segunda-feira, 25 de outubro de 2010

DIÁRIO INCONTÍNUO


AS PROEZAS DO CORCUNDA LAMBILASCA

Elmar Carvalho

Quando conheci o corcunda, o gaiato que nos apresentou foi logo dizendo: “Esse aí é o Lambilasca, o cabra mais perigoso que Deus já botou na face da terra. Devora uma hoje, e já deixa a outra amarrada para o dia seguinte.” O homúnculo negaceou, com um leve sorriso de falsa modéstia, mas notei que ele, como o sapo da fábula, impava de orgulho e satisfação; pareceu agigantar-se, inflado por dentro e por fora. A felicidade fátua se estampava na expressão do rosto. O peralta terminou contando a sua história.

O corcunda morava na periferia da cidade. Conseguira receber um benefício da assistência social, por causa de sua doença. Sendo franzino, feio e corcunda, um dos maridos que fora trabalhar em São Paulo, no corte de cana, não hesitou em lhe confiar a mulher. Deveria ajudá-la, em eventual dificuldade, mas sobretudo vigiá-la, para que ela não andasse em má companhia, e principalmente em companhia masculina. Tratava-se de uma morena carnuda, cheia de curvas, brejeira, risonha, faceira. Um mimo, uma graça da natureza. Era o marido amigo e compadre do corcunda, e se chamava Deodato; a mulher tinha o nome de Lúcia. A recomendação marital foi feita no churrasco de despedida, numa cachaçada animada, para a qual Lambilasca concorrera com alguns quilos de carne e dois litros de aguardente. A mulher achou graça da recomendação; o corcunda se fez de sério, compenetrado de sua missão.

Quando o marido se foi, três dias depois, ele começou a se insinuar, de forma discreta, quase como quem não quer nada, prestando pequenos favores, cercando a morena de zelos e cuidados, e até mesmo a socorrendo em pequenas dificuldades financeiras. Não se esquecia de presentear o afilhado, de apenas dois anos, que lhe tinha verdadeira adoração, tanto pelos afagos, como pelos brinquedos que recebia. Um frango aqui, um quilo de carne ali, e o fato é que o homúnculo já era visto com certa frequência na casa do compadre. Chegara a tomar alguns tragos de conhaque na companhia da comadre, na salinha da casa. Para não entrar em muito psicologismo, que isso deixo para os mestres da literatura, devo dizer que da sala para o quarto do casal, numa noite de conhaque, muitas risadas e muita conversa, foi um passo rápido demais. A bebida, os agrados, a carência da comadre, mulher nova, cheia de vitalidade, tudo concorreu para o fato ser consumado. Um moleque da vizinhança, espreitando das sombras e das frestas das portas e janelas, viu quando os dois entraram na alcova, aos beijos e abraços, até que a luz foi cautelosamente apagada.

Logo o boato se espalhou no bairro. Também outros viram sinais de que havia algo mais entre o vigia e a vigiada, que não apenas simples amizade e compadrio. Quando o marido retornou, depois de mandar uma carta avisando ao compadre e à mulher o dia da chegada, foi recebido com um baita churrasco, que o Lambilasca patrocinou, em homenagem ao amigo que voltava. Quando o último convidado saiu, o marido já se encontrava roncando, a pleno pulmões, escornado, completamente bêbado. O corcunda ainda se encontrava na casa, a conversar com a comadre. Foi visto saindo altas horas da noite, cautelosa e furtivamente, procurando as sombras e os lugares mais ermos.

Não tardou muito, alguém contou ao marido as suas proezas. Conta-se que o traído teve uma briga feia com a “traíra”, na qual perdeu completamente as estribeiras, vindo mesmo a lhe dar uns sopapos. Quando o homem lhe perguntou porque fora trocado por um animal tão feio e ainda por cima aleijado, a morena respondeu que ele era muito mais homem; que era carinhoso, cheio de tesão, e além do mais com um membro tamanho GG, ou, na linguagem clara e crua que ela usou, grande e grosso. E como um arremate e coroamento do requinte da vingança e da maldade feminina, acrescentou que Lambilasca tinha ejaculação retardada, e que só faltava lhe matar de prazer. E mais não disse porque não lhe foi perguntado.

