quinta-feira, 21 de março de 2019

O LADO BOM DA SOLIDÃO

Fonte: Google

O LADO BOM DA SOLIDÃO

Antônio Francisco Sousa – Auditor Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)
Articulista e cronista

                Sandoval me contou, na última quarta-feira de cinzas, com esgares de entristecido e deprimido, que aproveitara o período carnavalesco - para a maioria das pessoas, de muita animação, mas para ele, pelo menos, atualmente, uma época como outras no curso de mais um ano - para fazer um desmanche, um desmonte, um apanhado nas quinquilharias, roupas, sapatos, meias que há muito vinha acumulando e que lhe pareciam demasiados, eis que já quase enchiam e entulhavam despensa, armários, gaveteiros, criados-mudos. Outros fins, talvez o lixo, mereceriam tais bens sem utilização prática.

                Escolhe daqui, separa dali; volta atrás, tenta guardar aquele par de sapatos que tanto gostara de usar com o jogo de camisa e calça, em vias de ser descartado; melhor deixar ficar: estavam em tão bom estado. Nada disso! A missão a que se propusera era esvaziar espaços, desnecessariamente, ocupados por tanta bugiganga. Metodicamente – não sem algumas recaídas, ímpetos de esconder ou tornar a guardar alguns -, foi separando em sacolas plásticas individuais, calças, camisas, camisetas, meias, sapatos, sandálias. Finda a coleta, enormes pacotes empilhavam-se pelos recintos da casa, prontos para serem desovados, jogados fora, mesmo destruídos. Não! Sua mulher decidira que não haveria destruição, a princípio, seriam apenas colocados longe dos olhos do ex-dono: sempre há quem precisa mais do que a gente; por que não, doar a essas pessoas, ou a instituições que pudessem fazer isso? Comentou Sandoval, que ainda tentou ponderar que não gostava de distribuir aquilo que, para ele, se tornara imprestável; lixo não de dava a ninguém. A palavra final ficou com a esposa, e não falaram mais naquele assunto. Na, então, enorme e tão espaçosa despensa, ficaria, temporariamente, todo o apanhado.

                Meteu-se Sandoval, após essa primeira operação, a arrumar, nos vários lugares que restaram após o desmanche generalizado, o que ficara, aquilo que fora considerado bom, aproveitável, necessário, em matéria de vestuário, sapatos e artigos outros. Encerrados os trabalhos de rearrumação, de tão cansado, adormecera. Sono curto, que culminou em barulhento pesadelo, capaz de fazer com que a patroa, que se encontrava lá na sala, entre lendo e batendo papo no WhatsApp, tivesse que quase correr para saber o que o fizera gritar tão alto. Nada não, disse-lhe o esposo: apenas sonhara que estava sendo roubado, que levavam suas roupas, sapatos, e o carro, com tudo dentro. A mulher, inteligente, gentil e atenciosa, como são todas as boas mulheres, aproveitara a situação para perguntar-lhe se não aceitava um cafezinho bem fresco. Como não?

                Antes de ir à cozinha, onde sua “velha” lhe preparava o café, deu uma boa olhada no guarda-roupa, no sapateiro, nas gavetas de meias, nos nichos do criado-mudo que utilizava para colocar pequenos trecos, um imenso vazio o entristecera deveras. Será que agira bem? Não iria sentir falta de bens ou objetos que, logo, logo, estariam fora de seu alcance?

                Pediu à mulher que lhe fizesse companhia, enquanto tomava seu café, por sinal, bom demais. Contou-lhe que estava sentindo doer vazio tão denso; mas, também lhe segredou, parecia que tal sensação não resultara tão somente do desfazimento que acabara de acontecer, um conjunto de situações anteriores e que veio à tona naquele momento, reforçara sua conclusão. Há muito, os filhos haviam ficado adultos, tinham suas próprias residências, seus afazeres; a casa, se não se mostrara pequena e solitária, ainda que com tantas quinquilharias nela acumuladas, agora, parecia comportar o mundo todo. E ele estava triste, reiterou à esposa. Pesava-lhe no peito um sentimento para o qual imaginava estar preparado; sempre se policiara, era o que pensava, para a chegada dos momentos de solidão, causados por situações inevitáveis, como a independência e afastamento dos filhos para cuidarem dos lares que constituiriam.

Os bens e objetos desprezados conscientizaram-no de que tanta preparação não surtira efeito, fora vã. Estaria, realmente, ficando velho, amolecido, sentimental demais? Disse à esposa, naquele momento, que precisava sair, espraiar, caminhar. Sua mulher que, geralmente, preferia ficar em casa, resolvera acompanhá-lo; possivelmente, suas palavras a fizeram compreender que ele poderia estar certo: eles eram agora, na maioria do tempo, apenas os dois e, como sempre, precisavam um do outro, ser parceiros. De mãos dadas, a mim revelou um Sandoval emocionado, saíram a passear. Quem sabe por onde andassem deixasse por lá toda a tristeza que lhe sufocava, e, ao voltarem para casa, pudesse vê-la como, de fato, era: o melhor o lugar do mundo, pois fora nela que tudo começou para o casal. Talvez até se desse conta de que um pouco de solidão, vez em quando, faz-se necessário para permitir que aflorem ou se reavivem sentimentos que o tempo camuflou, mimetizou, escondeu ou substituiu: o companheirismo, a cordialidade, a camaradagem, a solidariedade, a confiança.

                Logo chegaria o final de semana, filhos e netos iriam encher, novamente, a casa com sua presença. Certamente, nem sentiriam que o espaço aumentara; sem problema: agora, poderiam correr, pular, cair e levantar, muito mais que antes. E, depois, voltariam para seus lares, felizes como haviam chegado.

Se me houvesse pedido um conselho Sandoval, dir-lhe-ia: amigo, importante é que a vida continue e a alegria nunca possa ser menor que a tristeza.   

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