sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Sobre uma obra que já nasce eterna!



Sobre uma obra que já nasce eterna!


Claucio Ciarlini (*)


       Algumas vezes já afirmei isso, mas faço questão de neste espaço repetir: as melhores obras literárias são aquelas que, além de trazerem um rico enredo, ainda conseguem nos transportar para as nossas próprias lembranças. São livros deste naipe, que possuem a força de não só tocar nossas mentes, nos deixando mais sábios, como também alcançar os nossos corações. E isso é uma marca presente na maioria das obras do escritor (e ser humano) Altevir Esteves. Com esta mesma confiança, digo que as próximas páginas, premiado leitor, consistem no auge de tudo que Altevir vem produzindo durante os anos, ao menos no quesito já mencionado, ou seja, o de conseguir atingir nosso intelecto, mas também mergulhar na nossa alma, as nossas sensações. 

“Escapei Fedendo” é um título um tanto cômico, e o livro também o é em alguns momentos, assim como outros lançamentos do autor, sempre trazendo pitadas preciosas de humor. Porém não se engane, consiste apenas em recurso para que a leitura se torne mais prazerosa. O mesmo digo da ação, das aventuras e do suspense contidos nestas linhas muito inspiradas. Artifícios de um experiente homem das letras que sempre consegue nos prender e nos cativar a cada produção. E nesta, em especial e na minha humilde opção, foi a que mais obteve sucesso. Porém, a maior força desta obra, certamente está na parte dramática, nos instantes em que somos pegos de surpresa, por momentos pra lá de emocionantes, lições de vida forte demais para os nossos sentidos não se comoveram durante o processo, fazendo com que as narrativas se tornem eternas, assim como inesquecíveis são as histórias dos grandes clássicos, de Assis Brasil, Fontes Ibiapina, Elmar Carvalho e outros grandes.

Este livro nasce assim, independente da repercussão que ele irá ter, já nasce eterno. Bem idealizado, escrito e organizado. Com um diferencial importante, de que praticamente não há momentos monótonos ou desnecessários. Tudo é muito bem encaixado, nos momentos precisos, fazendo com que nossa atenção seja a todo o tempo mantida. Isso é ṕara poucos. E assim é Altevir Esteves, alguém que sempre consegue em seus livros, tanto nos prender, como nos fazer refletir, emocionar. Dizer mais do que isso, será estragar a experiência, como dizem hoje em dia, seria “dar spoiler”, de uma das mais incríveis obras que já tive contato, e olha que já andei lendo muita coisa nesta vida (além de também ter escapado de poucas e boas).


(*) Escritor, editor e jornalista cultural. Membro da APAL.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

O CANAL DE SÃO JOSÉ EM PARNAÍBA

 

Fonte: Google

O CANAL DE SÃO JOSÉ EM PARNAÍBA

 

Vicente de Paula Araújo Silva

 

      Desde o ciclo econômico do Couro na Villa de São João da Parnaíba, as embarcações de maior porte não tinham acesso ao Sítio dos Barcos, devido a barra do Rio Igaraçu em Amarração, ser muito rasa, como é ainda. A partir dessa problemática, já no século XX, quando foi incrementado o ciclo de exportações de  produtos agrícolas como o algodão, a cera de carnaúba, babaçu, borracha da Maniçoba e outros produtos agrícolas, bem como, a importação de bens de consumo domésticos, que eram negociados ao longo do Rio Parnaíba, os empresários da cidade de Parnaíba, resolveram construir um canal de acesso do Rio Parnaíba ao Rio Igaraçu, evitando o trecho existente no braço do Parnaíba, que passa pela Lagoa do Bebedouro e chega até as proximidades do Riacho Molha Bunda no atual bairro  São José. Visava este projeto, encurtar a distância entre Tutoia e Parnaíba  facilitar à veiculação de embarcações ao Ancoradouro de Tutoia e região do Alto Parnaíba, melhorando assim os seus negócios comerciais no país e exterior, através do porto fluvial de Parnaíba, que na época já era conhecido como Porto Salgado. Sobre o assunto, o Almanack da Parnahyba, edição de 1925, mostra,  em artigo publicado, o seguinte trecho: “ O Porto de Amarração, o Cáes de Parnahyba, o Canal de São José, a navegação fluvial, o transporte por Tutoya, e tantos outros importantes serviços públicos, que homens superiores , como o espírito trabalhador e dedicado de Joaquim Pires, conseguiram iniciar, reduziram-se a essa formidável fonte de afilhadagens e patotas, por onde se escoam, sem proveito algum, centenas de contos dos cofres públicos!”

