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Na foto, vê-se, entre outros: Márcio Freitas e seu filho, Dilson Tavares, Elmar Carvalho, Rubens Luna e o prefeito de Amarante, Diego Lamartine Teixeira |
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Componente da Expedição Sertão Colonial Fonte: Portal 180 Graus
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A fábrica de laticínios do Engenheiro Sampaio, quando ainda estava bem preservada. Fonte: Google |
Expedição ao Sertão Colonial
Elmar Carvalho
1.
AMARANTE
Na quinta-feira, dia 17, recebi telefonema do des. Carlos
Brandão, em que me convidava a participar da “Expedição Sertão Colonial”, a ser
iniciada no dia seguinte, pela manhã. Me falou do cronograma e objetivos da
viagem. Ao final de seus argumentos, com que procurou me convencer a aderir à
empreitada, disse-lhe: “Temo não poder participar, vez que vendi minha picape
ao meu filho, que mora em Manaus”. Mas ele me respondeu que me conseguiria uma
carona, pelo que fiquei sem motivo para dela não participar. Em virtude de eu
lhe ter falado sobre um antigo projeto meu para a cidade de Amarante, ele me
disse que me facultaria a palavra, no momento das falações.
Quando cheguei ao parque da Floresta Fóssil (ponto de
encontro para a saída), conduzia um exemplar de meu pequeno romance Histórias
de Évora, para ofertar a algum amigo. Logo fui abordado por uma pessoa que
ficou interessada e curiosa sobre o livro e seu conteúdo. Em rápidas palavras,
lhe expliquei que a Évora de minha ficção era uma cidade fictícia, misto de
Parnaíba e Campo Maior dos anos 1960/1980, bem como, em menor escala, de outras
urbes de nosso estado.
Acrescentei que, como pano de fundo, ele tratava um pouco da
história recente, econômica e social do Piauí, sobretudo da decadência do
extrativismo econômico e da agonia, paixão e morte dos velhos cabarés, que
outrora incendiavam o imaginário dos adolescentes e jovens. Como propaganda,
afirmei que se ele superasse os três capítulos iniciais, leria todo o romance.
De fato, alguns minutos depois, o professor universitário Samuel Pontes do
Nascimento (era este o nome de meu potencial leitor), me falou haver lido o
primeiro capítulo, e me asseverou que prosseguiria em sua leitura. Numa época
de escassos leitores, isso me soou como um elogio.
Após o café na Floresta Fóssil de Teresina, e depois de uma
elucidativa palestra sobre o projeto de revitalização desse ponto turístico e
de pesquisa, inclusive com a construção de novos e importantes equipamentos
para essa finalidade, seguimos para a cidade de Amarante, com parada inicial no
parque ecológico e turístico da Cachaça Lira, onde poderíamos sorver dois ou
três tragos dessa deliciosa pinga. Em seu restaurante degustamos um saboroso
jantar.
No passeio e jardim da margem piauiense do Parnaíba, houve
vários e pertinentes pronunciamentos, entre os quais o do médico e intelectual
Francisco (Tatá) Almeida, que é meu velho conhecido. Em seu consultório ele tem
uma bela e enorme escultura do excelso poeta Da Costa e Silva em postura
declamatória. Tem na cabeça minuciosa biografia de Da Costa, um verdadeiro
livro virtual, que espero seja publicado na internet e no formato impresso.
Discorreu sobre aspectos interessantes e pitorescos da vida do grande vate, e
lhe recitou de cor alguns poemas, em mais de uma ocasião de nosso périplo
amarantino.
Quando terminaram os pronunciamentos, previamente
programados, o des. Brandão abriu espaço para que eu falasse do que há várias
décadas eu havia idealizado. Subi à tribuna improvisada, no caso a borda de um
canteiro da pracinha, e de forma muito sucinta disse que estivera em Amarante
várias vezes, desde a primeira metade dos anos 1980, tanto a serviço da extinta
Sunab, como para participar de eventos culturais. (Inclusive, acrescento agora,
em minha gestão como presidente da União Brasileira de Escritores do Piauí –
UBE-PI promovi um encontro de escritores nessa bela terra azul do nosso poeta
maior, quase uma ilha, na verdade um jardim incrustado nas confluências do Mulato,
do Canindé e do Parnaíba, cercado pela beleza azul das serras e colinas, que o
grande bardo tanto exaltou em magníficos versos.)
Falei que, no período 1988/1990, na qualidade de presidente
da UBE-PI, encetei uma campanha para que os restos mortais de Antônio Francisco
da Costa e Silva (1885 – 1950) fossem sepultados em Amarante, sua terra natal;
que no cemitério do Rio de Janeiro, por maior que ele tenha sido, e ele de fato
é um dos maiores poetas brasileiros, seu túmulo é apenas mais um túmulo entre milhares,
mas que em seu torrão seria visitado e reverenciado por milhares de piauienses
e amarantinos. Usei, trinta anos atrás, como fundamento de minha campanha, o
seu próprio desejo, expresso no segundo terceto do soneto Amarante: “Terra para
se amar com o grande amor que tenho! / Terra onde tive o berço e de onde espero
ainda / sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho!”
