Foto meramente ilustrativa. Fonte: Google |
Mandu Ladino
Reginaldo Miranda *
Foi um indígena muito inteligente e resoluto, com perspicácia e senso de
liderança, que opôs-se ao duro sistema colonial unindo as nações nativas do
Meio-Norte brasileiro em pertinaz resistência contra a invasão de suas terras
pelo colonizador estrangeiro.
No entanto, pouco se sabe sobre
sua origem e formação, vez que seu nome só entra nos anais da história a partir
de 1712, quando tem início o Levante Geral dos Índios ou a Revolta de Mandu
Ladino. Foi este o mais notável movimento de resistência nativa contra a
colonização portuguesa que se deu nesta parte da América. E se diferencia de
outros pela consciência de seu líder e pela recepção de suas ideias pelas mais
diversas nações, até então separadas e divergindo entre si. Essas divisões e
antagonismos davam brechas à invasão pelo inimigo comum, que jogava umas tribos
contra as outras, aproveitando-se das disputas entre elas. Então, o mérito de
Mandu Ladino foi perceber essa política colonial, desenvolver a consciência de
um senso comum, de um pertencimento dos indígenas à mesma causa e, assim,
elaborar um discurso que penetrou fundo na alma indígena. Uniu em torno de si
os irmãos de infortúnio, os perdedores do sistema colonial e juntos ousaram
sonhar com a expulsão do elemento estrangeiro, com o restabelecimento de suas
terras e com a recuperação de sua liberdade. Lutaram e morreram na defesa desse
ideal. Lutaram, pois, por um belo sonho e tiveram uma morte digna. Mandu
Ladino, o indômito líder indígena era do pensamento de que seria melhor morrer
de pé, na luta, do que acovardar-se e viver de joelhos, recebendo migalhas do
invasor lusitano.
Mas voltemos um pouco no tempo
para tentar recompor a trajetória desse líder indígena. Os poucos traços de sua
biografia escondem-se nas entrelinhas da correspondência oficial. Teria ele
nascido por volta de 1686 no sopé da serra de Ibiapaba, na fronteira do Piauí
com o Ceará. Embora existam dúvidas sobre sua etnia, pode-se dizer que era da
nação Aranhi, uma das que foram dizimadas no violento processo de colonização,
no primeiro quartel do século XVIII. Perdeu os pais aos seis anos de idade,
quando da entrada do capitão Bernardo de Carvalho e Aguiar, em 1692,
aniquilando sua nação e família na conquista do sertão das Cajazeiras, em que
se incluía as ribeiras da Cabeça do Tapuio, Sambito e Poti. Temos certa
convicção de que seu pai era um cacique da nação Aranhi, razão pela qual mais
tarde seria fácil o reconhecimento de sua liderança entre os demais nativos.
Perdendo todos os entes queridos conseguiu fugir da sanha inimiga com um
punhado de sobreviventes para a serra de Ibiapaba, onde recebeu abrigo entre os
missionários jesuítas. Por aqueles dias estavam em franco desenvolvimento as
Missões de Ibiapaba, que deram origem à cidade de Viçosa, no Ceará. Ali o nosso
biografado foi batizado com o nome cristão de Manoel e viveu o restante de sua
infância e adolescência, sendo educado de conformidade com os ensinamentos dos
padres jesuítas. Perspicaz e inteligente o pequeno Manoel sobressaia-se nas
lições e leituras na língua geral e no idioma lusitano, daí sendo considerado
um garoto ladino. Criado pelos padres fácil foi apreender as lições e delas
tirar o máximo proveito. Tornara-se um jovem alfabetizado no sistema colonial,
porém, sem esquecer suas origens nativas.
Com a mocidade deixa as Missões e
busca trabalho nas fazendas, vivendo estre essas e as aldeias de seus
antepassados, na bacia do Poti, em contato direto com seus parentes colaterais:
Aranhis, Crateús, Alongases e outros.