9 comentários:

  1. Ao ler "Piripiri - Celeiro de arte, cultura e literatura", refleti um pouco e cheguei à conclusão de que o texto narrativo, rico em detalhes como os seus são, educa os sentidos. Passei a reparar mais nos detalhes e deixei de passar pela vida sem vivê-la.
    A título de exemplo, na última quarta-feira, ia eu até Teresina para desenvolver atividades acadêmicas muito bem acompanhado da minha fiel parceira, a minha Honda XLR 125 CC, quando percebi que precisava abastecer a minha motocicleta. Chegando no posto de gasolina da cidade de Baixa Grande, notei que um cachorro da raça poodle, branco como a neve, estava mais bem acompanhado do que eu. O cãozinho tinha em sua companhia uma morena de aproximadamente 1,75 m de altura com lindas "madeixas negras" e seu vestido azul royal. Embora aquele animal tivesse atraído os olhares de muitos, a ponto de alguns procurarem informações de como conseguir um espécime similar com um senhor que os acompanhava, o que atraiu a minha atenção foi o olhar daquela sereia sem cauda. Era como se o seu olhar fosse de outra pessoa. Parecia até que ela não via aquilo para que olhava. Sem dúvida, era o olhar mais disperso que eu já havia visto, o que, de forma nenhuma, diminuia a beleza natural da qual aquela musa fora dotada. Fitei os olhos nela durante mais alguns segundos, percebi que ela vinha em minha direção perseguindo o tão sortudo animal de estimação. Ela chegou bem perto de mim, fiquei, então, inerte. Até que...
    ...O frentista chamou minha atenção anunciando que o tanque de minha moto já estava cheio. Quando isso aconteceu, foi como se eu estivesse em transe e acordasse com um estalar de dedos. Após efetuar o pagamento pelo abastecimento da minha singela companheira de viagem, passei a procurar por aquela moça misteriosa que carregava consigo a formosura de uma mulher e a inocência de uma criança. E eis que ela estava diante de mim com seu poodle mimado no colo esperando para me fazer uma pergunta já com sua boca angelical entreaberta e uma expressão facial mui terna tal qual a de uma mãe que observa seu filho que dorme tranquilo. Nessa hora fiquei estático. Sequer conseguia piscar os olhos. Ela docemente perguntou se eu ia para Teresina, mas como a pergunta era inesperada e até meio onírica, não consegui mais do que acenar a cabeçar confirmando a sua indagação. Ela sorriu carinhosamente e, a pedido dos seus, foi em direção ao Ford Fiesta preto no qual viajava portando o invejado cãozinho junto ao seu atrativo busto. Nesta hora a sua família já me encarava com desconfiança e lidava com a minha repentina musa como se fosse uma criancinha. Achei prudente partir naquela mesma hora, mas carregando comigo a visão daquele arcanjo de vestido e imaginando que nunca mais nos veríamos, no entanto, nos reencontramos 20 minutos depois quando eu saía de um congestionamento provocado pelo trânsito em meia pista devido a reestruturação da BR 316. Ela acenou para mim e eu lhe retribuí o gesto. Depois de pensar neste episódio durante toda a viagem, concluí que aquela bela moça infelizmente deve ter sua idade física além de sua idade mental e o seu olhar era, deveras, de uma criança meiga travestida de adulto fascinante. Os seus sentimentos foram integralmente puros e inocentes.

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  2. Até que...caro Nelson Rios, imaginei oferecer uma carona a morena até Teresina..."Que punha em teu olhar imprevisto esplendor, pensei que nessa tarde enfim, eu te pudesse desvendar meu segredo de felicidade..."(poesia de JG de Araujo Jorge)

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  3. Prezado Horácio, você parece ser mais corajoso do que eu. Naquele instante, tive dificuldades até para sair de lá, pois as minhas mãos pareciam ter se rebelado contra mim e não atendiam mais os meus comandos. (risos)

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  4. Grande Nelson,
    você está se revelando um verdadeiro literato, e com grande capacidade descritiva e narrativa.
    As ciências exatas correm o risco de perder um matemático e as humanas ganharem um escritor, embora você possa ser as duas coisas, como o foi Malba Tahan.

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  5. Caro vate,
    Obrigado pelos generosos elogios, embora eu não os mereça. Ainda mais ser um Malba Tahan da vida, ele, autor do célebre "O Homem que Calculava", uma pérola da Matemática, a qual eu já tive a oportunidade de ler.
    Quero dedicar a organização do texto e a presença de mais detalhes do que eu tinha costume de usar à prática da leitura de suas produções, confesso que me inspirei, também, em conversas que tivemos sobre como você intencionava provocar a curiosidade do leitor quando escreve suas prosas.

