segunda-feira, 7 de março de 2011

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS (*)


TRAGÉDIA SHAKESPEARIANA EM SETE CIDADES

Elmar Carvalho

I

Algumas décadas atrás, um caçador, ao se abrigar de forte chuva, entrou numa furna da Serra Negra, em Sete Cidades. Para se aquecer e afugentar possível onça, acendeu uma fogueira. Pode, então, descobrir um objeto algo semelhante a um pote, só que hermeticamente fechado. Ao lhe bater com uma pequena pedra, verificou, pelo som, que era oco. Chegou a pensar que na urna de argila estivesse contido algum tesouro, mas para sua decepção, quando a quebrou com uma pedra, constatou que dentro dela só havia várias placas de barro cozido, semelhantes a mosaicos, porém retangulares e de maior dimensão. Logo viu que essas peças continham caracteres, semelhantes a hieróglifos, como os que existem em outras grutas e paredões de Sete Cidades.

Deliberou contar o caso a um ermitão, de nome Licurgo Meneses, tido como sábio, por alguns, e por louco, por outras pessoas, que estudava essas escritas antigas fazia vários anos. O ermitão ficou feliz com a notícia, com a qual sempre sonhara, e pediu ao caçador o levasse até a furna. Depois, no lombo de burros, ambos transportaram essas peças de cerâmica até a casa onde o solitário Licurgo morava, perto da Pedra do Castelo. Este já tinha vários cadernos com as cópias dos caracteres que encontrara em diferentes locais de Sete Cidades. O desejo de decifrar o teor das placas de argila foi muito forte, e o ermitão dedicou todas as horas do dia a esse mister, comparando as letras, cotejando os caracteres com as figuras, até conseguir fazer a leitura do que as peças diziam.

Esse Champollion de Sete Cidades traduziu o que a urna cerâmica continha, assim como também outros escritos que ele encontrara nas pedras das grutas e das encostas dos morros e dos paredões rochosos. Pelo menos foi o que ele afirmou, sem nunca ter sofrido contestação. Fiz uma cópia da tradução dos caracteres das placas de argila, e passo a narrar os fatos com minhas próprias palavras, e de forma resumida, já que não quero me fatigar e nem aborrecer o meu leitor. Acrescento que pretendo divulgar as outras anotações de Licurgo, falecido aos 77 anos de idade, já faz alguns anos. Para muitos ele foi uma espécie de feiticeiro, rezador ou simplesmente um místico solitário e maluco. Como seu corpo nunca foi encontrado, houve inevitável mistificação, com algumas pessoas acreditando ter sido ele arrebatado numa carruagem de fogo, e que retornará quando as cidades de pedras forem desencantadas. Entretanto, os mais realistas simplesmente acham que seu corpo foi devorado por animais, embora seu esqueleto nunca tenha sido visto.

II

O narrador das tábuas cerâmicas fala da história e dos costumes de sua tribo, que habitava às margens do rio Piracuruca. Essa etnia tinha uma casta de sacerdotes, que viviam isolados nas formações rochosas de Sete Cidades. Esses místicos viviam a adorar a lua e o sol, considerados deuses. A ordem era composta de homens, que oravam ao sol e de mulheres que reverenciavam a lua. Tinham eles um calendário, baseado na estação das chuvas, que correspondia aproximadamente a um ano solar. Os sacerdotes cultivavam o celibato, e qualquer violação a essa regra era punida com a morte. A cada período de aproximadamente quatro anos um homem e uma mulher, virgens e adolescentes, passavam a integrar o grupo. Eram instruídos na escrita e nos mistérios religiosos, bem como na arte de curar, através de ervas e de rezas. Formavam a aristocracia guardiã da história e da tradição da tribo, e do saber da escrita.

O casal de adolescentes teria de passar por um período de provação, que consistia em passar, inicialmente, um período chuvoso em região isolada da floresta, na região da Serra Negra, a meditar e a rezar, sem que o homem e a mulher pudessem se tocar. Caso o pretendente eleito fosse aprovado, seria admitido na confraria religiosa, em que teria restrições, mas gozaria de privilégios, entre os quais alimentação e moradia gratuitas, sem necessidade de caçar, guerrear, colher frutos silvestres, ou de praticar a rústica agricultura tribal, além de gozar de prestígio social e político. Durante o período probatório, os segredos religiosos não foram revelados a Anajá e Ulana, e nem lhes foi dito que sofreriam  observação por parte de olheiros, que se revezariam na rigorosa vigilância.

