de amor,

sorvendo taças e mais taças

de bebida balsâmica e malsã,

nos bordéis de Eros, nos templos de Pã,

e nos palácios dourados de Mefisto,

onde sucumbo e resisto,

no meio de mentira e desengano,

fui Satã,

fui Cristo,

fui Humano.

 

Te. 17.11.95 – 04:25h

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

O ABANDONO DO JERICO SARNENTO


Fonte: Elmar Carvalho


                     

 O ABANDONO DO JERICO SARNENTO

 

Elmar Carvalho


Quando saía, à tarde, para minha caminhada, deparei-me com um jumento à porta de minha casa. Parecia cansado, com aspecto doentio, como se estivesse à morte; deu-me a impressão de haver sido covardemente abandonado pelo dono, para morrer em local distante, e não lhe dar o trabalho de se desfazer do cadáver.

 

Apresentava feridas no corpo. Seu pelo era falhado, amarfanhado, sem brilho, como se tivesse sarna ou outra doença semelhante. Era magro, como se passasse fome, e tinha as patas tortas, em virtude, talvez, de já haver sofrido algum acidente, provavelmente de trânsito. Roçava o pelo no poste, certamente na intenção de mitigar as coceiras da pele sarnenta. Quando me aproximei, para fotografá-lo, me olhou, com resignação, mas sem medo. Talvez esperasse alguma bordoada, recordando-se de algum fato passado.

 

Outrora, os jumentos eram queridos e respeitados. Eram úteis, seja para o transporte de carga, seja para o de pessoa. Tem muita força; desproporcional para o seu porte. Por isso, eu os comparo a um pequeno trator, com tração nas quatro patas. Hoje, numa época em que quase toda família possui um carro ou uma motocicleta, seja de primeira ou de quinta mão, os jericos foram “encostados”, mesmo na mais remota zona rural.

 

Os carroceiros preferem um burro, que é maior,  tem mais força e é mais veloz. Muitos jegues vivem abandonados, à margem das estradas, correndo risco de vida e pondo em risco a vida dos motoristas e motoqueiros. A respeito do jumento, já escrevi uma crônica, da qual extraio o seguinte trecho:

 

“É um animal dócil e paciente. Segundo a tradição, foi o escolhido para conduzir a Virgem Maria e o Menino Jesus, na fuga para o Egito, evidentemente com a presença de São José, na constituição emblemática da Sagrada Família. Provavelmente tenha sido a sua proverbial docilidade, mansidão e humildade a razão dessa escolha e honraria.

 

Como a maioria desses animais ostenta uma mancha sobre as pás dianteiras, considera o povo simples, na voz da lenda, que essa marca é o sinal milagroso e honorífico do xixi com que lhe ungiu o Salvador, como uma forma de homenagem e gratidão pelo serviço prestado. Depois, encerrando apoteoticamente sua participação na Bíblia, foi o escolhido por Cristo para conduzi-lo em sua entrada triunfal em Jerusalém”.

 

Quando retornei da caminhada, vi o jerico mais animado, a provar que a vida é forte, surpreendente e dinâmica, a pastar o renitente e insolente capim de burro, que nascera, quase por milagre, por entre as pedras do calçamento. Depois, não mais o vi. Não sei que rumo terá tomado. E jamais saberei que destino a vida ainda lhe reserva, além da ingratidão daqueles a quem serviu.

(Do livro Diário Incontínuo, registro do dia 19 de junho de 2010)

domingo, 22 de outubro de 2023

MUSA MEDUSA

Fonte: Google

 

MUSA MEDUSA


Elmar Carvalho

 

Sem arautos

sem pajens e sem bagagens

inesperadamente chegaste

sem anúncios e sem presságios

egressa de sonhos e miragens

e tão inesperadamente te foste

no mesmo sonho que te trouxe.

E na dor

intrusa que me restou

a Musa se fez Medusa.

 

           Te. 09.08.95 – 1h

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

CORREDORES, UM LAGO NA CAATINGA

César Carvalho, Zé Francisco Marques e Elmar Carvalho   Foto: Antônio José



            

CORREDORES, UM LAGO NA CAATINGA


Elmar Carvalho

 

No domingo, fomos eu, meus irmãos César e Antônio e o Zé Francisco Marques à barragem dos Corredores, distante cinquenta quilômetros da cidade de Campo Maior. Deixamos a estrada asfaltada, que vai para Castelo e São Miguel do Tapuio, e seguimos por uma carroçável. Em certo ponto, encontramos um grande rebanho de gado bovino, tocado na retaguarda por dois vaqueiros, cada qual em seu cavalo, devidamente paramentados, como nas músicas de Luís Gonzaga, o inesquecível Rei do Baião, com seus ternos de couro, ou perneira e gibão, além do indispensável chapéu de couro, que lhes protege dos espinhos e galhos secos do agreste.