Aliás, em 1710 descem os Crateús
para o arraial Nossa Senhora da Conceição, na bacia do Longá, de Antônio da
Cunha Souto Maior. Foram levados por Bernardo de Carvalho e Aguiar, em execução
a ordens de Souto Maior, descendo ao todo 145 indígenas dessa nação. Mais
tarde, seria esse um contato de Mandu Ladino no lugar, vez que convivera com
eles nas cabeceiras do Poti, com quem tinha parentesco distante. Portanto,
fácil foi ao líder nativo buscar esse apoio na hora necessária
(PT/TT/RGM/C/0008/380651. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 8,
f.524v).
Em dezembro de 1711, estava o
cristão Manoel muito bem e de paz entre
os índios Aranhis, quando foram violentamente atacados, juntamente com os
Anapuru-Assu, pela tropa capitaneado pelo mestre-de-campo Antônio da Cunha
Souto Maior, sofrendo perdas irreparáveis. Em carta datada de 5 de janeiro de
1712, comunica aquele chefe militar ao governador do Maranhão, que “tinha morto
e aprisionado a todos os índios de corso das nações Aranhi e Anapuru-assu, e já
por aquela parte do Iguará, e Parnaíba não havia mais gentio que alguns
Caicaíses, a que vinha dar guerra para no São João que vem se passar com a
tropa ao rio Mearim, aonde habitava a poderosa nação dos Barbados, que são os
que fazem todo o dano aos moradores daquele rio” (AHU_ACL_CU_013, Cx. 6, D.
482).
Para a continuidade da guerra,
entre o preparo de armas e munições, pede aquele militar que o capitão-mor do
Ceará lhe mandasse reforço das nações Araricós e Anacés, estes últimos da Serra
de Ibiapaba, onde vivera Mandu Ladino.
Também Mandu Ladino, com esse
revés assume a liderança de seu povo, unifica o comando de algumas nações,
desdobrando-se, assim, em articulações e preparo para reagir contra esse
massacre de sua gente. O ponto inicial dessa reação foi o massacre de uma
divisão militar que retornara às referidas matas do Iguará e Parnaíba, matando
a todos, inclusive ao seu cabo Tomás do Vale. O assunto é assim tratado pelo
rei em ordem de 19 de dezembro de 1712, autorizando a remessa de quatrocentos
indígenas da capitania do Ceará:
“O governador do Maranhão, em
carta de 12 de agosto deste ano, me deu conta da rebelião que houve com os
índios que tinham ido com o cabo Antônio da Cunha Souto Maior à matas do Iguará
e Parnaíba, que depois da nossa tropa ter destruído a maior parte daquele
gentio, se levantaram contra os soldados, e os mataram todos, e ao seu cabo
Tomás do Vale, escapando um só soldado, que fora dá conta ao dito Antônio da
Cunha, que tinha ficado no arraial”( ACL_CU_015, Cx. 25, D. 2308).
No entanto, sem perda de tempo
marcham os indígenas sobre o arraial matando também ao referido mestre-de-campo
Antônio da Cunha Souto Maior e a seus comandados, fato que chocou a todos e
espalhou terror entre os colonizadores lusitanos. Foi quando despertaram e
passaram a respeitar o nome de Mandu Ladino, agora armado com bacamartes e
munições apreendidas no arraial, de que aprendera a usar com os brancos.
Para reconstituir minimamente os
traços biográficos e os passos desse bravo líder indígena, muito significativo
é o depoimento do cronista Bernardo Pereira de Berredo, que governou o Maranhão
(1718 – 1722) ao final do conflito quando foi morto Mandu Ladino. Então, a sua
crônica é um testemunho do governante que liderou a morte do indígena. Anotou
ele em seus Annaes Históricos do Estado do Maranhão(1749):
“Tinha sido cabeça de uns, e
outros insultos um índio chamado Manoel com a antonomásia de Ladino, que
nascido no grêmio Católico, e devendo a sua educação aos Missionários da
Companhia de Jesus, era o que fazia entre todos eles ostentações mais bárbaras
da sua primeira natureza” (BERREDO, Bernardo Pereira de. Annaes históricos do
Estado do Maranhão, em que se dá notícia do seu descobrimento, e tudo o mais
que nelle tem succedido desde o anno em que foy descuberto até o de 1718,
offerecidos ao Augustissimo Monarca D. João V, Nosso Senhor. São Luís:
Typographia Maranhense, 1849).
