segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Alda, a noiva do vestido tinto de sangue

Memorial da finada Alda, no local em que ela morreu

Alda, a noiva do vestido tinto de sangue

Chico Acoram Araújo*

A jovem Alda levantou-se muito cedo do dia nove de julho de 1961. O pai e a mãe, também. Alguns instantes depois, todos os moradores da casa estavam de pé. As lamparinas foram acesas. Um murmurinho na casa não demorou.  As vozes dos pais e de seus irmãos confundiam-se no recinto. A barra do sol começava a alumiar no horizonte distante. Assim como as demais noites do mês de julho, a madrugada estava friorenta, em contradição com os dias de temperaturas elevadas do período, clima característico dos munícipios da região Norte do Piauí. Toda a família estava feliz. A alegria era geral. O domingo prometia ser esplêndido.

A moça dirigiu-se para um rústico banheiro localizado nos fundos do quintal da casa da família, próximo ao poço d’água. O líquido que acabara de retirar do poço mantinha-se ainda um pouco morno apesar do frio da noite. Caprichou no asseio pessoal com esmero, ensaboando-se com um perfumado sabonete presenteado pelo seu amado noivo no dia de seu aniversário de dezenove anos de idade que acontecera quatro dias antes. Nesse dia não houve comemoração. A festa, na verdade, seria no próximo Domingo; o dia mais esperado de sua vida: seu matrimônio.

Com ajuda da mãe e amigas vizinhas, Alda vestiu o cobiçado vestido branco de noiva. Este, porém, confeccionado em tecido modesto e sem muitos detalhes. Perfumou-se. Enfim, a moça paramentou-se para a grande cerimônia de casamento a ser realizado logo mais, às oito horas, na igreja de Nossa Senhora da Conceição.

O noivo chamava-se Francisco Gomes, mais conhecido como Chico Gomes. Um moço muito trabalhador e bem-conceituado na comunidade em que ambos moravam. No alpendre da modesta casa de alvenaria, nos finais de semana, o casal de noivos planejava formar um lar, ter filhos e viver dignamente nas graças do Senhor.

Segundo um excelente documentário, em forma vídeo, produzido por alunos do 2º Ano do Ensino Médio do Educandário Santo Antônio, em Barras-PI, nos revela que Alda Rodrigues da Silva, filha de humildes lavradores, nasceu no município de Sobral no Estado do Ceará. O citado documentário relata, dentre outros fatos, que ainda pequena, Alda mudou-se para Barras, no povoado conhecido como Luís de Sousa, localizado na zona rural Leste, não muito distante do perímetro urbano da cidade de Barras do Marataoan. Os pais, Manoel Rodrigues e Maria Francisca Rodrigues Jorge, e todos seus irmãos vieram para o Piauí em decorrência das dificuldades que enfrentavam no vizinho Estado para suprir a família com mantimentos, provavelmente por conta das condições climáticas que atravessava a maioria dos municípios do Ceará. Nessa época, muitos de seus contemporâneos também vieram para terras piauienses em busca de melhores condições de vida.

Antes das seis da manhã, os familiares e amigos já se encontravam montados em seus cavalos em frente da casa de Seu Manoel Cearense, como era conhecido o pai de Alda. Os jovens noivos também estavam a postos, no meio da animada caravana capitaneada pelo Seu Manoel.  Em clima de alegria, vinte e dois cavaleiros e amazonas partiram em pequenos grupos de quatro a seis pessoas, com destino ao centro da cidade que distava do povoado cerca de uma légua e meia.

Enquanto isso, a mãe de Alda e algumas amigas vizinhas ficaram em casa cuidando do grande banquete que seria oferecido aos amigos e convidados. Na noite anterior, o pai da noiva já havia abatido alguns animais da sua criação, bodes, galinhas e porcos para compor o almoço a ser oferecido aos convidados da festa de casamento. Carne de gado, cozidos, assados, baião-de-dois, farofas, café com bolos de goma e outras iguarias faziam parte do cardápio da festa.

 Quarenta minutos depois, o festivo préstito já se encontrava atravessando a velha ponte de madeira sobre rio Marataoan (construída em 1935) em direção a uma residência que ficava a alguns quarteirões da igreja de Nossa da Conceição. Esta casa, ou rancho como era chamada, servia de ponto de apoio ou hospedaria para pessoas do interior que vinham para a cidade. Os animais ficaram alojados em um cercado por trás da referida pousada. Após os retoques finais no vestuário da noiva e das moças acompanhantes, todos se dirigiram para a igreja da Matriz.

Do alto da igreja da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, demolida em 1963 (antiga capela construída pelo fundador de Barras, Cel. Miguel de Carvalho e Aguiar, em meados do século XVIII), entre as duas torres, o Cristo Redentor com os braços abertos saudava os parentes e convidados dos noivos para a celebração do sagrado enlace matrimonial. Os noivos, silentes, em frente ao grande altar-mor da Matriz, ouviam solenemente o ritual do padre que ministrava o casamento. A cerimônia ocorreu de forma célere. Declaro-os marido e mulher, disse por fim, o religioso.

