3ª edição de Rosa dos Ventos Gerais |
PALAVRA DE LEITORA (*)
Teresinha Queiroz
Historiadora e ensaísta
Paul Veyne, ao tratar da elegia erótica romana,
registra interessante distinção entre a alma do poeta e a dos mortais comuns.
Segundo sua afirmação, a alma do poeta é mobiliada por um certo número de
sentimentos, assim como a dos outros homens; além disso, nessa mobília há
também um espelho, que reflete o resto do mobiliário. Dessa sorte, a alma que
contém este móvel de Narciso não é igual a outra que tivesse o mesmo mobiliário,
e não tivesse o espelho.
Esse móvel narcísico e seus reflexos têm
sido objeto de especulação permanente no âmbito dos estudos literários. Aqui o
que nos interessa não é adicionar algo a essa questão, muito menos sumariá-la,
porém, tão somente expressar em rápidas pinceladas nossa visão de como o poeta Elmar
Carvalho, em sua obra síntese A Rosa dos
Ventos Gerais produz, através da criação poética, o seu mundo e revela, no
seu espelho interior, o nosso mundo.
A vigorosa poesia de Elmar Carvalho desvenda
com força extraordinária alguns dos mais profundos ismos de nossa cultura: o narcisismo (do poeta), o erotismo e o
lirismo. Marcas indubitavelmente modernas, mas ao mesmo tempo classicamente
antigas.
Se não sou capaz de decodificar as estéticas,
devo enfatizar as temáticas. Nesse sentido, o fulcro da modernidade é a tomada
da própria poesia, do amor e da paixão, em suas diferentes modalidades, e da
política, como objetos de elaboração poética. Todos esses objetos,
agressivamente presentes na poesia de Elmar, trazem como expressão comum uma espécie
de estética da intensidade. A comunicação dos sentimentos, no mundo moderno,
tem sido feita a marteladas, de forma a provocar a dor e, no caso dos registros
literários, a agredir da maneira mais íntima a emoção.
Nesse aspecto, a poesia de Elmar se
apropria da emoção do leitor, através de um lirismo intenso, como na “Lírica
2222” e em “Trabalho de Cestaria e Renda”, de contundente crítica política,
como está posto em todo o Cancioneiro do Fogo e de um erotismo basilar, que é
toda a força vital da natureza, criada poeticamente, porém, no limite, “quase”
desveladora das amarras culturais face à
potência da vida. Essa força impetuosa, primordial, está expressa com a maior
qualidade artística no notável conjunto poético que é o “A Zona Planetária”.
Aliás, é através de “A Zona Planetária”
que Elmar leva às calendas gregas e nos religa à mais clássica e milenar
tradição poética ocidental. Ao atrever-se a resgatar esse universo literário
por excelência que é o da Mitologia, associando-se à Astronomia – saber que já teve
seus momentos de ser levada a sério, tendo importância similar à da Psicanálise
hoje e que continua, apesar de tudo, a ser um dos nossos fundos mentais – e a
uma disciplina que o próprio autor denominou “Sociologia dos cabarés”, terminou
por realizar trabalho de inusitada audácia criadora. Nesse poema exemplar se
encontram aqueles traços já evidenciados do lirismo, da paixão contundente e
arrebatadora, do erotismo visceral, sem dúvida traços do sentir moderno. O clássico,
e na historiografia a tradição clássica é a greco-romana, é inegável na escolha
dos temas, no requinte das imagens, na natureza e teor dos recursos
metafóricos.
A aludida estética da intensidade, que
conduz à busca incessante da emoção mais adormecida e resguardada do leitor, neste
livro, ganha a forma da comunicação mais forte, mais direta, às vezes até
despudorada, mas de um despudor que se explicita quase sempre por um jogo de
sentimentos conflitantes, excludentes. Esse jogo de intensidade, que trabalha
emoções diferentes, está em vários pontos do livro e a transparente em
“Rompimento”, mescla a asco e sublimidade, com passagens rapidíssimas do sujo
ao etéreo, ao quase evanescente.
O jogo
especular entre o poeta e o leitor é feito de imagens ricas, poderosas, exemplares.
Essa comunicabilidade pode ser conferida na temática do amor e da paixão, em
que a simbiose autor-leitor revela-se, a partir do espelho da alma do poeta, em
flagrantes quase cotidianos, como em “Encontro”, em “Musa Medusa” e em “Amor”.
Deve-se destacar que em quase todos os seus poemas de amor está presente aquele
vezo literário que demarca a poesia ocidental moderna – que é o tema do
interdito, do proibido, da paixão irrealizada, não consumada. É sabido que o
desencontro amoroso, que a frustração dos amantes tem sido a tônica da criação
ficcional dos últimos séculos. Exemplo nesse sentido é o “Elegia do Amor
Final”, que se conclui com a belíssima imagem:
“E teus cabelos
à brisa eram lenço
acenando em despedida.”
A grande densidade lírica de A
Rosa dos Ventos Gerais é também em grande medida associada ao erotismo, o
que explica e justifica a igualmente forte presença feminina neste livro. Em
seu ato de criar e recriar a mulher, o poeta a evidencia como um completo-complexo
objeto amoroso. Eis que emergem de seu livro “Olhos”, de lã e de lâminas, de
céu e inferno, verdes musgosos, azuis fuzilantes; cabelos de lenço e de loiras
algas; mãos que acariciam e esmurram; bocas sequiosas e bocas mudas; curvas
femininas que transcendem as curvas da terra e do mar, meras projeções da “poesia
selvagem de teu corpo”. Tomando as próprias palavras do poeta, a mulher aqui é
retratada “a leste, a oeste, ao vento e ao mar, com a mesma paixão incontida de
um gesto feito de raiva.” Devo dizer como leitora, que o poeta sucumbe, se
submete, capitula e que apesar da resistência, este livro é de entrega.
Não creio ser necessário destacar as
poesias marcantes do autor e já sobejamente realçadas pelos seus críticos e
leitores. É óbvio que também acho encantadoras “Noturno de Oeiras” e “Amarante”,
de suave melancolia. “Elegia a Campo Maior”, de versos tão sublimes, sempre me
fazem lembrar o Neruda das paixões adolescentes, especialmente dos 20 poemas de
amor e uma canção desesperada e não apenas pela singular humanização da natureza,
como pelas belas imagens construídas e pelo campear melancólico do sonho e da
solidão. A mesma sensação me persegue quando leio os diversos poemas marítimos,
tão narcisicamente coletivos, de que destaco a quase camoniana “Perdição”.
Por fim, ler a poesia de Elmar Carvalho,
para esta sua leitora circunstancial, tem sido sempre um suave mergulho não só
em nossa sensibilidade coletiva, mas igualmente nos arcanos de nossa tradição
cultural.
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(*) Texto publicado no Almanaque da Parnaíba, nº 64, 1997. A
autora foi professora da Universidade Federal do Piauí. Altamente respeitada,
tem mestrado e doutorado em História.
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