     Mesmo com as mazelas mencionadas, a abertura do canal foi dada como concluída pelo DNPVN (Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis) na década de 1940, e já existia em 1953, conforme registra o  documento emitido nesse ano pelo Cartório do 1º Ofício da Comarca de Parnaíba - Auto de Arrolamento e Partilha dos Bens deixados pela falecida Raimunda Moreira Cornélio -  assim descrito: “HAVERÁ, para este pagamento, UMA PROPRIEDADE RURAL, denominada Taboleiro, situada na Ilha Grande de Santa Isabel, deste município, na parte agora também conhecida por Ilha do Taboleiro, em virtude de estar separada da dita Ilha Grande por um, naquele tempo, pequeno igarapé, só de inverno e atualmente, um canal trabalhado pelo govêrno e denominado Canal de São José, por onde está se está fazendo a navegação fluvial, propriedade que se limita: - pelo lado Sul,  com um terreno cercado  de Booth & Co. Ltd.; pelo lado Norte com o terreno de Silvestre Moreira Lima; pelo lado Leste, com o rio Igaraçu, e finalmente, pelo lado Oeste, com o referido Canal de São José,...”

     Após a abertura do Canal de São José, a chamada Ilha Grande de João Gomes do Rego “Barra”, foi dividida em duas partes, as quais, atualmente têm as denominações de Ilha do Tabuleiro e Ilha Grande de Santa Isabel, sendo esta última composta por áreas territoriais nos municípios de Parnaíba e Ilha Grande do Piauí.

     É importante salientar que depois da abertura do Canal de São José, por ocasião da celebração do centenário da Parnaíba como cidade, em 14 de agosto de 1944, três demandas econômica eram notáveis para o desenvolvimento do Piauí :  Construção do Porto do Piauí, Continuação do leito da ferrovia da Estrada de Ferro Central do Piauí até Teresina, e a plenitude da navegabilidade do Rio Parnaíba. Hoje, após 80 anos, outras demandas são emergentes, salientando-se o aproveitamento e realinhamento do atual leito da Estrada de Ferro Central do Piauí, até a estrutura portuária em Luís Correia, para consolidação da Zona de Exportação do Piauí.

      O mapa a seguir datado de 1826, mostra como era a situação da Ilha Grande de Santa Isabel, na formatação física do Delta do Rio Parnaíba, antes da abertura do Canal de São José.

 

Fonte: Google

domingo, 10 de novembro de 2024

NO REINO DO SURREAL

Fonte das imagens: Google

 

NO REINO DO SURREAL


Elmar Carvalho



    

           I – FUTEBOL

 

último rei

                        dec/apitado

fiz o gol

                                    da vitória

com minha própria

                                    cabeça

nas traves da guilhotina

(e o goleiro era o carr’asco)



 

           II – BASQUETEBOL

 

tomaram-me

            tudo inclusive

            o óbolo inútil

            o bolo indigesto

            a bola murcha

            a bala de festim

            a balada calada

                              alada

            mas sem voo

mas ainda me sobrou

            cabeça para arrancá-la

            e enfiá-la

            na cesta



 

           III – VOLEIBOL

 

    dei um saque

jornada nas estrelas

     em minha

                                     cabeça

de antemão coroada

            com o louro/ouro

                da vitória

minha cabeça descreveu

            uma parábola

                            bola

                       sangrando

                             bola

                                     singrando

o espaço como um

                                                    cometa

      de cauda sangrenta

(depois a fiz troféu da vitória)

sábado, 9 de novembro de 2024

O SERESTEIRO

Fonte das ilustrações: Google



O SERESTEIRO

Joames 
(Joaquim Mendes Sobrinho)


Dizem que sou perdulário,
Vagabundo e aventureiro, 
Não ligo para o trabalho 
Nem dou valor ao dinheiro, 
Mas eu sou é repentista,
Cantador e seresteiro.

