terça-feira, 12 de novembro de 2013

Esperantina: cem anos hoje do anjo cigano



Fonseca Neto

Antigos narradores e historiadores já afirmavam ser o Piauí uma terra de transição. E é: não somente de povos, mas o é igualmente sua natureza dadivosa entre as matas abertas amenas e a imensidão da selva amazônica. Até antes de ser Piauí a população deste vale movia-se pelo que hoje se chama de Ceará, Maranhão, Tocantins. 
Claro, não seria por uma terra assim que deixariam de transitar os ciganos, espécie de linhagem que há mais de quinze séculos, a partir da Índia, vive em permanente diáspora. Para este lado do Atlântico, vieram rente às primeiras levas de colonizadores e, em geral, na condição de “degredados”. E degredados, além de misteriosos, e sempre perseguidos, vivem pelo Brasil afora. Na minha Passagem Franca natal, décadas atrás, nos dias em que passavam “os ciganos”, crianças ficavam mais em casa que na rua para não ser “enganadas” por eles. Na França, a propósito, relembre-se, há um mês, ninguém menos que o presidente da República arbitrando conflito envolvendo uma família “cigana”.     
Em 1913, intensa foi a movimentação deles em terras piauienses, especialmente no norte, caracterizando certo mal-estar na população de povoados, vilas e cidades. Forte boataria espalhou-se desde a microrregião da velha Barras, de que por ali havia entrado uma horda de ciganos e por isso grande era a “correria” de todos. Telegramas alarmantes chegavam aqui em Teresina e governo e jornais se encarregavam de atemorizar ainda mais a população. No Peixe, hoje NS dos Remédios, houvera saque. Ameaçada estaria, inclusive, a antiga povoação do Retiro da Boa Esperança –naquele ano de 1913 completando duzentos de sua fundação, dada em 1713. 
Um enorme bando de ciganos, [...] errantes, malfazejos e exploradores, que não têm pouso fixo e vivem de terra em terra a explorar e iludir o nosso sertanejo na sua boa fé, [...] invadiu e saqueou a próspera povoação do Peixe, [...], a quatro léguas da margem do Parnaíba, roubando e cometendo desatinos inqualificáveis. Logo depois de terem praticado semelhantes atos de barbaria, retiraram-se da povoação [...] ameaçando de fazerem o mesmo na Cidade de Barras [...]” (notícia do jornal “Correio de Teresina”, de 10/11/1913). E imagine-se o pavor de famílias, com conversas do tipo as que a documentação policial registrava, acusando “... jovens ciganos [de] raptar donzelas, no intuito de integrá-las ao grupo. O cigano Gaspar tentara raptar Rosina; Mundico faz tentativas à moça Maria. Um dos casos mais curiosos foi o da jovem Maria da Cruz de Medeiros, assediada pelo cigano Aguiar, filho do Rodolfo. O jovem cigano oferecia presentes, dirigia-lhe gracejos e pedia-lhe insistentemente os cachos de seus cabelos. Como a moça não correspondia a suas expectativas, Aguiar prepara-se para raptá-la...”. E note o leitor a atualidade deste tema: em matéria publicada no jornal “Piauí” (29/11/1913), havia suspeita que “entre os ciganos andam também facínoras acusados pela polícia [...] que se aproveitam da companhia desses bandos nômades de vagabundos para praticar verdadeiras depredações”. “Suspeita também conferida no Inquérito pelo tenente da tropa policial que reprimiu o grupo cigano: ‘[...]. É certo, conforme verifiquei que nos bandos dos ciganos, existiam muitos cangaceiros conhecidos, vindo de estados limítrofes...’.”
Para aliviar os lugares Peixe, Marruás, Retiro, Campo Largo, além da própria Barras, sede municipal, o governo estadual montou um batalhão policial para expulsar os “bandoleiros”. Na área, com superioridade armada, a volante fuzilou vários ciganos e até não ciganos. O mais grave episódio ocorreu na povoação do Retiro – hoje cidade de Esperantina, na manhã de 11/11/1913 – quando vários deles foram mortos e ali mesmo enterrados a esmo.
Passados cem anos, a memória dessa tragédia sinaliza que teria ficado a sensação de mortes desnecessárias, num recorrente ato de covarde-tirania contra o “outro” que se revela enfraquecido. E sobretudo marca certa consciência local o sacrifício de um ciganinho inocente que tombou na estrada. Há uma mística católica em torno dele que parece crescer – e naquele tempo já se dizia que criança morta vira anjo. 

(Citações havidas da dissertação de mestrado de Maria Auxiliadora Carvalho, esperantinense, feita na Ufpi, fixando relevante contribuição para que essa tragédia de lesa-humanidade não caia no completo esquecimento dos pósteros e previna outras). 

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