O casal teria de dormir obrigatoriamente em determinada furna, sob o pretexto de que era mais segura e mais confortável. Desde antes da adolescência, Anajá e Ulana já se olhavam com muita ternura, e chegaram a se tocar furtivamente, mas não lhes foi permitido o casamento, vez que foram escolhidos, pelos sacerdotes, por serem física e mentalmente perfeitos, para ingressar na ordem religiosa. Foram advertidos de que deviam se manter virgens, e lhes foi contado, como advertência, que, em mais de uma ocasião, casais de adolescentes já teriam sido imolados, ao serem flagrados a se tocar, ou quando a jovem dava sinais de estar grávida.

III



O sacrifício tinha requintes de crueldade. O homem e a mulher eram amarrados em dois postes, completamente desnudos, quase a se tocar, de modo que um pudesse contemplar o outro. Ficavam expostos ao sol e às intempéries e mosquitos noturnos, sofrendo sede e fome. Portanto, um via a insolação cruel e o inexorável definhamento do outro. Assim, o último a morrer assistia à decomposição do ser amado, atrelado ao cruel pelourinho, e devorado pelas aves de rapina. Ó, como a morte se tornava tão desejável, tão implorada em preces ardentes...

Anajá e Ulana, numa noite tempestuosa, em que o céu pareceu derramar toda a água que tinha, se tocaram e se amaram com sofreguidão, várias vezes, com todo o furor e êxtase da libido adolescente, numa quase insaciedade, como se quisessem fazer valer a pena o risco de vida, que corriam, caso a violação da castidade fosse descoberta. Claro, não lhes foi dito, mas aquela furna tinha um furo, que permitia ao sacerdote espião olhar e ouvir tudo o que se passava no seu interior. Quando escurecia, o vigia retirava cuidadosamente uma pedra que fechava o buraco, e ficava a espionar o casal a noite toda, à procura de sussurros e gemidos amorosos, e mesmo a contemplar o casal, caso a fogueira estivesse acesa, como, aliás, era recomendado, sob o argumento de que servia para o aquecimento e para afugentar animais ferozes. Já houvera caso em que o homem fora retirado brutalmente de cima da mulher, pelos espiões, antes do término do coito.

Morcegos esvoaçavam na caverna, esquivando-se das labaredas. De repente, o canto esganiçado de alguma rasga-mortalha, por entre o ribombar dos trovões, ecoava na gruta. Ulana estremecia, como se tivesse um calafrio de mau presságio. Mas naquela noite fria de tempestade tão violenta, de chuva tão forte, de relâmpagos tão refulgentes e de trovões tão ensurdecedores, o sacerdote claudicou na sua missão, mesmo porque o córrego que se formava poderia arrastá-lo para o despenhadeiro; em lugar de cumprir o seu dever, justificadamente procurou abrigo numa toca que havia a uns trezentos metros, onde estavam seus companheiros, de modo que o casal escapou do flagrante fatal. Todavia, no dia seguinte veio o terror de que haviam pecado contra a castidade, que lhes fora inculcado na consciência, desde que lhes fora dito que seriam sacerdotes. A jovem ficou com um brutal medo de engravidar, e jurou à lua que, se tal não acontecesse, cumpriria o seu mister religioso com a mais devotada dedicação.

IV



Contudo, vieram os sinais da gravidez. Ulana, apreensiva, notou que a sua regra menstrual falhou. Constatou a sutil alteração nos seios e no ventre. Sabedora da morte cruel a que seriam submetidos ela e o amante, tomou a decisão heroica de se matar, sem nada dizer ao seu amado. Fingiria um acidente, e se lançaria do alto do abismo. Premeditou detalhadamente como executaria o seu plano, de modo que não despertasse nenhuma suspeita, nem dos sacerdotes e sacerdotisas, nem de Anajá. Se os religiosos desconfiassem da gravidez, determinariam a morte do amante, e se este soubesse da sua simulação, poderia querer matar-se. Quando o rapaz adormeceu, a jovem pegou um utensílio de palha, como se fosse colher frutos, e se dirigiu a um penhasco. Lá, derrubou uma pedra, para deixar as marcas, que pudessem simular um tropeço, e se lançou no abismo, de ponta cabeça, de modo que não houvesse a menor possibilidade de salvação.