Só tenho por companheiro
Seguindo minhas pegadas
O violão que dedilho
As cordas bem afinadas
Fazendo as minhas serestas
Ao luar das madrugadas.

As ruas abandonadas
Não me oferecem perigo,
A solidão me acompanha,
O vento brinca comigo,
Demoro quando desejo,
Quando não desejo eu sigo.

Vivendo como mendigo
Aos olhos da raça humana,
Tem dia que como um pão,
Outro dia uma banana,
Mas quem me julga infeliz
Redondamente se engana.

Assim entra e sai semana
Sem ter preocupação, 
Meu lar de noite é a rua,
A minha cama é o chão 
De onde eu vejo as estrelas
Cintilando na amplidão. 

Dentro do meu coração 
Não existe devaneio,
Se a barriga está vazia
O meu crânio é sempre cheio
E a minha maior virtude
É não querer nada alheio.

De dia faço recreio
Na sombra dos arvoredos
Sentindo as cordas sonoras
Brincarem com os meus dedos
E à noite faço orações
Contando a Deus meus segredos.

A brisa me conta enredos 
Das mais bonitas histórias, 
Faço poemas pra lua
Olhando as estrelas flores
Gravando os dramas da vida
No pen-drive das memórias.

Eu não corro atrás de glórias
Com Aquiles e Jasão,
Não desejo ser Homero,
Alexandre ou Salomão,
Porque sei que  amanhã 
Serei pó como eles são.

Tocando em meu violão 
Pelas ruas da cidade,
Satisfeito vou cantando
As canções da liberdade 
Sem pensar em desventuras
Nem dar chance pra saudade.

Faço o que tenho vontade,
Porque só desejo o bem,
Sei que a natureza dá 
E às vezes tira também,
Por isso tendo em excesso
Vou doando a quem não tem.

Não discrimino a ninguém,
Nada me fere ou me agita,
Vou vivendo a minha vida
Sem saber o que é desdita,
Buscando a quem me procura
E evitando a quem me evita.

Tenho a viola bonita
Pra viver tocando em paz,
As ruas que me acolhem,
O rocio que a noite traz,
Pra quem não deseja nada
Já é ter coisas de mais.

Nos meus repentes finais
Convido meus companheiros
Poetas e repentistas,
Cantadores violeiros,
Afinem suas violas
E vamos ser seresteiros!

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Passeio evocativo ao poeta Jamerson Lemos

 



Passeio evocativo ao poeta Jamerson Lemos

 

Elmar Carvalho

 

Às oito da manhã do sábado retrasado, conforme combinado dias antes, o médico Jamerson Lemos Jr., um dos melhores ortopedistas de Teresina, chegou à porta de minha casa. Quando cheguei a seu carro, vi que lá já estavam duas pessoas que eu não conhecia, cujos nomes eram Helder Higino, que exerceu importantes funções no Banco do Brasil, e Alessandro Andrade Spíndola, zeloso e dinâmico Defensor Público, como depois fiquei sabendo. Fomos buscar o delegado de Polícia Civil, Roberto Carlos Sales Silva, atual Corregedor Geral. Em seguida, fomos comer cachorro-quente na região do Mafuá, mais precisamente na tradicional Lanchonete Estudantil.