Segundo meu ilustre conterrâneo Dílson Lages, notório professor, poeta, cronista e escritor, em seu livro “O morro da casa-grande” descreve com perfeição o majestoso altar onde foi realizado o sacramento matrimonial de Alda e Francisco: “O altar-mor de Nossa Senhora da Conceição de Barras era um dos lugares mais exaltados pelos fiéis, principalmente em dezembro. ... No retábulo, os nichos eram ocupados com Nossa Senhora ao centro, sobre o sacrário, ladeada nos demais nichos por Jesus ressuscitado, à direita, e São José, à esquerda. Jarros de porcelana, cobertos de flores, sobre o mármore, contrastavam com numerosos castiçais de prata, nos pés dos quais estava a face de cristo. No topo de retábulo, a imagem do coração de Jesus, acima do qual se assentava em decoração a própria face do Messias, embriagava de fé quem orava. O altar-mor, ao fundo, era a luz do templo; uma luz que se enfraquecia e, dali a poucos dias, apagar-se-ia para sempre. ” De fato, em 1963 houve a demolição desse templo religioso de estilo colonial, lamentavelmente. Creio que a decisão mais sensata da autoridade religiosa da época fosse a restauração desse belíssimo templo católico.

 Após a cerimônia de casamento, todos retornaram para o rancho em busca das suas montarias. Em seguida, Seu Manoel Cearense e os recém-casados, acompanhados dos parentes e amigos, seguiram de volta para sua casa onde seria servido um almoço aos convidados. Em grupos, todos pegaram a estrada de piçarra em direção à ponte de madeira sobre o rio Marataoan para, em seguida, pegar o caminho de volta para a comunidade Luiz de Sousa. Alda era a última do seu grupo de cavaleiros, dentre os quais faziam parte o marido e sua cunhada e mais três pessoas.

A poucos metros do acesso à ponte de madeira, um ônibus (chamado na época como misto ou horário) que trafegava com destino a Teresina colidiu com o cavalo em que Alda montava, arremessando-a violentamente no chão de piçarra. A moça caiu inerte; apenas um suspiro de dor, e o vestido de noiva tinto de sangue.  O marido em desespero tentou em vão reanimá-la.  A moça veio a óbito ali mesmo no local em decorrência das graves lesões que sofrera. O clamor tomou conta do local. O causador do trágico acidente nunca foi preso, apesar de se entregar à polícia no mesmo dia do acidente.

A comunidade de Luiz de Sousa toda chorou com o infausto acontecimento. O banquete foi recolhido. O caixão com a jovem morta estava ali no meio da sala da casa sob olhares pesarosos dos familiares e amigos. Apenas tristeza e dor. A família providenciou o enterro em um cemitério da localidade, deixando saudades a todos os entes queridos e amigos.

Quem viaja a Barras ou passa por essa cidade, procedente de cidades do centro e sul do Estado, poderá observar do lado direito da pista, tão logo atravesse a ponte de concreto sobre o rio Marataoan, um memorial em homenagem à falecida Alda Rodrigues da Silva, mais conhecida como Finada Alda. Nesse exato lugar foi que aconteceu o trágico acidente que vitimou a jovem recém-casada, e que comoveu todo o povo do município de Barras. Depois da morte da jovem Alda, surgiram as primeiras notícias sobre possíveis milagres atribuídos a sua alma. O Memorial da Finada Alda é um local muito visitado pelos religiosos não só de Barras como também de outras cidades da região. Hoje, a Finada Alda é considerada um ícone para os praticantes da fé católica na cidade de Barras.


* Chico Acoram Araújo é contador, funcionário público federal e cronista

4 comentários:

  1. Caro amigo Acoram,
    Li o seu texto como se estivesse lendo um capítulo de um bom romance, com a vantagem de estar recebendo diversas informações sobre a história de Barras.
    Desde criança eu ouvia comentários de meus pais sobre a trágica história de Alda, que usei no meu poema Barras das sete barras:
    (... Alda,
    a que morreu virgem,
    na vertigem de um sonho
    que num átimo se fez e desfez."
    Sua crônica é recheada de pequenos episódios do cotidiano que a enriquecem e lhe dão vida.
    Parabéns!

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    1. Dr. Elmar,

      Sem palavras para agradecer seus comentários a respeito dessa minha crônica. Fico muito feliz com essa sincera manifestação, principalmente vinda de um grande poeta como Elmar Carvalho. Isso me incentiva ainda mais fazer outros escritos.

      P.S.: José Pedro Araújo, Francisco Almeida e Elmar Carvalho são os verdadeiros responsáveis em me lançarem nesses mares nunca dantes navegados.

      Um grande abraço.

      Chico Acoram

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  2. O nosso capitão-mor JPA é uma verdadeira catapulpa, que arremessa nas alturas qualquer um, mas, no seu caso, você voou com as suas próprias asas.

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  3. Meu caro Poeta,
    o cacique é uma típica cobra com asas, e já nasceu feito.

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