Em outro trecho anotara o mesmo
cronista sobre o assunto:
“Seguia-se a sucessão de 1713, e
a ela também a fatalidade da lastimosa morte de Antônio da Cunha Souto Maior,
que, servindo o emprego de mestre-de-campo da conquista do Piauí, os mesmos
tapuias de sua obediência, com quem fazia a guerra a todos os de corso daquele
vastíssimo país, aleivosamente lhe tiraram a vida, que tinha feito merecedora
de larga duração, assinalada honra do seu procedimento” (op. cit.).
O padre Manuel Aires do
Casal(1754 – 1821), sacerdote, geógrafo e historiador português, em seu livro
Corografia Brasílica, o primeiro a ser editado no Brasil, em 1817, acrescentou:
“Os [indígenas] que mais deram de
fazer, foram os da vizinhança do Rio Poti, comandados por um índio doméstico,
que fugira duma aldeia de Pernambuco, e os atiçava a uma teimosa resistência,
enquanto não pereceu violentamente, a tempo que nadava para a outra banda do
Parnaíba. Mandu Ladino era o seu nome vulgar” (CASAL, Manuel Aires de.
Corografia brasílica ou Relação histórico-geográfica do Reino do Brazil
composta e dedicada a sua Magestade Fidelissima por hum presbítero secular do
Gram Priorado do Crato. Tom. I. Rio de Janeiro: Na Impressão Régia, MDCCCXVII).
Pensamos que há equívoco nessa informação de
que o jovem Mandu Ladino fugira duma aldeia de Pernambuco, pois as aldeias aqui
vizinhas, em que os índios tinham contato com os do Piauí, inclusive muitos
eram daqui originários, eram as de Ibiapaba. Ao contrário de Berredo, cujo
depoimento é contemporâneo aos fatos, o de Aires do Casal é de cem anos depois,
sendo, assim, como memória mais passível de equívoco.
Depois desse massacre que escandalizara
a capitania, contra eles foi mandado o comandante Francisco Cavalcante de
Albuquerque, que saiu de São Luís em campanha pelo vale do rio Itapecuru.
Entretanto, em pouco tempo recebeu ordens para retroceder até a casa forte do
Iguará, que ficava na boca da capitania do Piauí, na expressão de Berredo. E
que se juntasse ao comando do novo mestre-de-campo Bernardo de Carvalho e
Aguiar, que fora eleito pelos fazendeiros e nomeado pelo mesmo governador para
substituir o inditoso Souto Maior. Então, continuam o combate aos nativos de
Mandu Ladino, com ordem expressa de matá-lo, ocasião em que o perderam,
massacrando, porém, os Aranhi de sua companhia.
O cronista e governador
contemporâneo Pereira de Berredo, assim narrou esse preocupante momento,
referindo-se ao governador que lhe antecedeu:
“... e desejando o governador o
seu justo castigo, o dispôs bem com a expedição destas novas ordens, que
executou Francisco Cavalcante com a devida pontualidade; porém parecendo ao
mesmo general, que ele havia faltado maliciosamente na parte mais essencial à
verdadeira inteligência delas, lhe despachou segunda, pra que tanto que
chegasse ao Iguará, obedecesse ao novo mestre-de-campo da capitania do Piauí,
Bernardo de Carvalho e Aguiar, que então se achava naquele mesmo sítio; e unido
com ele Francisco Cavalcante, se não logrou o principal projeto do senhor de
pancas no merecido estrago do índio Manuel, cabeça dos insultos, por fugir a
seus golpes, os descarregou na nação Aranhi da mesma fereza dos Barbados, que
deixou destruída, satisfazendo bem, com os acertos desta segunda ação, os
presumidos erros da primeira” (op. cit.).