O motivo principal de minha presença nessa expedição à região de Santana do Gameleira, no município de Timon, era para que eu revisse o sítio do saudoso poeta Jamerson Lemos, onde estive tantas vezes, mais de 25 anos atrás, para degustar umas doses do velho Ron Montilla ou de uma gim tônica. O bardo invariavelmente preferia o velho pirata caolho e seu papagaio.

Não entrarei aqui em certos detalhes e em certas conversas ao longo do percurso, já bastante modificado, por causa da construção de várias casas e sítios à beira da estrada que segue para Matões. Por volta das 10 horas, chegamos ao nosso destino, ou seja, ao sítio, hoje administrado pelo Jamerson Jr., que melhorou a casa, construiu um campo de futebol, uma ampla piscina, uma capela, e a área de lazer e degustação, onde ficamos, que fica perto da escadaria que desce para o riacho Gameleira.

Desde o início das tratativas desse passeio, combinamos que ele seria evocativo ao poeta Jamerson. Assim, avisei ao Júnior, que leria três poemas, por mim selecionados do livro Sábado Árido, e faria um discurso. Logo no início das libações, preveni que pronunciaria meu discurso em plena lucidez, para que nada pudesse macular a memória afetiva e literária que eu tinha de seu pai.

Acordamos, então, que após a quarta ou quinta cerveja, tomaríamos uma boa talagada do Ron Montilla deixado pelo nosso poeta, falecido em 2008, em forma de cubra libre, ou seja, com Coca-Cola e limão. Cumprido esse ritual, falei que começaria recitando três poemas de sua autoria, com que me aqueceria para proferir o meu improviso. Após desligado o som, com o necessário silêncio dos amigos, iniciei a minha fala, cuja síntese segue abaixo. Espero não tenha sido uma enfadonha arenga.

Recordei que nesse sítio, então simples, diria mesmo rústico, no melhor sentido da palavra, estivera várias vezes, na segunda metade dos anos 80, mas sobretudo na primeira metade da década seguinte, com minha mulher e nossos filhos, então meninos. Olhando a floresta ao redor, observei que se mantinha bela, verdejante e muito bem conservada; que as margens do Gameleira estavam bem definidas, sem sinais de assoreamento, e que esse riacho, para minha exultação, ainda corria de forma saudável e perene, sem interrupções de sua corrente ao longo de todo ano.

Evocando o poeta e amigo, lembrei que muitas vezes estive com ele, não só em seu belo sítio, mas em locais e eventos culturais diversos em Teresina. Não pude deixar de fazer referência ao conhecido “bar do repórter”, de propriedade do saudoso Mauri Mauá de Queiroz, cuja sepultura fica ao lado do jazigo que comprei, no Cemitério da Ressurreição, de sorte que seremos vizinhos pela eternidade.

Nessas ocasiões, vi, algumas vezes, o Jamerson pegar um guardanapo de papel e escrever um belo e impecável poema, pode-se dizer que ao sabor do improviso ou repente. Eram poemas bem-feitos, poemas feitos por um mestre, muitas vezes rimados e metrificados, de alta sonoridade e ritmo, com esmeradas metáforas e outras figuras de estilo.

Em algumas oportunidades, quando surgia o ensejo, o poeta, com a sua voz de timbres e entonações peculiares e o seu característico sotaque pernambucano, declamava um de seus antológicos poemas, fosse o que relatava a fúria do arimã selvagem, fosse o que falava das botinas pesadas de areia, da areia de areais infindos, desérticos, fosse ainda o que externava a angústia e o desespero dos afogados, não sei se dos Afogados da Ingazeira da velha Recife de sua juventude, que também conheci em tempos idos e vividos e malferidos.   

Lamentei a morte precoce do poeta, mas em qualquer idade que ele se fosse para mim seria sempre demasiado cedo, pois ele muito ainda teria a dizer, alegrando o mundo com a força encantatória de sua poesia.

