Fonte: Portal Costa Norte |
ARCA DE NOÉ III
Vitor de Athayde Couto
Professor, cronista e ensaísta
– Viu? É o globalismo! – disse
Edwiges, a coruja branca.
– Chhh! – fez a plateia. Ching
retomou a sua fala, com serenidade:
– …meus ancestrais foram vendidos
para um circo de Manaus. Toda a família é circense. Nasci no circo, entre
palhaços. Quando proibiram espetáculos com animais silvestres, uma ONG
ambientalista me adaptou para viver na floresta. Confiem em mim. De palhaços eu
entendo. No circo conheci até aqueles sem graça, que disparam fake news e falam
três vezes antes de pensar. Mas, vamos lá! Os castores cortam, e os
rinocerontes arrastam os troncos até o rio. Na água, as lontras formarão
grandes balsas…
– Ei, péra! – interrompeu Cam, um
velho camelo, ator da SSBT. – Vocês sabem, eu fui protagonista, tanto do Velho
quanto do Novo Testamento. No Natal, transportei até reis.
– Grande coisa. Eu transportei o
Menino Jesus, pá! E até Nossa Senhora!
– Tudo bem, seu jumento! –
resmungou Cam, e continuou – Ante o dilúvio, Noé adotou outra estratégia:
construir a sua arca em terra. Quando as águas subiram, fizeram a arca flutuar.
Mas aqui é o contrário. Será um “dilúvio” de fogo. A água é que vai nos salvar.
Precisamos fugir da terra, antes que as queimadas atinjam nosso território.
Precisamos de um grande estaleiro dotado de trilhos para que a arca, já pronta,
deslize até o rio.
Ching pensou… mas, sem ter uma
resposta pronta, devolveu a dúvida para a assembleia. Foi aí que Cascudão, um
jacaré-açu, pediu a palavra. Calmamente, fez-se ouvir:
– Vejam, eu não tenho nada com
isso. Posso me virar sozinho na água. Meu problema eram só as piranhas, mas eu
fiz um curso numa ONG ambientalista estrangeira. Eles me ensinaram a nadar de
costas. Não preciso de arca. Mas… peraí! Em vez de arca, por que não fazemos um
comboio de ajoujos? É só amarrar várias igarités, do tamanho que os elefantes
possam transportar até o rio. Uma igarité de cada vez. Eu, Ana Conda, Tucuxi e
o Poraquê rebocaremos o comboio. Ana jurou que não vai comer a gente (risos).
Aprovado e feito. Em sete dias, o
formidável comboio de igarités estava concluído, abastecido e atrelado ao
rebocador “Anime”, que dá nome à expedição de salvamento. No fim do comboio, os
“cunágua” guardam a mandioca seca e outros mantimentos numa enorme balsa de
buritis, protegida pelas três armas: as onças-pintadas, os jacarés e as
harpias. Assim, a defesa é garantida por terra, água e ar. O plano de navegação
também foi definido. Nadando no escuro da noite, à frente do rebocador, o
Poraquê mostra ao piloto as correntezas mais profundas do rio, com o brilho de
suas descargas elétricas de até 1.600 volts. Na cabine de comando, aves de
rapina, com excelente visão noturna, revezam-se com um casal de
coelhos-do-mato, que têm boa visão diurna.
Começa o embarque. Só entra um
casal de cada espécie animal. No fim da fila, dois barés, infiltrados, aproximam-se
da rampa de acesso, Ching, que fazia a triagem, gritou:
– Ei! Vocês, não!
– Por quê? – perguntou o baré
macho, sem poder controlar o nervosismo diante do líder.
– Porque vocês são humanos. Os
humanos são os responsáveis pela destruição do bioma amazônico. Agronegócio,
garimpos, madeireiras, comunidades, até aldeias inteiras, tudo será cremado no
grande incêndio de outubro. Os criacionistas farão na Terra um estágio para
resistir ao fogo eterno, sem direito à morte. Quanto aos evolucionistas, terão
que esperar milhões de anos para dominar o planeta outra vez. Mas, não se
preocupem. Eu tou com a macaca. Esta é Ling, minha fêmea. Eu e ela faremos tudo
de novo. Faremos muitos macaquinhos ChingLings. Até a chegada do primeiro
Australopiteco, que será o messias da nova temporada da SSBT, o mundo será
dominado pelos bichos. E por todo esse tempo não haverá mais incêndios
criminosos. Nem omissões.
(Continua)
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