Fonte: Google/APL |
Certa feita,
após uma solenidade da Academia Piauiense de Letras, entrei numa animada, quase
acirrada discussão literária, em que exercitei o meu senso de humor, naquela
manhã em que estava me achando; me achando criativo, bem-entendido. Notei que um
circunstante me observava com atenção, entre admirado e levemente divertido; ao
menos foi o que me pareceu, pela sua expressão facial. Depois, o acompanhei a
um outro recinto e nos apresentamos.
Tratava-se
do Dr. Weliton Carvalho, juiz de Direito na Comarca de Timon, natural de
Bacabal (MA), mas também pertencente a estirpes piauienses, sobretudo de
Floriano. Fiquei sabendo que gostava de literatura e era poeta. Ele passou a
frequentar nossos eventos culturais, principalmente palestras, seminários e
lançamentos de livros, com admirável assiduidade. Aos poucos fomos construindo
uma amizade, para a qual contribuiu a sua lhaneza, simpatia e humildade, e
principalmente a sua cultura literária.
Logo no
início percebi que ele estava longe de ser do tipo desses poetas diletantes e
ingênuos, que acham que o simples fato de serem bacharéis em Direito lhes dão o
direito a ter uma “carta de poeta”, como se dizia outrora. Nas diversas palestras
que tivemos notei que ele conhecia os grandes poetas maranhenses, piauienses e
brasileiros, sobre os quais emitia comentários apropriados e argutos, de quem assimilou
crítica e teoria literária. Ele me parece conhecer tanto a boa crítica
impressionista, como a nova crítica, a que analisa sobretudo os aspectos
intrínsecos da peça literária em debate.
Quando iniciou
o processo de edição do seu livro Ócios do Ofício me pediu para fazer a sua
apresentação na solenidade de lançamento, que seria no auditório de nossa APL.
Trocamos algumas ideias a respeito, e ele com antecedência me deu uma “boneca”
da obra, que estava sendo impressa em outro estado.
Tentarei transpor para este Diário o
que disse na ocasião, de improviso, seguindo o esquema de que fiz uso.
Chamou-me a atenção o título, pois o poeta se encontra em plena atividade na
judicatura, e certamente assoberbado de trabalho como hoje é de praxe. O ócio
deve ser as suas escassas horas de folga, que ele dedica a ler, e a escrever os
seus belos poemas.
Portanto, trata-se de otium cum
dignitate, quando ele se propõe a enfrentar a página em branco, quando
tenta conciliar a inspiração e a transpiração, ou seja, o trabalho e o labor
mental de quem estudou e meditou, mas que também possui como aliados o talento
e a inteligência. Sobre isso José Ewerton Neto, em seu abalizado prefácio,
teceu a seguinte consideração, que espanca qualquer dúvida: “Esse
compartilhamento, fruto dos ócios do ofício que o fizeram postar-se diante de
uma página em branco para sentir-se e fazê-la sentir, se faz presente de uma
forma ou de outra em quase todos os seus poemas.”
Não se trata apenas da página em
branco, que deve ser enfrentada, contudo jamais afrontada, ou da busca de
assuntos, de temas, mas também de dizer o já dito e redito em nova linguagem e
imagem, em novo e inventivo formato. Contrapondo-se ao conhecido pessimismo de
Eclesiastes – “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará;
de modo que nada há de novo debaixo do sol (1:9)” – busca se reinventar e
inventar novas fórmulas, como está posto no início do poema “Página a um
poema”:
A página em branco suplica um poema,
a manhã é banal e os tempos sombrios.
Em verdade, de tudo se faz um poema:
esses retratos, metáforas de túmulos
na estante,
esses móveis de família,
melancólicos.
Ao lançar mão da inventividade e de outros
recursos e de novas fôrmas e formas de se expressar, o poeta tenta fugir das
banalidades, das repetições e monotonias de que nos fala o pregador de
Eclesiastes, e por isso procura se renovar e inovar na construção de seus
versos. Contudo, é um poeta sóbrio, distanciado dos exageros e torrencialidades
de certos poetas menores, que procuram nos impressionar com os seus barulhos e
estridências. Eu poderia demonstrar o que afirmo transcrevendo diversas passagens
ilustrativas, mas prefiro deixar que o leitor o faça.
Os assuntos dos poemas são os mais
diversos possíveis, e vão desde o lirismo, ao que há de mais moderno da
intertextualidade e da metalinguagem, além dos poemas sociais ou de denúncia,
sem jamais tender para o meramente panfletário, em sua procura de dizer o
indizível, o inefável, de tudo dizer na medida do possível e do impossível. Sem
dúvida, além de outras temáticas, o livro agasalha versos epigramáticos,
satíricos e eróticos, todos em sábia dosagem, voltagem e medida.