Certa vez, no sítio Bom Jesus da Lapa, que também poderia se chamar Bom Jesus do Gameleira, uma faísca arisca e traquina atingiu a pequena palhoça, que cobria a churrasqueira. Em lugar de se chatear, o poeta, ao olhar as chamas vorazes nas palhas, parecia admirar a beleza das línguas ígneas. Esse incidente/acidente até me fez lembrar o sanguinário Nero, que tinha veleidade de poeta, a contemplar a Roma imperial em chamas, na intenção frustrada, dizem, de compor um poema épico, em que pretendia, talvez, se ombrear a Homero. Só que Nero era apenas um perverso e um poeta abaixo da mediocridade, enquanto o Jamerson era um condor a pairar sobre os Andes da grande poesia. Tomado de emoção disse ainda outras coisas, que já não consigo reconstituir com precisão. 

Incontinenti, fez um emocionante depoimento o Jamerson Jr., que nos contagiou. Relatou que certa feita pediu perdão ao pai, “pelas vezes que me envergonhei de você”, ao que o vate respondera:

“Deixa eu te falar uma coisa. Quando eu era muito pequeno e até logo antes da adolescência o meu pai era pra mim meu herói! Fazia coisas que eu não conseguia! Trocava uma lâmpada, nadava em um rio, ia no fundo da piscina, me levantava nos braços e por aí vai. Depois, me tornei um adolescente e meu pai, seu avô, virou pra mim um obsoleto, atrasado; enfim, um cara fora de moda, talvez até mesmo um babaca, com as suas lições sem sentido. Quando envelheci é que passei a entender os segredos da vida e analisei toda a história de meu pai, os altos e baixos , e tudo o que ele sofreu pra me criar juntamente com meus irmãos; só então percebi que ele sempre foi aquele herói e eu é que, por um determinado tempo, havia me tornado um grande babaca!”

Jamerson Júnior, de forma arrebatada, arrematou o seu discurso, nos confessando que, então, dissera a seu pai: “Obrigado, pai, por me perdoar e também por me chamar de babaca com tanta delicadeza!” Não seria necessário dizer que o Júnior nos comoveu de forma “covarde” e contundente.

 Em seguida, surgiu no espaço de lazer uma borboleta, que começou a esvoaçar sobre nós, em círculos ou de um lado para outro. Numa de suas evoluções pude notar que a parte de cima de suas asas era azul turquesa escuro, e tinha uma ilustração semelhante à de certas pinturas abstratas. Após várias voltas, revoltas e reviravoltas, ela posou sobre minha cabeça, mas de forma tão suave, que praticamente não lhe senti o toque, como se ela fosse imaterial ou não tivesse peso.

Logo a seguir, ficou durante alguns segundos pousada no copo térmico do Júnior, quando ele não se encontrava presente. Perguntei se no local já aparecera algo semelhante, tendo a resposta sido negativa. Ousei levantar a hipótese de que o espírito do poeta obtivera permissão para nos aparecer na forma daquela esplêndida e brincalhona borboleta, tendo todos concordado com isso, principalmente o Júnior.

Como último tributo ao poeta, descemos a escadaria, longa e um tanto íngreme, em busca das frias águas do Gameleira. Passadas mais de duas décadas sem rever esse local de banho, notei que a paisagem estava um tanto mudada. Uma árvore que se debruçava sobre o riacho, já lá não se encontrava. E uma minúscula coroa, que eu chamava de Ilha da Utopia, como uma nova Atlântida, havia também desaparecido. 

Contudo, para meu contentamento, ainda havia muitas e grandes árvores frondosas e muitas palmeiras, sobretudo os imponentes buritis, tanto na margem como na várzea defronte. De um lado havia uma ribanceira alta, acentuada, daí a necessidade da escadaria a que me referi, e do outro lado se descortinava a várzea, quase plana. Muitas vezes, nesse local, vi o velho vate mergulhar e remexer nas pedras e na terra e trazer, em suas mãos garimpeiras, belas conchas, que lhe despertavam genuíno prazer, em simplesmente contemplá-las. Foi um banho refrescante, prazeroso, revigorante...

