sábado, 2 de agosto de 2014

O olhar de um jovem mendigo


O olhar de um jovem mendigo

Cunha e Silva Filho

Ao sair da vetustíssima Igreja de Santa Luzia, Centro do Rio de Janeiro, aonde fui assistir a uma missa de Ação de Graças a Santo Expedito, me defrontei com um jovem negro, sentado num dos degraus da entrada daquele templo sagrado.

O jovem não me pediu nada quando olhei para ele. Senti que seu olhar me pedia uma ajuda financeira e aqui associo de imediato o fato àquele provérbio que aprendi em inglês num formoso livrinho didático, presente de um vizinho e amigo quitandeiro da Rua São Pedro, esquina com a Arlindo Nogueira, em Teresina, Piauí, lá por volta do início dos anos de 1960.  Livrinho da antiga coleção FTD, ao qual, infelizmente, faltavam algumas páginas. O provérbio é este: “He who gives to the poor lends to God.” (“Quem dá aos pobres empresta a Deus”).

Minha reação foi logo a de retirar do bolso uma pequena quantia que dei ele. Mas, não é a ação de caridade que me importa como matéria de reflexão e, portanto, não é a discussão de dar esmola ou não dar esmola, nem tampouco me importa se esse gesto vai de encontro ao pensamento, quase coletivo, de que dar esmola é manter o hábito errado e reprovado de que assim fazendo estamos não ajudando alguém na penúria, mas contribuindo para manter indolentes no estado em que estão.

O que pretendo comentar é o olhar do jovem negro dirigido a mim com tanta candura e tanta pureza, com tanta alegria que conseguia me passar pelo brilho que me transmitia uma expressão de ingenuidade, de simplicidade, de pureza,de agradecimento, de gratidão, de comunicação instantânea de uma alma para outra, sem nenhum outro desejo senão o do olhar de agradecimento e de simpatia que me lançou e me comoveu até as lágrimas, lágrimas não realmente derramadas mas sentidas, que são as mais genuínas e as mais intensas.

Olhares há que se distinguem do simples olhar da indiferença que observamos em nossos semelhante, no anonimato da multidão. Esse olhar do desconhecido não tem nenhuma significação para nós, porque nada diz dos sentimentos verdadeiros, do que brota da espontaneidade, da gratuidade, do querer ser cúmplice e solidário, ou seja, é um outro  olhar, é o olhar do jovem  mendigo. É esse olhar que nos falta como seres feitos de espírito e de matéria física.

O olhar do jovem negro não é o de ameaça, de raiva, de revolta. É, antes, o olhar do amor, da alegria sentida por receber, num simples gesto de uma pequena esmola, algo que conforta ainda que por um curto tempo. Não foi a minha ajuda dispensada àquele jovem que irá resolver a situação de mendicância dele. O que está em jogo é o contentamento demonstrado por ele através de um olhar amoroso e empático, olhar de quem não nos quer o mal, um olhar de quem nos deseja felicidade e alegria, olhar digno de uma poética do olhar.

 Aquele instante do olhar do jovem negro que pede esmola, seja pelo silêncio, seja pelo balbuciar hesitante de proferir alguma frase constituiu, pelo menos para a minha compreensão, um momento epifânico.
 
Não sei se ainda experimentarei aquele instante de olhar onde se pode sem esforço vislumbrar a faísca do conforto íntimo ainda que fruído por alguns instantes inefáveis.

O olhar do jovem e simpático negro, naquela manhã de sol de julho carioca, guardarei comigo como um instante de eternidade que - sei por experiência - não nos é comunicado em tantos dias da nossa vida.

O olhar do jovem negro que pede esmola talvez tenha adquirido mais intensidade devido à circunstância de que, naquela manhã de uma quarta-feira, o meu dia não fosse um dia comum e insosso, mas um dia pleno de sensações etéreas, de eflúvios benéficos, desses que nos invadem a alma e o corpo numa unidade de harmonias e de encantamento a que chamaria de uma dia feliz, no qual a percepção mais aguda da vida e de sua importância nos torna mais do que um simples mortal, mas alguém em comunhão universal com o sentimento de amor à vida, ao tempo, ao espaço, à natureza.

Procurando as razões mais íntimas para este estado de beatitude, não preciso esconder que seu cerne se encontra naquela lindo olhar de um simples negro encontrado a pedir esmola, sentado num degrau da entrada de uma velha igreja, cuja forma embrionária data praticamente do tempo da fundação do Rio de Janeiro, tendo sido precariamente erguida à beira do que chamamos Baía da Guanabara, uma parte considerável da qual foi, tempos depois, aterrada com os escombros da derrubada do Morro do Castelo.

Internamente, a construção da igreja foi feita em estilo “rococó tardio,” segundo a classificação que lhe deu o historiador Milton Teixeira, que conhece tudo do Rio antigo, e de mistura com traços barrocos.A Igreja de Santa Luzia, uma das relíquias históricas da cidade, passou por diferentes formas arquitetônicas.

 Nada sei nada sobre a vida pessoal e familiar daquele jovem, dos motivos que o levaram àquela condição social. Também não é desta crônica que me valerei para elucubrações de cunho político, ideológico, de sistemas de governos.

 O que no jovem negro procuro é sondar-lhe, ainda que esquematicamente, a poética do olhar, o seu sentido de humanidade. No seu olhar não tenciono questionar os fundamentos da nossa estrutura política que o levaram ao que é na sua condição atual de carência e de abandono. Não são politizar o tema da pobreza, das injustiças sociais, dos governos perversos, corruptos, modelos nefandos da impunidade em vários níveis de administração, de violência em forma de impunidade crônica, malabarismos indecentes (para não parecer disfêmico) e de hipocrisias camufladas de benefícios sociais. 

Só quero é extrair da poética daquele olhar todos os traços de sua ancestralidade, das lutas da sua etnia para conseguir alguma cidadania e dignidade num país engolfado por modernismos e anacronismos (Eduardo Portella) que saltam à vista de qualquer observador atento ao destino de nossa nação.


Só sei que aquele olhar do jovem negro brasileiro me encantou e me fez um dia mais feliz e mais consciente sobre o que deveríamos ser e não somos, no cinzento convívio entre os homens que ainda povoam este tão desolado planeta Terra.           

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