Quando Anajá viu o cadáver, quis morrer também. Imaginou o que acontecera; fora suicídio, por causa de possível gravidez. Examinou atentamente os belos seios e o ventre da amada, e não teve dúvida de que a moça estava no início da gestação daquele que seria seu filho. Aprendera, com seu pai, os segredos do envenenamento das pontas das flechas. Colheu as ervas mortais. Os espiões viram o suicídio de ambos. Entenderam o que se passara entre os dois jovens, e tiveram certeza, ao contemplar o cadáver de Ulana, de que ela estava grávida. Comunicaram o triste acontecimento à casta sacerdotal e à tribo. Os jovens amantes foram enterrados entre fortes clamores e pungentes soluços.

V

O mais idoso dos sacerdotes foi à gruta sacrificial, tomou a bebida sagrada, e retornou com o olhar de louco. Em altos brados, convocou os demais sacerdotes, e lhes contou a visão que tivera. Disse-lhes que o deus sol lhe aparecera em pessoa, como se fosse uma tocha humana, e lhe dissera, em voz tonitruante, cheio de autoridade e resplandecência, que a partir dessa tragédia ficava proibida a castidade obrigatória. Se alguém quisesse guardar a virgindade, que o fizesse por devoção, por livre e espontânea vontade, mas sem que a isso estivesse obrigado. O ancião jurou estar falando a verdade, de modo que a confraria foi obrigada a acatar a decisão divina. Contudo, não mais recobrou a sanidade mental.

Algumas pessoas murmuraram que a dose da bebida sagrada fora demasiadamente forte, e lhe ensandecera. Outros, disseram que ninguém via o deus sol em sua forma humana impunemente. O privilégio se transformava em maldição, com o visionário ficando louco, a proferir palavras desconexas e por vezes proféticas.

(*) Desde minha juventude desejei escrever um romance ambientado em Sete Cidades, desenvolvendo o assunto desse conto. Todavia, não tendo mais paciência e força de vontade para a empreitada, resolvi elaborar uma narrativa curta, que talvez possa dar origem a roteiro de filme.

Um comentário:

  1. Caro Elmar:

    Acabo a leitura desse seu conto, encantador quanto ao entrecho, impecável quanto à linguagem, de uma correção ímpar.
    A história dessa versão de fundo algo beirando o mitológico, mas de natureza selvagem, realmente é matéria rica para uma outra forma de linguagaem, a cinematográfica, conforme você bem sugeriu.
    Todos os relatos que V. tem incluído neste blog cuja importância já está consolidada, a meu ver, ganhariam maior "realidade" ficcional se V. experimentasse contar suas narrativas misturando diálogos e discurso do narrador, seja em terceira, seja em primeira pessoa. Desta forma, provavelmente as histórias passariam a propiciar ao leitor aquela sensação de gênero puramente imaginativo com sua vida própria, seus personagens se movimentando, suas ações e falas , situações de conflitos e sua enunciação e enunciado pereitamente equilibrados de modo a fazer a travessia do mundo empírico ao mundo imaginativo ou realidade possível, como se costuma dizer teoricamente.
    Dominando com desenvoltura a língua portuguesa nas suas formas mais puras e na sua consciência estilístico-sintática, V. há de encontrar, através dessas estratégias e jogos ficcionais, o lugar adequado ao universo do fingimento ficcional, necessário e obrigatório para que uma narrativa encontre dentro de si mesma sua dinâmica própria, seus convencimento de mundos que competem por vezes com incolor e insossa realidade que nos cerca como viventes.
    Alguém já disse que contar não é o suficiente. É preciso muitas vezes deixar falar os personagens, pois, por detrás das falas e das ações, a presença do narrador onisciente, ou não, às vezes torna-se dispensável.
    Contudo, isso se deve fazê-lo sem extremismos para não cair na chatice de uma história só dialogada.
    A presença de um narrador, em qualquer pessoa, ainda é elemento valioso na condução da narrativa, mas as ousadias valem a pena, sobretudo quando alguém - como Você - tem muito o que contar, e é senhor de uma invejável memória literária(en tendo-se esta coçmo capacidade produtiva na atividade de contar, narrar, relatar, expor etc) e dispõe do conhecimento seguro da língua literária, da observação atenta, dos homens, fatos e das múltiplas manifestações da Natureza.
    Um belo relato o seu.
    Do amaigo

    Cunha e Silva Filho

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