 

Fiz questão de assinalar que os vaqueiros estavam a cavalo porque hoje não é rara a figura dos vaqueiros motorizados, a campearem em suas barulhentas motocicletas, de buzinas estridentes, que já não usam o bucólico e melancólico aboio, que parece tanger e amansar as reses. Conduzi a picape lentamente, enquanto os bois se afastavam do leito da estrada, de modo que pude passar sem nenhum problema.

 

As vacas seguiam pachorrentamente, imperturbáveis, como impassíveis matronas. Nada lhes apressava o passo nem lhes alterava a elegância do andar, quase desfile. As corcovas dos novilhos se destacavam, a balançar de um lado para outro, ao compasso da marcha. Nesse percurso a gente se depara com a beleza seca, árida, agreste da caatinga, que nos faz recordar as histórias e fotografias de Lampião e seu bando de cangaceiros.

 

Na paisagem plana do tabuleiro, recoberto pelas gramíneas e capim mimoso, surgem os arbustos da mata rala e a beleza agressiva e espinhenta dos mandacarus, xiquexiques, macambiras e coroas-de-frade, e esparsas moitas de mufumbo, de folhagem densa, a alegrar a aridez da paisagem, em que repontam a graça dos leques das carnaubeiras. Algumas cabras pastavam, enquanto outras buscavam a sombra de alguma árvore mais copada, como nos poemas de Dobal.

 

O lago de Corredores é um mundão d'água, insolitamente perdido e encravado na sequidão das pedras e da caatinga. Para não termos o trabalho de armar nossa barraca, nos dirigimos a uma palhoça que se encontrava desocupada. Pelos cocôs espalhados, logo vimos que ali se abrigavam caprinos, à noite. Quando nem bem nos acomodamos, logo chegou um homem, numa motocicleta, a nos perguntar se não desejávamos alguma coisa. Percebemos que ele queria marcar território e faturar algum dinheiro. Encomendamos uns espetinhos, e demos como pago o nosso tributo.

 

Ao som de boa música, degustamos um delicioso tira-gosto que trouxemos, a contemplar sem nenhuma pressa a beleza do lago e dos morros que lhe dão forma e ornamento. No retorno, fotografei um cemitério campestre, abandonado na solidão e no abandono do abandonado semiárido. Com o êxodo rural, é muito provável que até as almas tenham se exilado daquele campo santo do sertão. E já não entoem os miseres e excelências nas noites mortas do ermo. 

22 de junho de 2010

domingo, 15 de outubro de 2023

AMOR CIGANO

Fonte: Google

 

AMOR CIGANO

 

Elmar Carvalho


A cigana jogou as cartas da sorte

e leu afagando as linhas tortuosas

que sulcam a palma de minha mão.

Falou sussurrando

de ascensões e naufrágios

entrevistos nos presságios.

Prometeu um grande amor

que breve encheria meu vazio coração.

Enfeitiçou-me e se evadiu

por ondulosas colinas

cheias de margaridas e rosas,

eritrinas e neblinas.

E me deixou repleto o coração

apenas de urtigas e saudade

a cigana leviana que leu

e releu a palma de minha mão.  

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

BULLING E OUTRAS MAZELAS HODIERNAS

Fonte: Google

                         

BULLING E OUTRAS MAZELAS HODIERNAS


Elmar Carvalho

 

Fui convidado pelo professor Alexandre Mota a proferir hoje, na Unidade Escolar ABC da Alegria, uma palestra para os alunos e seus pais, a respeito de disciplina e do respeito que o estudante deve ter para com seus mestres. Estavam presentes, entre outros, a diretora, professora Rejane Helal, a presidente do Conselho Tutelar, Márcia Rejane, o presidente do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, senhor Raimundo Inês, o assessor jurídico da Prefeitura, Dr. Hilton Araújo.

 

Obviamente, falei sobre disciplina, respeito, hierarquia, amor, etc. Mas, sobretudo, enfatizei o fato de que se o aluno não presta atenção às aulas, ao que o professor está explicando, quem mais se prejudica é ele próprio, uma vez que o mestre irá receber o seu vencimento normalmente. Falei que, até para ser gari do município, vigia de uma praça, o interessado teria que ser aprovado em concurso público, e lhes disse que mesmo as empresas da iniciativa privada fazem os seus testes seletivos, inclusive com relação ao uso da informática.

