segunda-feira, 10 de março de 2014

Quem não escorrega no português?


Quem não escorrega no português?

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com
         
          Neste feriado de carnaval, debrucei-me sobre artigos da coleção, ESCORREGÕES NO PORTUGUÊS, para edição, em breve, de um livro. Perversa tarefa corrigir deslizes de português alheios e publicá-los em coluna de jornal. Descobre-se “argueiro no olho dos outros, e uma trave nos próprios olhos” – adverte Cristo.

          Uma tortura falar e, especialmente, produzir um texto correto, sem deslizes de concordância, regência, colocação pronominal, conjugação verbal, pontuação e precisão, eis a tortura, não só dos estudantes, mas de profissionais de imprensa, de escritores imortalizados, de quem se aventura ao simples ato de escrever. É necessário, portanto, vigilância, a crítica construtiva. Explicam-se certos temores na hora de produzir um texto. Uma das causas, remota à história da formação do idioma português.

          O império romano conseguiu impor o latim em algumas colônias da Europa, inclusive na Península Ibérica, formada pela atual Espanha e Portugal, no início do primeiro milênio. Não se tratava de um latim castiço, cultivado por filósofos e elite da capital do império, Roma, ou dos cultos gregos, mas de idioma rasteiro, vulgar, vocabulário paupérrimo, falado por soldados e plebeus. Pouca gente tinha acesso à escrita e leitura de pergaminhos: caros e artisticamente elaborados em couros de animais. Uma obra custava o preço de uma fazenda. Escribas eram privilegiados pela nobreza.

          A falta de contato com a língua escrita tornou-a vulnerável a corruptelas de palavras, com trocas e fusões de fonemas e letras, enxertos, entre outros motivos. Aos poucos, o latim vulgar ia se transformando em um novo idioma, neolatino: francês, italiano, espanhol e português. No início do segundo milênio, o português já exercitava os primeiros passos; com as características atuais, somente a partir do século XV.

                    A invenção da imprensa contribuiu para a popularização do livro, e, consequentemente, a expansão da cultura herdada dos antigos filósofos e escritores greco-latinos. Tradutores se deparavam com a pobreza vocabular da língua neolatina. A solução era reproduzir palavras e construções sintáticas do latim clássico ou grego erudito para o idioma de origem vulgar. Latim e grego da Antiguidade clássica voltaram aos bancos escolares, antes, cultivado só por monges e clero. As línguas neolatinas enriqueceram-se com a popularização, pela imprensa, de autores famosos, como Cícero, Virgílio, Aristóteles, Sócrates. Acesso fácil à cultura greco-latina, considerada de excelência e fonte de pesquisas jurídicas, científicas e humanistas. Daí a denominação de renascimento ou classicismo ao período pós-invenção da imprensa. O mundo evoluiu, culturalmente. A cultura antiga permaneceu intocável até o século XVIII. Continua viçosa em nossos dias

          O português não é tão difícil. Complicado é as pessoas entenderem que a prática da linguagem culta só se desenvolve com a leitura de textos cultos.

           Ligeiros escorregões, provocados pela pressa do que pela falta de aprendizado da gramática, fazem parte da produção de texto. Revisá-lo é reaprender. Exercício agradável, que esquece outros prazeres, como o saracoteio carnavalesco. Foi assim que me saí bem, dançando com a boneca do meu próximo livro.


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