OS INIMIGOS E A SUCURI
Jacob Fortes
Quando os meus pais, durante os serões familiares sertanejos,
fantasiavam a minha mente infantil de contos míticos e lendas, narraram, certa
noite, uma história que diziam ser verdadeira protagonizada por dois inimigos.
Essa história obviamente já não permanece incólume nas prateleiras do meu
armazém; ruiu-se pela ação deletéria dos anos. Apesar disso, empenho-me em
recontá-la mesmo que para tanto recorra ao meu armarinho inventivo, entulhado
de bugigangas e pedaços de quinquilharias à espera de serventia.
Domingos e Aristeu, parentes consanguíneos, desfrutaram de
relações fraternas durante o calendário infanto-juvenil. Tempos depois, na
idade adulta, no papel de pais de família, circunstâncias familiares envolvendo
acusações infundadas instalaram a discórdia: tornaram-se inimigos marcados pelo
ódio recíproco. Apesar disso, não andavam às turras, não se combatiam;
respeitavam-se cada qual com o seu silêncio e sua taciturnidade. Esforços de
amigos e parentes para que pudessem se avir, baldaram-se.
Suas casas, ambas na borda alta da Lagoa da Traição, imenso
alagado à margem do rio do mesmo nome, Boqueirão da Fronteira, CE, não eram
próximas nem distantes, apenas avizinhadas. Um grito imódico ou o cocoricar de
um galo não garnisé era o que distava uma da outra. Essa era a régua do
sertanejo de antanho.
Porcos de propriedade dos desafetos, criados à solta,
desapareciam com certa frequência. Os sumiços dos suínos, e de outros animais
de pequeno porte, eram atribuídos à cobra sucuri-preta que habitava o enorme
alagado cingido por densa vegetação, mormente remela-de-galinha. O alagado,
quando visto à distância, apascentava todos os olhares, inclusive os mais
desamparados, mas metia medo ao ser olhado bem de perto. É que a imensidão da
lagoa era coberta por uma planta aquática flutuante, mais conhecida por aguapé,
de flores violáceas ou azuis. Nada se podia divisar abaixo do cobertor vegetal
que a natureza colocara sobre a superfície, ainda mais porque a água era
demasiadamente turva na qual, segundo o imaginário da região, habitavam seres
pavorosos.
Ainda que a maioria dos moradores apontasse a cobra como a
principal suspeita pelo desaparecimento dos animais domésticos, Aristeu, no
entanto, preferia colocar a suspeição sobre os ombros do seu desafeto,
Domingos. (O gesto de Aristeu ilustra o aforismo segundo o qual, “os amigos não
tem defeitos, mas os inimigos, se não os tem, eu boto”).
Era um dia de abril do ano de 1941. O poente ensanguentado
prenunciava o desfalecer do dia e Cara Branca, a porca exuberante, e bojuda de
prenhez, de propriedade de Aristeu ainda não havia retornado a casa para
saborear a ração que lhe apetecia, que lhe fazia cativa ao cocho. A hipótese
mais provável para a ausência do animal era a de encontrar-se amocambada, em
trabalho de parto. Em tais circunstâncias os animais instintivamente se isolam
para partejar. O adiantado da hora desaconselhava qualquer incursão para
arrebanhá-la. Porém, o desvelo de Aristeu falou mais alto: apetrechou-se e
partiu pressuroso em busca de sua Cara Branca. Enquanto caminhava Aristeu dizia
de si para si que no beiço da água a porca não haveria de está, pois os bichos,
na hora do partejo, procuram lugares enxutos e isolados. Sem se descuidar dos
riscos iminentes, Aristeu investigava o íntimo da vegetação, sobretudo balças
espinhosas, cipoal e remela-de-galinha.
Não demorou muito o turvar do vespertino privou Aristeu de
reger o seu intento. Sendo assim, nada mais restava senão recomeçar a busca no
dia seguinte. O último raio morrediço do poente era o que bastava para nortear
o caminho de Aristeu até a sua casa; obviamente se estugasse o passo. E quando
já transpunha os limites da concavidade da lagoa eis que, subitamente, Aristeu
foi atingido pelo bote veloz da sucuri preta. Por certo quis a cobra, como é da
sua tática, enroscar-se em Aristeu na altura do tronco a fim de comprimi-lo e
impedir a sua respiração. Sucede que os
passos céleres de Aristeu, quase de chouto, frustraram parcialmente o intento
da serpente que enleou apenas o braço esquerdo mantendo-o subjugado. Aí começou
o combate de vida ou de morte. A cobra puxava Aristeu em direção à água, pois o
afogamento é a melhor alternativa para matar uma presa. O rabo da sucuri,
aliás, é dotado de duas unhas que, apoiadas em raízes ou lajedos, lhe dão a
firmeza de que precisa para puxar a presa. Aristeu, por sua vez, tentava se
desvencilhar da peçonhenta sem permitir que ela se enroscasse nas suas pernas.
Tomado pelo cansaço e a aflição de estar em desvantagem, pois progressivamente
se aproximava da água da lagoa, Aristeu emitiu gritos tonitruantes ao seu
inimigo Domingos para que o socorresse. Dona Maria, que preparava o jantar
daquele dia desfalecido, alardeou prontamente ao marido Domingos sobre os
gritos desesperadores que ecoavam a partir da Lagoa da Traição. Os gritos
pavorosos fizeram Domingos e sua esposa Maria concluírem que algo horripilante
estava ocorrendo para as bandas do alagado. Armados de facões acorreram em
direção à lagoa e, chegando ao local, encontraram Aristeu se debatendo, numa
ânsia louca, com o braço esquerdo praticamente dilacerado. Pouco restava a
Aristeu inclusive porque, com água na altura dos joelhos, já não tinha o apoio
da terra firme. Domingos, de um golpe, cortou a cobra em dois pedaços, sendo
que um deles permaneceu espiralado no braço de Aristeu.
O inusitado episódio — que fez de Aristeu o penitente mor das
redondezas — serviu para restabelecer a concórdia entre as duas famílias.
Quanta à porca fujona reapareceu dois dias após o episódio,
famélica, puxando uma fieira de nove bacorinhos, todos de carinha branca.
Aristeu, até o final dos tempos, fora apelidado de bracinho, numa alusão ao seu
braço que secara completamente.
É inescapável a qualquer leitor extrair ensinamentos deste ou
daquele episódio. Eu, que também sou leitor, tenho o direito de dar o meu
palpite: O caso Aristeu abona a certeza de que quando as lições do amor são
ineficazes as da dor se impõem de modo severo, por vezes. “A pedra preciosa não
pode ser polida sem fricção; nem o homem aperfeiçoado sem prova”.
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