Algum tempo depois, finalizamos o passeio e lazer, tomando um gostoso banho na bela piscina do sítio. Retornamos a Teresina por outro percurso. Porém, antes de deixarmos a vivenda dos Lemos, o Júnior parou o automóvel na frente da capela, onde dona Das Dores, sua mãe, costuma fazer suas orações, e me pediu para elevar uma prece no interior da ermida. Como demorei um pouco, me julguei no dever de dar a seguinte explicação:

                – Já que tive de rezar, rezei direito.


ALGUNS POEMAS DE JAMERSON LEMOS


ARMADILHA

a música escorre pela noite

como estreito regato.

Igualmente minha mente

escorre pela noite.

isso ou aquilo, antes, depois,

uma rua tortuosa,

pequena cidade a ferver

distante.

quanto tempo fui tolo?

a música escorre pela noite,

pulsa como um coração.

  

DO MOVIMENTO À 'NOUTE'

O mistério da espuma do mar

é não haver mistério algum.

Fundo longilíneo

maravilhoso o mar não se sabe um

convite à morte ao amor à

vida. Há mistério, há?

A espuma do mar longe de ser algo

incógnito, transcendental, flora

estrelinhas nas algas, águas,

sargaços e areia, namora

da luz às conchas, à lua minguante

e permanente se renova.

Do mar o mistério da espuma

inexiste – bolhitas ou escumas –

existe o mistério à bruma

de noite à noute uma a uma

a onda virada serpente

engole a solidão da gente.

  

NAS RUAS

não mais voltarei aqui

seguirei as curvas do vento

tentar não tendo

assim eu me perdi

nada do que vi vi

nisso me acalento

foi bom todo momento

vivi

subida descida

noite amanhecida

espuma do Mar

tempo sem bruma

lua me luma

ar

  

SONETO DA TERÇA

quando você se entristece

uma coisa qualquer se me entrista.

um gole de rum a mais que eu insista

é coisa pouca e você não esquece.

quando, porém, se nada teça

vida minha e pobre de artista

você me toca e me diz: desista

meu bom amor, amo-te na terça.

muito bem, tento-te de novo

alma de pombo, espírito de corvo,

sobras-te-me na estação.

volvo-me a ti amor em praia,

soluço de sol, sal de caia –

da casa, só a luz e verão.

  

UM SONETO

vou fazer pra você um soneto

rimado, consoante o seu olhar

de avenca e musgo do pomar —

mestiço escuro noturno preto.

um soneto solto, lírico no ar,

pétala-ninfa, luz no alto-mar,

lâmpada azul a clarear do teto

à cama — lâmpada-luz-objeto.

Pra você e esses seus cabelos.

belos.

Pra você.

um soneto rimado de sorrisos,

pequenina barca — S.O.S.

Estou nu, Vê?   

terça-feira, 5 de novembro de 2024

JAMERSON LEMOS, UM POETA PERNAMBUCANO, MARANHENSE, PIAUIENSE…




JAMERSON LEMOS, UM POETA PERNAMBUCANO, MARANHENSE, PIAUIENSE…

 

Raimundo Fontenele

 

É o seguinte: a primeira vez que ouvi a expressão “neomalditismo” foi quando o poeta Jamerson Lemos chegou com este papo:

 

– É, poeta, sabes como é!...

 

O negócio é ser poeta neomaldito. E realmente havia saído uma antologia da poesia francesa assim denominada: os novos malditos. Pertenciam à herança cultural que nos legaram Villon, Baudelaire, Verlaine e o genial Rimbaud.

 

Isso era no Maranhão dos anos sessenta e nove e eu estava embalado pelo sonho de também me tornar poeta, pois, apesar da pouca idade, já havia tentado de tudo para encaminhar-me profissionalmente na vida, e sempre dera com os burros n’água.

 

 

O poeta pernambucano Jamerson Lemos viera de Recife com seu pai, o Sr. Lemos, corretor imobiliário e em São Luís se estabeleceram. Seu pai enviuvara, era isso, e lhe dava uma mesada com a qual o poeta resolvia as necessidades mais prementes.

