sexta-feira, 28 de junho de 2024

Sonhos de um Velho Escritor Abandonado

Fonte: Google



Sonhos de um Velho Escritor Abandonado

*Fabrício Carvalho Amorim Leite

Ao entrar na grande sala do abrigo, um raio de sol tocava os corpos franzinos ao meu redor, como que lutando para trazer vitalidade. Senti os aromas baralhados de remédios, alfazema comum, xixi, vômito, detergentes caseiros e mingau, que dominavam o ar – num pacto de cheiros como os roncos, lapsos, sussurros, gemidos e gritos abafados.

Não foi nada fácil parar e ouvir com a pressa dos jovens de hoje. Sempre no ritmo do Instagram, e sendo o dono do único smartphone de última geração no local. Senti-me uma criatura superior e desfocada pela rapidez das telas. “Ah, uma “evolução darwinista” tão perfeita”.

Para mim, os anseios dos velhinhos pareciam quase banais: levantar e andar sem sentir dores; saborear mesmo a insossa comida; receber uma visita. Um aperto de mãos. Um abraço. Respirar sem resmungar...

Notei um de trajes simples pisar sem pressa, os lábios em movimento, como quem discursa consigo. “Devia estar delirando ou falando com algum morto, como todos fazem”, refleti como um jovenzinho da nova geração.

No início, julguei-os egoístas, teimosos e ranzinzas. Mas, ao voltar à razão, percebi que o peso era da repulsa familiar, das vidas quebradas pelas decisões alheias, consumidas em (des) enganos.

Prometi a mim mesmo não seguir com os julgamentos, mas a tentativa foi como remar ao lado de Caronte, entre o sentir sincero e o fingimento vulgar. Meu desprezo por um deles, Seu Hermínio, intenso, transparecia enquanto ele, aos seus noventa e sete anos, enrugado e pacato, recitava sem parar o bendito Salmo Vinte e Três em cada conversa ... Com o tempo, passei a não gostar dele.

Olhei para ele novamente e vi uma luz regando seu ombro e seu pomo- de-adão; no fundo, havia calma e vitalidade. Seu Hermínio apertou meu braço. Eu alarguei as passadas e ele, acelerando, riu. De repente, disse: “Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam! ”

Esse salmo, sua prece e norte irritava meu peito. “Será o Seu Hermínio um realista esperançoso? “ – Me perguntei, ao me confrontar com a agonia de ter alguém tão dócil perto da ideia do Vale da Sombra da Morte.

Que tolice a minha repreender alguém que apenas exercia sua forte fé! Afinal, conviver ao lado de alguém que dorme e acorda no Vale pode ser perturbador, até para o mais crente na eternidade.

E então, acordei. Outro sonho bizarro se foi. Recebi minha medicação diária e, ao voltar a mim, notei as cadeiras cobertas com fitas azuis, vermelhas e amarelas. Uma vez mais, senti o cheiro dos avós abandonados.

Sorri bastante sozinho – o riso ainda vive neste velho, um sinal da evolução da espécie – ao lembrar do meu delírio juvenil enquanto visitava meus colegas de abrigo. Anotei mais esse no meu caderno amarelado e retomei minha rotina de velho escritor abandonado.

Ah, esses moços com seus julgamentos evoluídos...

(*) contista e cronista.   

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