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  6. Caro Nelson Rios, resido em SP há treis décadas, mas a minha alma e corpo estar impregnado de aromas com o espírito de bons propósitos voltado ao meu querido Piauí, inspirações são momentos únicos em nossa vida e vc testemunha ocular presenciou diante da morena, que talvez não se repita, da morena que passou e levou seus pensamentos, é evidente que o desejo é iminente e óbvio.

    Pensando bem, caro Nelson, mesmo que eu tivesse de moto pras bandas do Piauí, talvez eu não tivesse na minha bagagem um capacete de reserva, pois correria o risco de perdê-la a morena a 500 metros da Polícia Rodoviária Federal, aquela morena te inspirou e nocauteastes com o olhar arrebatado e que ilumina qualquer poeta, porque ela é poesia, que conquista e inebria o que queremos.


    Em tempo.
    (Nelson Rios, prazer em conhecê-lo, agradecendo o rapsodo Elmar Carvalho pelo espaço.
    Não me estranhe, é só brincadeira, sou um operário da literatura, um ser humano do mundo de fácil convívio.
    Vamos pedalando os atalhos conforme sinaliza o nosso criador.

    Abraço.

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  7. Acredite, caro Horácio, a Alegria e, consequentemente, o Bom Humor são frutos que brotam na alma de seres iluminados, portanto, o prazer é todo meu.
    Como diria um conhecido nosso (por acaso o responsável por este blog) seria uma bênção se o passarinho que cantou no meu ouvido, pousasse mais algumas vezes na janela de minha inspiração, oxalá!
    Espero que nos encontremos mais vezes nas rodovias do bom gosto literário. Até a próxima!

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  8. É isso aí caro Nelson, vamos nessa, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come e não adianta ficar em cima do muro cutucando o bicho (risos).

    Percebo que vc é um “franco admirador” do poeta Elmar, na verdade eu não conhecia as obras literárias e foi através do Severino Filho competente jornalista esportivo de Teresina que eu tomei conhecimento deste gigante da literatura piauiense há dois anos atrás onde publicara na coluna do Severino o livreto “O Pé e a Bola” onde o Elmar narra fatos de épocas do futebol do interior. Eu e o Elmar temos uma particularidade por que: no período de 70 a 73 fui colaborador do Jornal A Luta da cidade de Campo Maior e o Elmar aos 16 anos já sinalizava os primeiros sinais de escritor a fazer crônicas neste mesmo jornal, mas não cheguei a conhecê-lo.

    Um momento novo sempre pede isso, paz no coração e sorriso no rosto, e mesmo que também não dure, que seja eterno e intenso até lá. Já percebestes? pelo menos isso ocorre comigo, quando começo a ler os textos do Elmar a minha respiração fica paralisada pois a sua linguagem é a sua arte, a sensibilidade diferenciada do artista é vista no momento que ele se encontra imerso no seu processo de criação artística, é a realidade do sentimento individual de cada ser humano.

    “PoeMitos da Parnaíba”, dou risadas sozinho das sacanagens do “Meio Quilo”, “Lobaia”, do espertalhão “Simplição”, “Maria das Cabras” e por aí segue, é o intelecto do poeta com a genialidade do Gervásio.

    Todas às vezes que eu imagino a Rosa, recebo uma ventania de sensualidade vindos lá dos campos gerais das margens do grande Açude (me refiro a obra do Elmar, “A Rosa dos Ventos Gerais”).


    Bom fim de semana, inté...


    Cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos, não tanto pelo que nos dá, mas pelo que nos revela de nós mesmos.
    Miguel Unamuno

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  9. Caro Horácio,
    Percebo que convives no mundo literário há muito tempo, pelo menos há mais tempo do que eu. Estou numa fase que eu classificaria como redescoberta da apreciação do belo. Passei muito tempo hibernando e sonhava apenas com o trabalho e prazeres carnais, porém, ao ler uma poesia de Elmar Carvalho emoldurada e exposta no fórum de Regeneração, ouvi um "chamado", o qual me fez despertar para alimentar a alma e o espírito. Cerca de um mês depois, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o poeta Elmar Carvalho, passei a visitar seu blog e ler suas obras. Tomei gosto!
    Além de ter a oportunidade de ler material de alta qualidade, também tenho a oportunidade de conhecer eruditos como o nobre interlocutor.

    Até a próxima!

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