 

Na Praça Deodoro a gente se reunia, uma patota de malucos, pra queimar um fumo e jogar conversa fora. O Cafeteira, quando prefeito, fizera na praça uma espécie de arena, com vários degraus, a qual chamávamos de Senado.

 

Foi ali que vi o poeta Jamerson pela primeira vez. Parou, deu uns pegas num baseado, fomos apresentados um ao outro e fiquei de lhe mostrar alguns poemas meus.

 

Lembro que no nosso próximo encontro, quando lhe mostrei alguns poemas ele disse: “ainda és um poeta verde”, mas me incentivou deveras. Ele já havia publicado seu primeiro livro de poesia, o Superfície do Vento, bem recebido pela crítica e leitores. Compre online os livros best-sellers

 

 

Fora também membro da Academia Maranhense dos Novos, movimento de fôlego curto e vida efêmera, que contara com, entre outros, o poeta Fernando Braga, já falecido, José Sarney, Edson Vidigal e Marconi Caldas, entre outros.

 

Poesia enxuta, liberta, sem máculas estéticas, herdeira da tradição da grande poesia greco-latina, mas que trazia em si os signos contemporâneos, com uma dicção poética própria, inaugurando tudo que é novo, na forma e no conteúdo, com um estilo original e único.

 

E o poeta em si, um andarilho, um inconformado, avesso a qualquer tipo de trabalho e de ação que burocratiza, robotiza e nos torna secos e vazios, de fé e de alma, de consciência e renovação constante, mudanças, transmutações psíquicas e experimentação essencial na busca do ser que somos, embora nunca saibamos o quê, nunca estejamos onde devíamos estar. E por isso a busca. E por isso o andarilho incansável dentro de si mesmo, que era isso que o saudoso Jamerson Lemos era e foi.

 

O caminhante fazedor de caminhos.

 

Um dia o poeta meteu na cabeça que devia levar uma mala cheia de maconha de São Luís pra Recife. Com o dinheiro publicaria seu novo livro. Era uma boa grana. Coitado, quando desceu no aeroporto na capital pernambucana a polícia já o esperava.

 

Ele nunca me disse como, mas alguém havia dedurado. O poeta amargou seis meses na prisão de Itamaracá. Voltou pra São Luís apenas para uma breve passagem e mudou-se para Teresina onde viveu até 2008, quando faleceu, prematuramente, aos 63 anos de idade. Falo prematuramente porque certos amigos nós gostaríamos que fossem iguais a Matusalém.

 

 

Jamerson Lemos é um poeta único no panorama da poesia brasileira. Sem mídia, isolado numa região atrasada e esquecida como sempre foi o nordeste brasileiro durante muitos anos, sua poesia se iguala à melhor poesia publicada no Brasil a partir dos anos 70.

 

O Jamerson que conheço é esse: um maldito como eu, segundo a tradição poética francesa do que esta palavra significa. É o gauche de Drummond. O deslocado, o que não se adapta a uma sociedade medíocre, desalmada, empobrecida pela burrice e a hipocrisia. E assim nos acostumamos a navegar no barco ébrio, navio negreiro dos apátridas como nós para quem o porto seguro está longe, não existe, ou é só miragem.

 

A seguir o poeta Jamerson Lemos visto do ponto de vista formal, na biografia homenagem que lhe dedica o escritor piauiense Francisco Miguel de Moura. E cinco momentos da mais alta e inventiva poesia que, felizmente, frutificou entre nós.