 

Chamei-lhes a atenção para o fato de que somente através do estudo eles poderão obter uma melhor condição de vida. Entretanto, deixei claro que a disciplina, a orientação, os conselhos e mormente os exemplos devem partir, em primeiro lugar, do seio da família, e desde os primeiros anos de vida, pois quando o jovem é acostumado a não ter limites nem freios dificilmente os aceitará após os doze anos de idade.

 

Contudo, deixei claro que, numa época em que, em muitos casos, a mãe e o pai trabalham fora de casa, há que haver também a contribuição da escola na educação dos jovens. Todavia, quando o jovem não teve essa base educacional em casa se torna muito difícil a contribuição dos mestres, porquanto essa criança ou adolescente já está acostumada a não ter limites, a não ter regras de convívio.

 

Hoje, vê-se falar em bullying e em professores acuados e intimidados por alunos. Talvez isso seja provocado pela falta da presença ativa dos pais na criação, orientação e disciplinamento dos filhos. Tenho dito e repetido que se a sociedade não está boa é porque as famílias, em geral, não estão boas, pois o que é a sociedade senão a soma de todas as famílias?

 

Provavelmente, numa época de uso avassalador de audiovisuais, internet, celulares, etc., a escola precise repensar seus métodos e equipamentos para melhor atrair a atenção do corpo discente. Suponho deva ser inserida na grade curricular uma disciplina que ensine ética, cidadania e noções ecumênicas de religião, pois todas as religiões pregam o bem, a caridade, a generosidade e a fraternidade.

 

Além disso, a escola e o poder público precisam ocupar o jovem com esporte, literatura, música, artes plásticas, dança, teatro, gincanas culturais, etc., para tirar o jovem do ócio nocivo, que pode levar às drogas e à prática de atos infracionais. Não sendo da área pedagógica e esportiva, pouco sei; mas sei que algo de novo precisa ser feito. Como não poderia deixar de ser, falei no amor, em Cristo e em Deus.

(Extraído de Diário Incontínuo, 16 de junho de 2010)

terça-feira, 10 de outubro de 2023

As três engomadeiras do Curre

Fonte: Google

 

As três engomadeiras do Curre


Pádua Marques

Contista, cronista e romancista


Naquele fim de tarde de sexta-feira, já o sol quase se pondo pra os lados da Ilha Grande de Santa Isabel, a ainda menina Noca ficou parada na frente do portão da casa do advogado Felício Nogueira, esperando ser atendida. Vinha trazer as roupas lavadas e engomadas da casa de um dos homens mais ricos e ditos de fama de Parnaíba, um homem conhecido até fora do Brasil, que falava vários idiomas, conhecia terras estrangeiras e diziam alguns, que era casado com a filha de um ministro de Getúlio Vargas. 

Noca bateu palmas duas vezes. Depois mais uma vez. E foi aí que a porta se abriu e lá de dentro saiu um homem muito elegante. Logo atrás vieram duas meninas, com idades entre dez e doze anos, lindas, louras. As meninas olharam pra mocinha na calçada e sem darem importância voltaram de onde vieram. A entregadora de roupa engomada ficou alta do chão com aquela visão repentina. Felício Nogueira perguntou seu nome e muito educado, quis saber como estava sua mãe, a dona Nonata.

A mocinha vinda do Curre, nas brenhas da Guarita e perto da lagoa do Bebedouro, quase derruba o tabuleiro com as roupas. Noca havia atravessado a Parnaíba inteira naquele cair de tarde. Olhou rápido aquele homem fino, bem afeiçoado e vestido com as roupas que ela e as irmãs levaram e engomaram na semana passada. Sentiu até uma grande satisfação pelo que fazia. Foi quando Felício Nogueira abriu o enorme portão e mandou que ela fosse pela calçada até a porta da cozinha.

Lá encontrou a criada, uma negra magra e sem graça, debruçada na mesa cortando uns legumes ou alguma outra coisa de comer, talvez uma torta, pra o jantar na casa de Felício Nogueira. De onde estava deu pra ouvir as duas meninas brincando em algum cômodo na parte da frente. Mas não ouviu voz de mulher. Sem muito o que dizer, Noca entregou o tabuleiro de roupas pra mulher, que na mesma hora seguiu pra dentro de um quarto em pouco depois. 

