Charge: Gervásio Castro |
CEGO BENTO (*)
Elmar Carvalho
Desde 1975, quando fui morar em Parnaíba, passei a ver o cego Bento
perambulando pela cidade, com seus acompanhantes, um dos quais, seu
irmão, também mergulhado nas densas trevas da cegueira, a encher os
bares com a música de sua sanfona. Compunham um legítimo conjunto
do chamado forró “pé-de-serra”. Após a apresentação, o
ouvinte dava ao sanfoneiro o dinheiro de que podia dispor, quase
sempre muito escasso. Pouco ou nada sabia da história do cego.
A minha série de poemas titulada “Poemitos da Parnaíba”, em
que canto os “mitos” dessa amada e aprazível cidade, foi
elaborada aos poucos, e aos poucos foi publicada no jornal Inovação,
periódico valente, de saudosa memória, que não poupava o lombo dos
pulhas, salafrários e corruptos. Cada número trazia dois ou três
“poemitos”. O Reginaldo Costa sempre me cobrava novos poemas, mas
eu já me sentia esgotado na inspiração, pois caracterizar ou
caricaturar uma pessoa, no que ela tem de pungente ou anedótico, em
poucos versos, é uma tarefa difícil e ingrata.
Só anos após a desativação do brioso pasquim é que encerrei a
série, creio que com chave de ouro, ao consagrar o último poema ao
cego Bento. Tempos depois, estando eu numa barraca, ao pé do mar, na
praia de Atalaia, a que prefiro o nome poético e sugestivo de
Amarração – de amar, amarrar-se, amar de coração – chegou o
cego trazendo a música na caixa e no fole de sua sanfona.
Identifiquei-me como o autor do poema que lhe endereçara, e lhe fiz
um meteórico discurso. O cego emocionou-se, agradeceu-me, e lamentou
não haver sido gravada a minha, talvez importuna e inoportuna,
peroração.
Alguns meses atrás recebo uma correspondência sua, na qual está
contada, em síntese, a sua vida de pobre e de amante inveterado da
música, desde criancinha, em palavras simples, mas claras e
precisas. Nasceu para a vida e para a música em 17 de setembro de
1921, no lugar Boa Vista, município de Luís Correia. Casou-se no
dia 31 de janeiro de 1951, tendo gerado doze filhos.
Aos dez anos já tocava uma gaita de boca, mais conhecida em nosso
meio como realejo, enquanto seu irmão Bernardo balançava um badalo,
mas afirmando estar a tocar um cavaquinho, o sonho e o desejo se
impondo à crua realidade de percalços e pobreza. Seu irmão
Benedito batia com o “cabeção” em um tamborete e fazia retinir
umas argolas, como se fossem um maracá. Foi assim, com essa
improvisada orquestra de crianças irmãs, que se iniciou a bela
trajetória musical do cego Bento.
Em 1935, quando tinha 14 anos, no lugar Gameleira, para onde seu pai
se mudara, aprendeu a executar uma pequena harmônica de quatro
baixos. Seu irmão Bernardo tocava um cavaquinho, porém, sem saber
afiná-lo, apenas fazia barulho, mais servindo de percussão do que
de acompanhamento; o amor à música era muito maior do que a sua
habilidade de criança. Benedito, o outro irmão, empunhava o
reco-reco. Começaram a surgir os contratos, que possibilitaram a
melhora da orquestra. Às vezes, percorriam de sete a oito léguas
(multipliquem-se esses números por seis, para se encontrar a
quilometragem), a pé, como uma espécie de menestréis de
antigamente, para tocarem numa festa.
A partir de 1940, o cego Bento passou a residir na cidade de
Parnaíba. O seu conjunto musical já possuía uma sanfona nova,
bombo, tamborim, banjo e clarineta. Para se tornar mais conhecido,
começou a fazer festas. Os contratos foram, gradativamente,
aumentando. Com isso, sua responsabilidade artística foi crescendo,
bem como a sua autocrítica, pelo que passou a sentir, em face talvez
dos modismos, que o seu repertório já não estava agradando.