Ao longo do livro vai homenageando os
seus escritores e poetas prediletos, e através dessas predileções vai revelando
os métodos e segredos que utiliza na construção de seus poemas, como a
exiguidade e a exatidão de Graciliano Ramos: “A frase curta, / exata e plural:
/ toda singular. // Nada falta / nem sobra / seco exato.” Sem transbordamento,
sem excesso e sem falta, como em João Cabral, engenheiro da poesia, ou como
Joaquim Cardozo, engenheiro dos cálculos estruturais e das estruturas poéticas.
Homenageia também seus compositores
favoritos, entre os quais Mozart e Bach. A esses dois, no meu gosto pessoal, eu
acrescentaria, Beethoven, a catedral suprema e soberba da harmonia musical,
Chopin e Tchaikovsky. Sobre Mozart e Beethoven se diz que a música de um seria uma
composição do homem para Deus, e a do outro, seria a de Deus para o homem. Para
mim são ambas músicas celestiais, divinas, e eu já não recordo e já não quero
recordar qual das referências se referia a um, e qual ao outro, tal a grandeza
de cada um em meu conceito.
No seu livro
me deparei com a bela “orelha” da lavra de José Ribamar Neres, professor de
literatura e membro da Academia Maranhense de Letras, da qual pinço estas
elucidativas palavras: “A poesia desse talentoso escritor é forte, vibrante,
segura e, sem dúvida, pode ser colocada entre as grandes obras das letras
brasileiras contemporâneas.” Sem dúvida essas palavras são a expressão da
verdade, e eu as assinaria sem vacilos e titubeios.
Tive ocasião
de contar um fato interessante ao nosso poeta, que faço questão de aqui relatar,
em síntese e entre parênteses. Mais de vinte anos atrás, em encontro fortuito,
o saudoso cordelista e editor Pedro Costa me informou que o professor José
Ribamar Neres havia escrito um excelente trabalho sobre meu livro Rosa dos
Ventos Gerais, 1ª edição, por sinal uma singela e acanhada edição. O ensaio
fora publicado na revista De Repente, que Pedro editava com a cara e a coragem
e minguado recurso financeiro. Era uma crítica muito bem feita, conquanto
sintética, em que Neres comentava e analisava os principais aspectos de meus
poemas. Meses depois ele me contou, por e-mail, que por acaso encontrou meu
humilde e pequeno livro no meio de vários outros, em certa livraria ou sebo;
que começou a folheá-lo lentamente, creio que pulando páginas, e ele, nas suas
palavras, pôde perceber a qualidade dos poemas. E foi assim, sem premeditação,
antes por acaso, que ele escreveu o ensaio, que muito me honra, e foi enfeixado
na edição seguinte. Mas fechemos o parêntese e este parágrafo com este ponto
final.
Em nossas
conversas observei que Weliton Carvalho não alimenta preconceitos e nem
maniqueísmos literários, e valoriza, assim como eu, certos autores que foram
vítimas de rotulações inapropriadas e de ideias preconcebidas, que um crítico
ou desafeto diz, e os repetidores espalham e consolidam. Assim, nós
reconhecemos que o poeta José Sarney tem sido uma das vítimas desse desdém, por
vezes gratuito, tanto que ele colocou como epígrafe de um de seus poemas o
seguinte trecho de Homilia: “Tenho um encontro com Deus: - José! / onde estão
tuas mãos que / eu enchi de estrelas? / - Estão aqui, neste balde, / de juçaras
e sofrimentos.”
Arrematando
minhas palavras, noto que seus poemas são concisos, porque ele os quis
esbeltos, elegantes, sem superfluidades e sem os excessos de gordurinhas; são
poucos, porque a quantidade nunca o atraiu, mas, sim, a alta qualidade que lhes
conseguiu injetar; são exatos, porquanto, seguindo as lições dos mestres da
poesia e da engenharia, ele os calculou e projetou para que não houvesse exagero
ostensivo de formas e de argamassa.
No título
deste registro, em lugar de toga e espada, símbolos da magistratura, preferi
colocar o martelo e o cinzel, porque são símbolos da Justiça, da escultura e da
poesia, ao menos na profissão de fé bilaquiana, em que o poeta em perfeito
lavor vai tecendo os seus versos.
O escultor a retirar do bloco concreto de mármore ou do tronco de madeira a escultura, e o poeta Weliton Carvalho a retirar do bloco imaterial de palavras, “em estado de dicionário”, as palavras com que irá urdir o seu poema.
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