Noca disse que sua mãe, Nonata, lá do Curre, mandava entregar a roupa lavada e engomada da semana. A cozinheira de doutor Felício Nogueira nem prestou atenção naquela puxada de conversa da mocinha. Foi logo tirando do bolso do vestido duas cédulas de dinheiro pra o pagamento do serviço. Noca ainda pensou pedir um copo com água, mas achou melhor não arriscar. Foi voltando por onde veio e já no portão viu a rua larga, as casas enormes com jardins bem cuidados daquela gente rica da Parnaíba.

A volta pra casa foi igual as outras em que veio entregar a roupa lavada e engomada nas casas dos ricos. A areia grossa do chão entrando pelo solado dos pés e batendo no tamanco gasto pelo uso. Noca agora pensava e recordava que esteve muito próximo, dentro mesmo, da cozinha de uma família rica, família que comia tudo do bom e do melhor todos os dias e de vez em quando até uma torta de sardinha em lata. E sua boca encheu de água de desejo de comer sardinha em lata. Ela, a mãe e as duas irmãs certamente nunca haveriam de comer sardinha em lata. 

Em casa no Curre, a vida de sempre. Depois de um dia puxado com o ferro de brasa pra frente e pra trás em cima das roupas, ficar no cair da noite na porta da rua e ver de longe o carroceiro Simão, seu vizinho, chegando de um dia de trabalho na praça do coronel Jonas, e os negrinhos seus filhos correndo pra receber um agrado. Dona Cecília, sua mulher, vinha lá de dentro chamando pra que entrassem. Nas outras casas de taipa e baixas indo em direção da lagoa do Bebedouro, aqui e ali uma janela aberta deixando ver de longe uma lamparina acesa. E vindo da beira do alagado aquela zoada dos grilos incomodando a chegada da noite na Parnaíba.

A velha Nonata andava se queixando das vistas. Em chegar a noite e se punha a reclamar que não enxergava um palmo à sua frente. Era um sacrifício alcançar a rede na hora de dormir. O jeito era pedir pra Benedita ou pra Francisca que lhe levassem pra camarinha. Se bem que Benedita, a mais feia das três, naquela altura da noite havera de estar mascando fumo na porta da cozinha. Era mania dela e ninguém que se metesse. O jeito era chamar Francisca.

Francisca. Serena, alva, de pouco falar e muito menos reclamar de alguma coisa. Nasceu pelos poderes de Deus e de São Francisco. Nonata quase morre. Naquela altura da vida de Nonata o marido já havia morrido depois de ser mordido por uma cobra quando pescava numa tarde na beira da lagoa do Bebedouro. Quincas chegou a trabalhar com o seu Cortez no Igaraçu quando a Parnaíba estava com bastante movimento e corria dinheiro no Porto Salgado com as firmas de coco babaçu e cera de carnaúba. 

Depois as coisas pioraram e ele foi mandado embora com uma mão na frente e outra atrás. E a agora viúva, Nonata ficou sozinha e criando as três filhas debaixo de toda sorte de dificuldades. Mas prometeu a São Francisco que, quando a filha fosse grande e ela Nonata ainda com sustança nas canelas, havera de ir ao Canindé e entrarem as duas de joelhos até o altar. Mas o tempo foi passando e as dificuldades crescendo. A viúva de Quincas do Cortez teve que trabalhar como engomadeira junto com as filhas, naquela altura já umas mocinhas.

O certo é que entre uma lavagem de roupa aqui e outra ali, Nonata foi sendo conhecida por todas as famílias do centro de Parnaíba. Lavava e engomava. E de quinze em quinze dias as filhas Benedita, Noca e Francisca vinham nos fins de tarde com os enormes tabuleiros de roupas descendo no meio das areias fofas da Guarita no rumo da casa do coronel Jonas Correia, do seu Ernani Prado, do comerciante Antônio Tomás, do doutor Mirócles Veras e outros mais, como o advogado Felício Nogueira. 

Um dia já no final de setembro, quando muita gente em Parnaíba já marchava a pé ou ia de caminhão pra o Canindé, uma viagem sofrida e cheia de perigos, Francisca disse pra Nonata que era chegada a hora de ela pagar a promessa sozinha. Iria ao Canindé e na porta da igreja iria caminhar de joelhos até o altar. Havera de pagar a promessa pelas duas. A mãe já estava em fundo de rede e ela, a filha mais nova, que passou aquele tempo todo guardando uma moeda aqui e outra ali pra aquela viagem, não tinha como escapar. Se juntou a umas famílias e outras pessoas e numa manhã foram a caminho do Ceará. 

