José
Maria Vasconcelos
É
como se acabasse de ler um romance dos anos 60 e 70, fechasse os
olhos, voasse, à deriva dos sonhos. O tempo passa, mais um gole de
café para afagar o álbum da memória. Estampas aparecem como folhas
secas caindo ao léu.
Palhoça,
1969, primeira boate com luz negra, tosca, circular, paredes de
buriti, lembrava uma cabana indígena. Ficava na Vermelha, na Avenida
Barão de Gurgueia, próxima à Igreja Nossa Senhora de Lurdes.
Roberto Carlos nas paradas. Agarradinhos, sarros inocentes. Modesta,
mas chique. A Palhoça derreteu-se em chamas, e mereceu uma reflexão
de D. Avelar Brandão Vilela, na Rádio Pioneira, “oração por um
dia feliz”, enorme audiência. Sem televisão, apenas três rádios
AM, radialistas, popularizados, elegiam-se com facilidade, a mandato
parlamentar, como Fernando Mendes, Carlos Augusto de Oliveira,
Rodrigues Filho, Deoclécio Dantas e Pedro Mendes Ribeiro, ou
conquistavam posições na administração pública.
Copa
do Mundo, 1970. Faltavam três anos para inauguração da primeira
televisão do Piauí, a TV Clube. Torres da Embratel, espalhadas por
todo o Brasil, recebiam, através da torre de Itaboraí, no Rio, os
sinais do satélite. Sem televisão, Teresina recebeu as transmissões
da Copa por Fortaleza, um privilégio que atraiu curiosos do interior
do Piauí e Maranhão. Uma faixa, na ponte metálica do Parnaíba,
tripudiava: “Benvindos ao México”, sede da Copa. Depois de cada
vitória da seleção brasileira, o corso ocupava a Avenida Frei
Serafim.
A
capital só oferecia quatro cursos superiores: Direito, Odontologia,
Filosofia e Letras. Ao concluir o ensino médio, jovens aquinhoados
partiam para outras metrópoles, em busca de cobiçados cursos.
Regressando a Teresina, nas férias, garotas seduziam-se por esses
rapazes de “futuro promissor”. No final da tarde, em julho, o
calçadão do Colégio Sagrado Coração de Jesus concentrava
centenas de estudantes para o bate-papo e encontro com esses
estrangeiros. Virgindade, uma preciosidade.
As
garotas preservavam-se para depois da formatura, fiéis aos namorados
distantes.
Aos
sábados e domingos, à noite, Praça Pedro, lotada e dividida: local
reservado a coroas, circulação de adolescentes; na parte superior
da praça, o coreto, os amassos. Às 9 em ponto, o toque de
recolhimento da corneta militar, todos pra casa. Rapazes dirigiam-se
à prostituta Paissandu, atrás das aconchegantes boates, algumas de
luxo, belas mulheres e adolescências expurgadas da família porque
perderam a virgindade com o namorado. Cine Royal, chique,
refrigerado. Cine Rex, ventiladores, plebe rude, veados malinando
machos no escuro, filmes de terceira categoria. Theatro 4 de
Setembro, menos teatro e conforto, cinema de faroeste americano,
discriminado. Depois das 9, tertúlia no Clube dos Diários, até às
12 em ponto. Só abraçados, rostinhos colados, também esfregaços
embaixo, beijos na boca no esconderijo das mechas dissimuladas,
provocantes, tecidos íntimos umedecidos. Tudo isso, só isso. Depois
disso, só no casamento.
Iate
Clube, recanto de endinheirados e madurões, um filtro social e caro.
Jóquei Clube, o melhor carnaval da cidade e dos eventos sociais
trepidantes, menos seletivo, balneário lotado aos domingos. Ríver
começava a eclodir, inaugurando tertúlias às sextas.
Teresina,
de segunda a quinta, recolhia-se sem badalações, livre de assaltos
e violência. Raros consumidores de drogas, livres e mansos, dedos em
V, utópica mensagem de Paz e Amor, dolce far niente hípie.
Último
gole de café, hora de sair para o trabalho, enfrentar minha Teresina
de 161 anos, desvirginizada, maliciosa, turbulenta, ainda agradável
para se viver e pedir mais cafezinho.
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