11 de agosto
DOIDO POR CARROS
Elmar Carvalho
Sempre o vejo, perto do semáforo do cruzamento das avenidas Petrônio Portella e Duque de Caxias. Vem de longe ou vai para longe, a descer ou a subir a ladeira do Parque da Cidade. Caminha puxando o seu minúsculo carro de brinquedo. Mas não é nenhuma criança. Deve ter mais de trinta anos. É o que o vulgo convencionou chamar de doidinho. Todos os dias fica, pontualmente, no semáforo, como se estivesse a cumprir uma jornada de trabalho, a passar sua esfarrapada flanela nos carros, que esperam a abertura do sinal verde. É como se fosse um ritual; contorna o veículo a lhe esfregar o velho trapo vermelho. Parece estar cumprindo uma obrigação. Não espera receber moedas, pois nunca as solicita. Se algum motorista lhe oferta alguma, não lhe dá a mínima importância, e a guarda displicentemente no bolso, quase como se estivesse a fazer um favor a quem a deu.
Soube que uma pessoa bondosa lhe deu um carrinho novo de presente. Parece não ter dado importância ao mimo, uma vez que continuou a puxar o seu diminuto e velho brinquedo. Talvez tenha ficado com pena de deixá-lo esquecido, no canto, como se costumava dizer antigamente, por causa de um novo amor. Poucos dias atrás, o vi a puxar por um cordão um de seus velhos carrinhos. Era um caminhão, com duas desproporcionalmente grandes rodas dianteiras, sem nenhuma na parte de trás, que lhe faziam empinar a frente, como um avião sem asas e sem voo. Vi quando ele fez o brinquedo dar o chamado “cavalo de pau”, a rodopiar sobre si mesmo. Admirei-me disso, pois ele é muito circunspecto, e até mesmo a usar um brinquedo não gosta de brincadeira, e não sorri. Aparenta viver hermeticamente fechado em seu mundo de silêncio e demência, porquanto não liga a mínima para os passageiros, mas apenas cumpre religiosamente a sua auto-imposta tarefa de “abanar” os carros com a sua escassa tira de flanela. Tudo indica que vive num mundo só dele.
Em sua mansa loucura, nunca o vi furioso ou revoltado, mas apenas a cumprir, como um autômato, o mister que impôs a si mesmo. Mas me contaram que outro dia ele se revoltou contra uma ambulância. Ficou bastante agitado, e em lugar de seus afagos flanelísticos, quis espancar o carro. Embora sem nenhuma vocação detetivesca a la Sherlock Holmes, e sem o adjutório do bom e elementar caro Watson, deduzi que, numa de suas crises, pois até os chamados sãos têm as suas, alguma ambulância deve tê-lo levado para longe de seu rebanho de carros, para confiná-lo em algum hospício, onde lhe devem ter aplicado alguma dolorosa injeção medicamentosa, ou onde lhe podem ter ministrado alguma dosagem/voltagem de choque elétrico, que, segundo ouvi um psiquiatra dizer, ainda tem a sua eficácia, não se tornando, ainda, de todo obsoleto e banido do mundo da medicina. Oxalá, tenha sido excluído das práticas de tortura, que não mais deveriam existir; que, aliás, nunca deveriam ter existido.
Meu Mestre,
ResponderExcluirO mundo "automobilistico" em que vive o seu personagem real, nada mais é do que uma fuga de sí mesmo, à dureza imposta nessa dimensão em que vivemos. As boas almas que de maneira despretensiosa o dão esmolas, são aspirantes a um seleto posto no que há de vir.
Parabéns pelo dom de emocionar corações ofegosos por uma boa leitura.
Tava pensando nesse doidinho, talvez ele possa ser autista, pq autista tem dificuldade em se comunicar, tem fixação em objetos, resistência à mudança de rotina, age como se estivesse surdo, entre outros e ele se enquadra bem nessas características..beijo papilyyyyyy
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