Seriam dias e dias dormindo ao relento, parando aqui e mais ali na frente, comendo farofa de carne seca e alguma banana, bebendo água guardada em quando de passagem por alguma povoação. Mas a sorte de Francisca estava traçada. Pelo caminho os romeiros da Parnaíba iam se juntando a outros e aquela multidão ia seguindo. Mas entre aquela gente havia uma mulher que vendo Francisca nova e alva, achou que a moça era mulher da vida. E numa noite enquanto todos descansavam, a mulher possuída por um ciúme sem sentido, correu a mão numa faca e golpeou Francisca várias vezes. Dias depois toda a Parnaíba ficou sabendo que uma das três filhas da engomadeira Nonata, moradora do Curre, havia sido assassinada no caminho de Canindé. 

domingo, 8 de outubro de 2023

FLAGRANTES

Fonte: Google

 

FLAGRANTES


Elmar Carvalho

 

no céu azul

um urubu

 

sob o negror

do guarda-sol

o pelotão azul

de teus olhos

da sombra

me fuzilou

 

           Te. Dom. 06.08.95

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

QUASE QUASÍMODO

Yashin, eleito o melhor goleiro do mundo

           

QUASE QUASÍMODO


Elmar Carvalho

 

Acabei de assistir ao jogo da Seleção Brasileira contra a da Coreia do Norte. Jogo morno, sem lances emocionantes e sem nenhuma jogada excepcional. O Brasil venceu pelo magro placar de 2 a 1, com gols de Maicon e Elano. O grande goleiro Júlio César, atualmente considerado o melhor do mundo, que vinha há várias partidas sem ser vazado, praticamente não teve trabalho. Quase que o seu trabalho consistiu apenas em tentar impedir o gol que sofreu.

 

Terminei por me lembrar dos meus tempos de golquíper, sobretudo dos tempos em fui jogar algumas partidas no campo do Rabo da Gata, que ficava perto do pontilhão da estrada de ferro, no bairro que depois passou a se chamar Paulo VI. Os filhos do falecido Luís Pinto, dentista prático e funcionário dos Correios, organizavam um time com o pessoal das imediações da chamada “rua da pista”, no trecho próximo de onde moram o senhor Brito e o doutor Zé Laurindo, e acertavam os jogos com o time da região do outro lado do açude, como se dizia.

 

Numa dessas vezes, o Otaviano insistiu para que eu não fosse, no intuito de que eu atuasse no campinho do Leopoldo Pacheco, como de costume. Mas eu me sentia honrado com a confiança que o Luís Pinto Filho, o seu irmão Deus Luís, que, brincando, chamava de diabo Luís, e os seus companheiros depositavam em mim, como goleiro, e aceitei o convite; até porque eu já tivera algumas atuações muito boas no campo do Rabo da Gata, a fazer umas voadas acrobáticas e cinematográficas.

 

No auge da empolgação de meus dezessete anos, quando eu vi o atacante Garrafinha se aproximar com a bola dominada para me fuzilar com um “tirambaço”, já que ele era habilidoso, não vacilei e corri velozmente para me arremessar a seus pés e bloquear o chute. Esse atleta, ou por certa maldade ou por imprudência ou porque já não houvesse mais tempo de se desviar, chutou fortemente e me atingiu o rosto em cheio.

 

Creio que cheguei a ter um leve desmaio. Vi, enevoados, os jogadores curvados sobre mim, preocupados com a gravidade do acidente ou incidente pebolístico. Foi a mais grave contusão de minha vida. Isso me tornou mais prudente e mais precavido, para não mais me arriscar desnecessariamente.

 

No dia seguinte, quando o Otaviano foi me chamar para o jogo no Leopoldo Pacheco, tomou um grande susto quando abri a janela de meu quarto, e ele viu o meu olho direito com um coágulo sanguíneo e a área próxima inchada e com um grande hematoma. Dizia ele que eu parecia o Quasímodo, ou seja, o Corcunda de Notre Dame, ou outro protagonista de um filme de terror.

15 de junho de 2010  

domingo, 1 de outubro de 2023

AMOR

 

Fonte: Google


AMOR


Elmar Carvalho

 

Áspero e macio

este amor feito

só de cio.

Amor que de tão puro

não tinha pudor

que de tão forte

sem motivo se partiu.

Amor que de tanta vida

era também morte

que de tanto sangrar

era faca que se fez ferida.

Amor que renascido

se consumia em sua via

de agonia.

         Te. 04.12.89