Pelo dito governador são mandadas
repetidas ordens para o Ceará, primeiro para enviar em socorro quatrocentos
indígenas aliados, depois mais cem.
No entanto, também no Ceará
chegara a ação bem coordenada do chefe Mandu Ladino. Notícia de 17 de julho de
1714, deu conta de que os indígenas de Ibiapaba não poderiam ser enviados
naquele momento porque havia um levante indígena na região, onde foram por eles
mortos cento e sessenta colonos, havendo ameaça de também serem atacadas as
missões de Ibiapaba, cujos indígenas aliados eram necessários para a própria
defesa. Nesse tempo o caudilho Mandu Ladino, à frente de seus comandados, parte
em direção à Vila Nova da Parnaíba, no Igarassu, montando-lhe cerco e
atacando-a em todas as direções, no afã de destruí-la. Resistindo a esse cerco,
sustentava suas posições a duras penas o capitão-mor João Gomes do Rego Barra,
sem forças suficientes para rompê-lo. É quando corre em sua defesa, com
numerosa tropa, o mestre-de-campo Bernardo de Carvalho e Aguiar, levantando o
cerco depois de ligeiro combate, de que morreram muitos indígenas. Em seguida,
perseguindo um contingente indígena ou maloca, os empurra para uma ilha de
difícil acesso e combate. Receoso do enfrentamento em terreno perigoso, prefere
Aguiar negociar termos de paz, aceitando os indígenas a pacificação e presença
de um missionário entre eles. Ladino escapa ileso e alcançando outras posições
sustenta sua luta com maior vigor e ousadia. As rebeliões e estragos são por
toda parte, nenhum contingente indígena sendo confiável pelos brancos. As ações
são coordenadas entre os Crateús, Aranhis, Anapurus, Anacés, Barbados,
Caicaíses e tantos outros indígenas confederados do Piauí, Ceará e Maranhão.
Foi o maior levante indígena de que se teve notícia nesse território,
escandalizando e apavorando o colonizador lusitano. Esse momento de nossa
história, que teve princípio em 1712, ainda pouco estudado é conhecido como
Levante Geral dos Índios ou Revolta de Mandu Ladino.
Infelizmente, com inferioridade
de armas foram sucumbindo à espada e ao bacamarte inimigo as diversas nações
indígenas rebeladas. O líder Mandu Ladino foi alvejado pelo tiro certeiro de
Manuel Peres Ribeiro, sargento-mor da Parnaíba, em 1719, quando retrocedia de
um combate, atravessando a nado o rio Parnaíba. Com o tiro nas costas ainda se
debate em desesperado movimento de pernas e braços, porém, aos poucos vai
paralisando os membros até afundar nas águas plácidas do rio Parnaíba. Morria
um sonho, nascia uma lenda!
No entanto, a reação indígena
ainda perdurou por dois anos, até 1721, quando foram definitivamente
aniquiladas as principais nações indígenas da bacia parnaibana pelas tropas de
Bernardo de Carvalho e Aguiar. Foi um genocídio, cujo silêncio cúmplice perdura
até os dias de hoje. Ao fim desses combates, Bernardo de Carvalho muda-se para
o Maranhão, ocupando novas terras incorporadas ao domínio português e, no
Piauí, tem início nova fase da conquista. Foi, enfim, instalada sua primeira
Vila, denominada Mocha, cujo levante impediu a instalação por sete anos. No
entanto, permanece para sempre em nossa história o nome de Mandu Ladino, o
líder indígena que ousou desafiar o jugo português, razão de figurar nessa
galeria de figuras notáveis de nossa terra.
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* REGINALDO MIRANDA, é membro
efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico
Piauiense e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.
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