O olhar de um jovem
mendigo
Cunha e Silva Filho
Ao sair da vetustíssima
Igreja de Santa Luzia, Centro do Rio de Janeiro, aonde fui assistir a uma missa
de Ação de Graças a Santo Expedito, me defrontei com um jovem negro, sentado
num dos degraus da entrada daquele templo sagrado.
O jovem não me pediu
nada quando olhei para ele. Senti que seu olhar me pedia uma ajuda financeira e
aqui associo de imediato o fato àquele provérbio que aprendi em inglês num formoso
livrinho didático, presente de um vizinho e amigo quitandeiro da Rua São Pedro,
esquina com a Arlindo Nogueira, em Teresina, Piauí, lá por volta do início dos
anos de 1960. Livrinho da antiga coleção
FTD, ao qual, infelizmente, faltavam algumas páginas. O provérbio é este: “He
who gives to the poor lends to God.” (“Quem dá aos pobres empresta a Deus”).
Minha reação foi logo a
de retirar do bolso uma pequena quantia que dei ele. Mas, não é a ação de
caridade que me importa como matéria de reflexão e, portanto, não é a discussão
de dar esmola ou não dar esmola, nem tampouco me importa se esse gesto vai de
encontro ao pensamento, quase coletivo, de que dar esmola é manter o hábito
errado e reprovado de que assim fazendo estamos não ajudando alguém na penúria,
mas contribuindo para manter indolentes no estado em que estão.
O que pretendo comentar
é o olhar do jovem negro dirigido a mim com tanta candura e tanta pureza, com
tanta alegria que conseguia me passar pelo brilho que me transmitia uma expressão
de ingenuidade, de simplicidade, de pureza,de agradecimento, de gratidão, de comunicação
instantânea de uma alma para outra, sem nenhum outro desejo senão o do olhar de
agradecimento e de simpatia que me lançou e me comoveu até as lágrimas,
lágrimas não realmente derramadas mas sentidas, que são as mais genuínas e as mais
intensas.
Olhares há que se
distinguem do simples olhar da indiferença que observamos em nossos semelhante,
no anonimato da multidão. Esse olhar do desconhecido não tem nenhuma significação
para nós, porque nada diz dos sentimentos verdadeiros, do que brota da
espontaneidade, da gratuidade, do querer ser cúmplice e solidário, ou seja, é
um outro olhar, é o olhar do jovem mendigo. É esse olhar que nos falta como
seres feitos de espírito e de matéria física.
O olhar do jovem negro
não é o de ameaça, de raiva, de revolta. É, antes, o olhar do amor, da alegria sentida
por receber, num simples gesto de uma pequena esmola, algo que conforta ainda
que por um curto tempo. Não foi a minha ajuda dispensada àquele jovem que irá resolver
a situação de mendicância dele. O que está em jogo é o contentamento demonstrado
por ele através de um olhar amoroso e empático, olhar de quem não nos quer o
mal, um olhar de quem nos deseja felicidade e alegria, olhar digno de uma poética
do olhar.
Aquele instante do olhar do jovem negro que
pede esmola, seja pelo silêncio, seja pelo balbuciar hesitante de proferir alguma
frase constituiu, pelo menos para a minha compreensão, um momento epifânico.
Não sei se ainda
experimentarei aquele instante de olhar onde se pode sem esforço vislumbrar a
faísca do conforto íntimo ainda que fruído por alguns instantes inefáveis.
O olhar do jovem e simpático
negro, naquela manhã de sol de julho carioca, guardarei comigo como um instante
de eternidade que - sei por experiência - não nos é comunicado em tantos dias da
nossa vida.
O olhar do jovem negro que
pede esmola talvez tenha adquirido mais intensidade devido à circunstância de
que, naquela manhã de uma quarta-feira, o meu dia não fosse um dia comum e insosso,
mas um dia pleno de sensações etéreas, de eflúvios benéficos, desses que nos invadem
a alma e o corpo numa unidade de harmonias e de encantamento a que chamaria de uma
dia feliz, no qual a percepção mais aguda da vida e de sua importância nos torna
mais do que um simples mortal, mas alguém em comunhão universal com o
sentimento de amor à vida, ao tempo, ao espaço, à natureza.
Procurando as razões mais íntimas para este
estado de beatitude, não preciso esconder que seu cerne se encontra naquela lindo
olhar de um simples negro encontrado a pedir esmola, sentado num degrau da entrada
de uma velha igreja, cuja forma embrionária data praticamente do tempo da
fundação do Rio de Janeiro, tendo sido precariamente erguida à beira do que
chamamos Baía da Guanabara, uma parte considerável da qual foi, tempos depois, aterrada
com os escombros da derrubada do Morro do Castelo.
Internamente, a
construção da igreja foi feita em estilo “rococó tardio,” segundo a
classificação que lhe deu o historiador Milton Teixeira, que conhece tudo do
Rio antigo, e de mistura com traços barrocos.A Igreja de Santa Luzia, uma das
relíquias históricas da cidade, passou por diferentes formas arquitetônicas.
Nada sei nada sobre a vida pessoal e familiar daquele
jovem, dos motivos que o levaram àquela condição social. Também não é desta
crônica que me valerei para elucubrações de cunho político, ideológico, de sistemas
de governos.
O que no jovem negro procuro é sondar-lhe, ainda
que esquematicamente, a poética do olhar, o seu sentido de humanidade. No seu
olhar não tenciono questionar os fundamentos da nossa estrutura política que o
levaram ao que é na sua condição atual de carência e de abandono. Não são
politizar o tema da pobreza, das injustiças sociais, dos governos perversos, corruptos,
modelos nefandos da impunidade em vários níveis de administração, de violência
em forma de impunidade crônica, malabarismos indecentes (para não parecer
disfêmico) e de hipocrisias camufladas de benefícios sociais.
Só quero é extrair da poética
daquele olhar todos os traços de sua ancestralidade, das lutas da sua etnia para
conseguir alguma cidadania e dignidade num país engolfado por modernismos e anacronismos
(Eduardo Portella) que saltam à vista de qualquer observador atento ao destino de
nossa nação.
Só sei que aquele olhar
do jovem negro brasileiro me encantou e me fez um dia mais feliz e mais
consciente sobre o que deveríamos ser e não somos, no cinzento convívio entre
os homens que ainda povoam este tão desolado planeta Terra.
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