Flagrante da solenidade de lançamento, vendo-se Dílson Lages Monteiro, Homero Castelo Branco, Elmar Carvalho, Reinaldo Torres e Antenor Rego Filho |
José
Castello
Chega-me
de Teresina, Piauí, “O rato da roupa de ouro”, narrativa
infantil de Dilson Lages Monteiro (FOTO), com ilustrações de
Ângela Rego (Nova Aliança Editora/Portal Entretextos). Um delicado
esforço para aproximar as crianças de um dos mais complexos temas
do mundo contemporâneo: o poder. Crianças precisam de limites.
A
compreensão da opressão, porém, as ajuda a entender melhor os
limites desses limites e a distinguir o respeito ao outro do desprezo
pelo outro. Um tema doloroso, que Dílson transforma, porém, em um
relato inspirador. “A sombra da lua caminhava entre pedras. Galhos
secos espreguiçavam seus braços e pernas”, começa Dilson,
humanizando a natureza e tornando-a menos angustiante.
Os
animais que a habitam vivem sob o jugo de um rato. Ele dá as regras,
ele diz como cada um dos bichos deve ser. “Vence os dias o mais
adaptado, o mais rápido, o mais atento, o maior em esperteza e
sabedoria”, pensa. E é assim, segundo seus próprios valores, e
sem considerar os alheios, que governa um casarão abandonado.
Tanto
o rato é esperto que, em vez de impor seu governo com a violência,
o impõe com a adulação. Sua política é a da submissão de almas.
Tira seu poder não tanto da força, que não tem, mas da astúcia,
precioso e perigoso veneno. Mas o rato também tem seu limite: a
cobra, que desliza pelas frestas do casarão. Diante dela, o rato
todo poderoso treme. A cobra é seu inferno e, mais que isso, a
fronteira que delimita seus atos.
Talvez
— penso aqui — a cobra o leve a experimentar a precariedade do
poder.
Escritores
conhecem isso muito bem. Com seus rascunhos, anotações, esboços,
eles tentam controlar narrativas e personagens sobre os quais, a
rigor, não têm controle algum. Todo escritor tem um limite: sua
própria fraqueza. Também o rato, cada vez que se defronta com a
cobra, prova dessa fronteira precária que ele, no entanto, logo
ignora.
O
relato de Dilson é narrado por um frágil gafanhoto que, a toda
hora, é obrigado a ouvir do rato uma ameaça: “Quero ver apodrecer
cada pedaço de sua folhagem, gafanhoto imprestável”. O poder é
cheio de vielas e de becos escuros. Na escuridão de suas entranhas
muita coisa parece ser o que não é. “Cheguei a pensar que me
poupava em sinal de gratidão”, admite o gafanhoto. “Eu ensinei o
rato a pular e isso lhe permitiu saltar para um galho quando, de
surpresa, uma serpente deslizava, pronta para o ataque”. Mas se
existe algo que o rato — o poder — não tem é gratidão. Não
tem limites para seu ódio. Também com os grilos e os caracóis o
rato aprendeu a transformar-se em coisa morta, aprendeu a
camuflar-se. Julgava não lhes dever nada por isso. Mas o poder vê a
piedade como uma forma de medo.
Qualquer
leitor, por mais jovem que seja, pode constatar as insuficiências do
poder que o rato acredita possuir. A começar por sua veneração
pela serpente — “Admiro mesmo os mais fortes” — que, apesar
de majestosa, é a fronteira de sua desgraça. O rato admira ainda as
borboletas e os insetos voadores, porque, do contrário, com o frágil
recurso da leveza, são capazes de escapar de situações que, para
ele, pesado e iludido, se transformam em intenso perigo.
Um
dia, uma tempestade arrasta o rato poderoso para um buraco, onde ele
se vê prestes a sufocar. A natureza é muito mais forte do que ele,
com sua arrogância, supõe. O gafanhoto se protege da enxurrada
montado no topo de uma árvore bem alta. “Do rato, só tive
notícias no dia seguinte. Para minha surpresa, dava ordens em um
palácio”. A arrogância do poder não tem fim e, mesmo da
desgraça, um rato pode tirar mais força. No buraco, seu corpo, em
vez da lama, se cobre com um estranho pó amarelo, que ele logo
entende tratar-se de ouro. Mais ainda: logo entende que se tornou num
pequeno Midas, que transforma tudo o que toca em ouro também. “O
rato, então, percebeu que um poder misterioso tornava ouro tudo o
que tocava”.
A
generosidade do poder parece inesgotável, enquanto, na verdade, ela
só se impõe sob certas condições. Se damos atenção a suas
palavras, vemos que esse poder gerado pela desgraça se torna ainda
mais ameaçador. Mas é ele quem ameaça: “Quem não obedecer
transformarei em ouro”.
Só
resta a sapos, grilos e gafanhotos, abatidos como escravos,
transportar pedaços de ouro para a toca real. “No buraco já não
cabia peça de ouro”. Mas o rato irá aprender que o poder é
transitório, que a realidade dá bruscas guinadas e, quando menos se
espera, inverte o destino das coisas. A realidade é fluida, móvel,
e mesmo o mais sólido poder, mais cedo ou mais tarde, pode ser
arrastado pela enxurrada do real.
Uma
nova tempestade transforma seu buraco de ouro e pureza em um mar de
lama. “Parece que as águas de todos os esgotos da cidade andavam
juntas, tamanha a força com que entravam no esconderijo dos bichos”.
A lama é o reverso do ouro. Ela surge para indicar não só os
limites do poder, mas parte expressiva de sua origem.
O
poder é fluido porque ele é sempre uma tomada de posição diante
do poder. O que faço? O que efetivamente posso fazer? O que faço
com o que efetivamente posso? Perguntas complexas atapetam o caminho
dos poderosos. A única maneira de tornar-se digno do poder é, em
vez de descartá-las, enfrentá-las. Mas o rato, confuso, levado pela
lama revolta, desmaia. “Acordou faminto, no antigo buraco em que
morava. Olhou ao redor. Ninguém. Ia sair, mas tremeu. Sentiu a
respiração das serpentes”. O limite do poder é outro poder.
Enquanto
isso, o grilo — que sempre apostou na leveza e nos saltos e se
contentou com a precariedade de sua pequena força —, sarado da
perna, volta a sorrir. Ele compreende que o poder é leve e
transitório. Nunca dele esperou a salvação, mas apenas uma forma
precária de proteção. Nunca o viu como destino final, mas como um
caminho não para levá-lo para fora de si, mas para trazê-lo de
volta a si. Por isso continua livre.
A
história de Dílson Lages Monteiro conduz seus pequenos leitores a
uma confrontação precoce (e divertida) com a fragilidade dos
valores humanos. Mostra-lhes que eles são móveis, que eles são
instáveis, que eles são transitórios — que eles são, enfim, o
que define o próprio humano.
Fonte: Portal Entre-textos
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