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José de Freitas: a Cidade da Memória e da Saudade
(Documentário cinematográfico de Elmar Carvalho)
Por Carlos Evandro M. Eulálio*
Saudade! És a ressonância
De uma cantiga sentida,
Que,
embalando a nossa infância,
Nos
segue por toda a vida.
Da Costa e Silva
No documentário cinematográfico “José de
Freitas: a cidade da memória e da saudade”, a história de José de Freitas é contada e
cantada pelo romancista, cronista e poeta Elmar Carvalho, num recorte cronológico
memorialístico, entre o ano de 1970,
quando ele viveu nesta aprazível cidade,
aos 14 anos, num curto período de sua infância,
e os dias atuais em que a revê aos 67 anos de idade. Elmar é o narrador
personagem do documentário.
O teórico desse gênero cinematográfico, Bill
Nichols, um dos intelectuais mais influentes da academia norte-americana
contemporânea na arte do cinema, autor da conhecida obra Introdução ao Documentário, diz que “o documentário não se trata de
uma reprodução da realidade, como na maioria das vezes é interpretado pelo
público, mas de uma representação do mundo. Uma visão de mundo com a qual talvez nunca
tenhamos deparado antes, mesmo que os aspectos do mundo nela representados nos
sejam familiares”. Conforme ainda Bill Nichols, essa representação de mundo acontece
sempre do ponto de vista de quem produz o documentário. No documentário em
análise, o eu lírico é a “voz” do texto cujas evocações ou descrições nos
permitem ver José de Freitas de uma nova maneira, com um outro olhar.
Há inúmeros modos de compor documentários,
sendo o mais comum aquele de natureza expositiva, mas este, em especial, é
acrescido da atmosfera poética, como a percebemos na projeção dos fragmentos e das
imagens que foram criteriosamente selecionadas pelo poeta e que povoam a mente
do eu lírico nos vários trechos do
documentário em que passado e presente coexistem com muita proximidade, como
nesta passagem remissiva ao curto período em que o poeta morou em José de
Freitas:
“...uma das quadras
mais felizes de minha vida - assim posso dizer impregnado de saudade que, não
podendo voltar a esse tempo e a essa cidade encantada, no início de minha
adolescência, a trago tatuada em minha alma e em meu coração.”
Essa nostálgica revivescência é presente na
memória daqueles que, como Elmar, também guardam lembranças da cidade em que
viveram ou por onde passaram algum dia, como nestes versos de Manuel Bandeira que
recuperam pela memória num misto de saudade o beco de sua infância lá do
Recife:
“Que importa a paisagem
a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que eu vejo é o beco”.
Ou
ainda H. Dobal no poema Campo Maior:
Ai campos do verde
plano
todo alagado de
carnaúbas.
Ai planos dos
tabuleiros
Tão transformados
tão de repente
num vasto verde num
plano
campo de flores e de
babugem.
Para o filósofo francês Maurice Halbwach, autor
da célebre obra A memória Coletiva, “A
lembrança é, numa larga medida, uma reconstrução do passado com a ajuda de
dados emprestados ao presente, e preparada por outras reconstruções feitas em
épocas anteriores e de onde a imagem de outro tempo saiu já bem alterada.” Assim,
a memória da cidade é ressignificada com o passar dos tempos. O renomado
professor e escritor Cunha e Silva diz em sua crônica Uma ida ao centro do Rio de Janeiro que “As
cidades são como as pessoas, com o tempo mudam de fisionomia”.
Só a escritura, através da obra de arte, acima de
tudo da poesia, é capaz de atualizar e eternizar nossas recordações, recompondo
a história de uma cidade. Elmar traz para a tela o que já está eternizado em
sua poesia. O documentário José de
Freitas: a cidade da memória e da saudade não é a síntese, mas a réplica ampliada
do roteiro sentimental de José de Freitas tão bem apresentado no poema Livramento: Pedra e Abstração. As cenas
mostradas no documentário são evocadas lírica e emotivamente no poema:
[...]
O morro continua lá
e
em minha memória incessante
escalada
por
meninos que são anjos
do
além do bem e do mal.
[...]
Recordo
o açude
em que fui tão menino
como mais não pude
ser desde então.
[...]
As partidas de futebol
ainda se repetem em minha memória:
vídeo-tape que não se cansa
de se repercutir
em seu interminável repeteco.
[...]
A cidade continua a mesma
eu continuo o mesmo
e, no entanto, ambos mudamos
e continuamos os mesmos
no eterno retorno de nós mesmos.
O
documentário José de Freitas: A Cidade da
Memória e da Saudade, editado por Claucio Ciarlini, sob o olhar das câmeras
de Antônio Almeida Neto e Elmar Carvalho, manterá viva a história das raízes
socioculturais do povo de José de Freitas como extraordinária fonte de pesquisa
para atender as demandas dos historiadores e pesquisadores de hoje bem como das
gerações futuras.
Teresina, 24 de maio de 2024.
* Carlos Evandro M. Eulálio é professor de Literatura e de Língua Portuguesa. Membro da Academia Piauiense de Letras, ocupante da cadeira 38.
Referências:
BANDEIRA,
Manuel. Poema do beco. Estrela da Manhã, 1936.
CARVALHO,
ELMAR. Livramento: Pedra e Abstração. A Rosa dos Ventos Gerais, 1996.
SILVA
FILHO, Cunha e. Uma ida ao centro do Rio de Janeiro. portalentretextos.com.br
DOBAL, H.
Campo Maior. Tempo Consequente, 1966.
NICOLS,
Bill. Introdução ao documentário. 6.ed. Campinas: Papirus 2016.
Belo documentário!
ResponderExcluirMuito obrigado.
ResponderExcluirPoesia, cidades e gente além da paisagem é parte mais importante do seu fazer poético e cronistico.
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