 

JAMERSON LEMOS – BIOGRAFIA

 

Por Francisco Miguel de Moura

 

Jamerson Moreira de Lemos nasceu em Recife (PE), em 22-12-1945 e faleceu em Teresina (5-8-2008). Filho de João Batista Moreira de Lemos e Ornila Moreira de Lemos. Poeta, deixando sua terra, viveu alguns anos em São Luís (MA), onde certamente se contaminou com a boa poesia daquela Província iluminada, de Gonçalves Dias a Ferreira Gullar, pra não falar nos mais novos. Tanto é verdade que o seu primeiro livro foi editado pelo Governo do Maranhão, com a participação da Academia Maranhense de Letras, no final da década de 60, século XX. Sempre o parto do primeiro livro é longo, por vários fatores que não cabe aqui explicar. Não poderia ser diferente com Jamerson Lemos. Saiu com o nome da “Superfície do Vento”, 1968, seleção de um calhamaço que me mostrara antes, com o título provisório de “Cerca de Arame”. Depois publicaria ainda “Sábado Árido” (1985) e “Nos Subúrbios do Ócio” (1996), ambos em Teresina. Deixou muitos inéditos, entre os quais “Istmo Soledad”, ao qual dei um prefácio já publicado aqui e alhures, situando sua poesia e seu fazer poético entre os melhores cultores da poesia-práxis, uma corrente derivada do concretismo, cujos poetas brasileiros mais conhecidos são Mário Chamie, Armando Freitas Filho, Mauro Gama e Adailton Medeiros (este natural de Caxias - MA).

Esse modo de fazer poesia valoriza o ato racional de compor e busca um sentido intercomunicante entre versos e palavras, tudo integrado ao real quotidiano, objetivo, ou seja, o dado social-histórico vai de braços dados com a poesia e a pesquisa semântica ou semiológica. Quem mais se celebrizou neste “sertão-vereda” foi o João Cabral de Melo Neto, pernambucano como Jamerson Lemos. A preocupação maior com letras, sílabas e palavras do que com o espaço em branco ou preto da página faz da poesia de Jamerson um antilirismo que a muitos preguiçosos assusta. Mas, se bem observada, sua poesia é de um apaixonado das coisas belas, dos sentimentos mais puros e da riqueza na expressão, num estilo que parece desinteressado da vida e do real, deixando visível a veia do bom humor em todos os poemas.

A poesia-práxis é do Brasil dos anos 60. O CLIP – Círculo Literário Piauiense, movimento daquela década, de certa forma enquadra bem a poesia deste poeta que entrou para a convivência dos clipianos. Se do CLIP não fez parte oficialmente, foi por ter chegado ao Piauí pouco depois. Mas, de tal maneira integrou-se aos criadores do CLIP (Hardi Filho, Chico Miguel e Herculano Moraes), que seria pecado não o incluir nessa geração cujos efeitos ainda ressoam.

Casado com dona Maria das Dores de Morais Lemos, funcionária dos Correios já aposentada, Jamerson Lemos deixa órfãos seus dois filhos: Juninho e Ceres Josiane.

Duas vidas: uma, a familiar e sentimental como poucos; outra, a profissional, onde se desdobra para conciliar o vendedor de imóveis com o poeta. Reconhece Alberoni Lemos que não foi fácil ao poeta Jamerson Lemos. Daí que é impossível saber bem de sua poesia sem o conhecimento do homem, que se dizia descendente de judeu, em seus conflitos filosóficos e existenciais – acrescenta o grande homem de imprensa, Alberoni Lemos.

(in “O Estado”. 04-10-87, Teresina, PI).

domingo, 3 de novembro de 2024

SEX-APPEAL


 

SEX-APPEAL


Elmar Carvalho

 

Movo até o teu

meu amoroso coração

- ânfora de lágrimas e solidão.

 

Teu olhar me revida

com uma impressentida carícia

referta de promessas e delícia.

 

Teus olhos escorregam macios

das penumbras dos cílios armados em cios

e afagam minha pele

eriçada em arrepios.

 

Meus anseios

desvelam tuas vestes

e revelam os empinados penedos

sedosos de teus seios,

sem medos

e sem receios,

e devassam em

tênues e tímidos acessos

os teus mais secretos

úmidos e diletos recessos.

 

E eu te desejo mais que tudo,

mas me contenho e me abstenho

e me deixo ficar inerte e mudo...