Por esse motivo, resolveu ser aluno do maestro Raimundo Ribeiro da
Silva, mais conhecido como Raimundo Tropa. As aulas lhe foram muito
úteis, porquanto passou a conhecer, como ele mesmo diz, “tonalidade
do instrumento, escala cromática, escala natural e mais algumas
coisas”. Aprendeu a tocar samba, marcha, rumba, fox, xote e baião,
músicas que, na época, caíam mais no gosto popular. Cego Bento
crescia na competência e na fama.
Nas comemorações do centenário de Parnaíba, ocorrido em 1944, na
majestosa Praça da Graça de então, a sua orquestra tocou, para
deleite do povo, durante nove noites. Foi, talvez, o ápice de sua
glória e consagração. No clube Sinorion, durante muitos anos,
tocava, no período de carnaval, as encantadoras e belas músicas da
época. Era o carnaval gostoso, alegre e típico do Zé Pereira, e
não os arremedos e macaqueamentos, hoje tão em voga, do pomposo e
“cinematográfico” carnaval carioca.
Apresentou-se nos principais clubes da cidade, entre eles o
Fluminense, Ferroviário, do Trabalhador, Guarani, Coroa. Animou
bailes matutos no aristocrático Cassino 24 de Janeiro. Apresentou-se
nas boates das irmãs Justina e Luzia Chaves. Eram os áureos tempos
do “Sonho Azul”, dos “bailes azuis” e de outras cores. Animou
os reboliços dançantes das boates Madalena (sem Madalenas
arrependidas), QG (quartel-general de estripulias estrambóticas e
eróticas), Cabeleira, Lulu, Ninho do Xexéu (onde muitos se
aninharam em lúdicos e sensuais aconchegos), atuando também na
Munguba e no Gordo.
No dia 27 de julho de 1974, cego Bento desativou sua orquestra, e
formou o “Trio Igaraçu”, constituído por ele próprio, na
sanfona, pelo seu irmão Luís, no pandeiro, e Nonato Gordo, no
cavaquinho. Nonato, que fora membro da banda municipal, faleceu,
sendo substituído por outro instrumentista. O “Trio Igaraçu”
ainda hoje torna mais alegre a praia de Amarração, provocando
amarrações no embalo da música e no ritmo dos corações.
Cego Bento, em 17 de setembro de 2002, completou 81 anos de idade,
mas, ao contrário do que ele diz na carta, não encerrou a vida e
nem a carreira. Todavia, como ele afirma na missiva que me enviou, e
que eu já certificara em versos, pode dizer, como disse, com todas
as letras: “Posso dizer, sou uma tradição, sou uma relíquia, sou
folclore, sou museu desta cidade”. E eu somente acrescentaria: um
museu muito vivo, muito vivo e alegre, e não triste e fossilizado
como certos museus de glórias vãs.
Não podendo, como gostaria, de estampá-los em placa de bronze, em
um monumento a ele dedicado, estampo nas placas da eternidade estes
versos que dediquei ao imortal cego Bento: “Não morrerás, / meu
quimérico e homérico cego. / Um mito não morre: / um mito se
encanta e permanece.”
(*) O cego Bento faleceu na noite de 25/06/2013, terça-feira, aos 92 anos de idade. O meu texto foi escrito alguns anos atrás, no ensejo de uma carta que ele me enviou.
(*) O cego Bento faleceu na noite de 25/06/2013, terça-feira, aos 92 anos de idade. O meu texto foi escrito alguns anos atrás, no ensejo de uma carta que ele me enviou.
Cego
Bento
Elmar
Carvalho
Não
morrerás,
meu
quimérico e homérico cego.
Um
mito não morre:
um
mito se encanta e permanece.
Teus
dois percursionistas
são
dois anjos da guarda
de
asas dissimuladas.
Um
te abriga com a sombra
de
seus olhos também sem luz.
O
outro é tua estrela guia,
que
te conduz em tua noite sem dia,
pelas
trevas espessas de teus olhos,
como
um Virgílio da nova mitologia.
Não
morrerás,
não
por seres Bento,
mas
por teu talento.
A
música escorre de teus dedos,
saltita
sobre os teclados,
palpita
e resfolega no fole,
cabriola
no molejo moleque
do
leque da sanfona,
evola-se
pelos ares,
remexe
as ondas dos mares,
sacoleja
as folhas dos palmares,
se
quebra e se requebra pelos bares
e
remelexe no chamego e aconchego dos pares.
Não
morrerás, cego Bento.
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