sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Boca de forno...jacarandá...se não for, apanha!



Boca de forno...jacarandá...se não for, apanha!

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

 Líder grita: Boca de forno. Garotada responde: Forno. Líder: Jacarandá. Garotada grita: Dá. Líder aumenta o tom: Se eu mandar. Garotada animada: Vou. Líder ameaça mais alto: Se não for? Garotada surpreende: Apanha. Líder, decidindo: Reman, reman, quem trouxer... Todos os comandados ouvem, atentos, a ordem para tarefa ingrata, e correm para cumpri-la. Quem regressar de mãos vazias, leva uma palmadinha. A folclórica e inocente brincadeira encontra-se desaparecida da moderna geração adolescente, perde a inocência, ludibriada com as fantasias virtuais. A brincadeira, continua, mas  diabólica, na ciranda de adultos poderosos da República. No Piauí, principalmente. Volto já ao assunto.

Minha doce infância, anos 50, modesta Teresina, Piçarra piçarrenta,  inúmeras casas de palha, ruas sem água encanada nem calçamento e iluminação pública. Noites de lua cheinha de luz, mocinhas e crianças brincavam de ciranda, meio da rua, boca de forno, jacarandá. Ainda pirralho, sentava-me na calçada da bodega de meus pais, Martinho e Dedé. Divertia-me só de ver a bela Princesa, filha de Seu Artur e Dona Mariquesa, comandando o círculo de cantigas e canduras. Princesa mais tarde casaria com o empresário Nilo, proprietário de livraria, hoje várias filiais nas mãos prósperas dos herdeiros.

“Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar/Vamos dar meia volta/Meia volta vamos dar!” O tempo passou.Volto a  outras cirandas e bocas de fornos diabólicos a engabelar a opinião pública com rodeios, tapeações, falsas promessas e desvios de dinheiro público. Enchem a cara de hipocrisias e risos a fim de esconder fortunas das bocas de fumo, verbas públicas. Milhões de cidadãos, coitados, na ciranda das precariedades nos serviços públicos. A ciranda de governantes dança, carnavaleia, turistando mundo afora, tripudiando sobre salários atrasados dos funcionários, discurso arrocho em vista a responsabilidades fiscais No Palácio, repartições e setores da imprensa, porém, distribuem-se comissões a centenas de comandados, que,  “se ele mandar...vou...se não for...” não pega “faz-me rir” e bacalhau. Subservientes até por talagada de propina, mesmo que uma bolsinha contra fome.

Genial Luís Gonzaga gravou a bela e popular canção (Boca de Forno)  da garotada, em 1982. A brincadeira estimula a agilidade, capacidade motora, talento, concorrência decente. Buscar a prenda sem punição (e Lava Jato) ou recompensa falsa. Ciranda do companheirismo decente, sem passar a perna para derrubar os outros. Sem consciência imunda.

A esperança de nosso povo anda por um fio de perder a fé no impossível de acontecer: justiça, caça aos larápios da merenda escolar, saúde dos velhinhos, crianças e senhoras grávidas, sem leitos nem atendimento. Puxa-sacos e vira casacas correm às bocas de forno e jacarandás, atrás da ajudinha em troca da dignidade. Sem méritos, sem convicções sociais, sem patriotismo. É a pátria pelo prato.

Na infância, sonhei belos castelos, mesmo na pobreza de meus pais. Na modesta bodega, depois farmácia, vi-os conquistar a prosperidade, mas distribuindo generosidades aos mais pobres. Nós, filhos, herdamos-lhes virtudes como dádivas. Hoje, observo quão cruel a dura realidade por que atravessam milhões de brasileiros. Esvaíram-se sonhos extraídos das brincadeiras de cirandas de antanho: coleguismo prazeroso, agilidade, mérito e justiça. Hoje, só desencanto, assistindo a tragédias sociais e morais, a ponto de, em vez das cirandas, cirandinhas e boca de forno, revivo, outrossim, versos do soneto de Augusto dos Anjos: “Meu coração tem catedrais imensas/ Templos de priscas e longínquas datas,/Onde um nume de amor, em serenatas,/Canta a aleluia virginal das crenças/... No desespero dos iconoclastas/Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!"   

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