Portanto, defendi a ideia de que seja construído em Amarante
um mausoléu e memorial, de preferência com auditório, estátua e placas
modernas, com ilustrações, em que seriam estampados alguns de seus poemas
antológicos, bem como poemas de outros autores sobre ele e sobre a sua bucólica
cidade. Como alguém aparteou, lembrando que o embaixador e poeta Alberto da
Costa e Silva é contra esse traslado, o escritor e historiador Reginaldo
Miranda, de forma certeira, concisa, precisa e incisiva disse que não haveria
problema; que o mausoléu ficaria como um símbolo. Então, retomando a palavra,
disse que o monumento ficaria com um espaço reservado, à espera de que, no
futuro, fosse possível a vinda das cinzas do grande bardo, para o cumprimento
de seu desejo.
Estivemos ainda na frente do Museu Odilon Nunes, que foi um
dos maiores historiadores do Piauí e do Brasil, para homenageá-lo e para abraçar,
simbolicamente, o vetusto casarão. Nele não pudemos entrar, pois suas portas se
encontravam fechadas. Tivemos a informação, não sei se verídica, de que os
trabalhos de pintura, limpeza e restauração já estavam concluídos, mas que,
mesmo assim, por motivos não informados, essa casa cultural não fora reaberta.
A seguir, fomos nos postar aos pés da escadaria do Morro da
Saudade (é assim que o chamo em homenagem a Da Costa e Silva e a seu poema
Saudade), onde foram tiradas algumas fotografias dos expedicionários. Conforme
constava na programação, um dos coordenadores nos convidou a subirmos os
degraus, mas sem olharmos para trás, como foi bem enfatizado. Assim fizemos.
Contudo, quando eu estava na metade da escalada, recebi recado de que o
professor e advogado Valdeci Cavalcante, presidente do sistema FECOMÉRCIO,
desejava falar comigo. Mesmo correndo o risco de virar uma estátua de sal, como
no episódio bíblico da mulher de Ló, resolvi olhar para trás, para atender o
pedido, pois acreditava tratar-se de algo importante.
E realmente foi algo muito, muito importante. Quando cheguei,
o Valdeci, que conversava com o advogado Márcio Freitas, apontando para um
terreno que havia no sopé do morro, exclamou: “Bem aí, nesse terreno
desocupado, vou construir o mausoléu e memorial em homenagem ao grande poeta Da
Costa e Silva”. Não posso dizer o quanto fiquei feliz e emocionado, ainda mais
porque Valdeci Cavalcante sempre cumpre as suas promessas, ao contrário de
muitos políticos e falastrões. O dr. Tatá, após retornar da subida ao mirante,
disse que iria pedir ao artista plástico Hostyano Machado que fizesse o
projeto, para entregar ao grande mecenas da cultura piauiense. Pedi-lhe que o
fizesse o mais rápido possível, para aproveitarmos a boa vontade de Valdeci e a
disponibilidade orçamentária e financeira da FECOMÉRCIO.
Quando olhei o velho casarão que existe na esquina, perto do
início da escadaria, ensombrado por grande oitizeiro, recordei da primeira vez
em que estive em Amarante, ainda jovem e entusiasmado, com a vida e com a
poesia, que então, estuante, me borbulhava no cérebro, como o gênio em Castro
Alves. Três décadas atrás, havia um hotel instalado nesse prédio solarengo. E
eu imaginava que nele havia fantasmas de poetas mortos, e gorgolejos e golfadas
de afogados nas águas traiçoeiras das enchentes do Velho Monge.
Não pude deixar de lembrar um episódio que vivi nesse
casarão. Numa fria e silenciosa madrugada acordei com forte vontade de urinar.
Com medo desses fantasmas, tentei me conter, chegando mesmo ao cúmulo de ainda
procurar um urinol. Apesar do heroico esforço, não pude resistir, e mesmo com
medo enfrentei o longo corredor fantasmagórico, até encontrar o mictório.
Durante o ato fisiológico, comecei a ouvir uns penosos gemidos. Pensei, de
início, fossem de algum moribundo ou doente, mas logo os associei a almas
penadas de poetas ou de afogados, como nos poemas de Argila da Memória, do
amarantino Clóvis Moura, notável poeta e sociólogo dos melhores.
Incontinenti, tratei de retornar ao meu dormitório, em passos
apressados, fustigado pelo sobrosso. De manhã, na hora do café, o mistério foi
desfeito. Soube, então, que no quarto próximo ao banheiro dormira (ou melhor,
passara a noite) um casal em plena lua de mel. Logo vi que não se tratava de
almas penadas, mas de almas “penando” nos entreveros do amor e da paixão.
Quando estive na ribanceira do Parnaíba, me lembrei de
longínqua tarde em que lá estive, a degustar umas talagadas de pinga com água
tônica, em companhia de meu amigo e poeta Virgílio Queiroz, a conversar sobre
cultura e poesia, a que não faltaram as indefectíveis anedotas, de preferência
amarantinas. Nenhuma folha se mexia naquela tarde morna e parada. Mas, de
repente, veio um pé de vento, que farfalhou na frondosa árvore, sob cuja sombra
estávamos, e sacudiu as faveiras da proximidade, que passaram a emitir uma
toada de chocalhos e guizos.
Em minha mente surgiram os índios alegres da região, que
cantavam e dançavam ao som dos maracás, e que outrora perlongaram as barrancas
sinuosas do Velho Monge. Talvez esse momento de insight ou mesmo epifania tenha
sido a gênese de meu poema Amarante, em que perpassa o farfalhar do vento nas
faveiras e nos ciprestes, em que a água gorgoleja e “boceja nas bocas de lobo
dos esgotos” e “gargareja nas gargantas gosmentas dos gargalos”, e deriva
singular para as águas plurais do Parnaíba.
E eu não pude deixar de sentir saudade do rapaz que eu fui,
algumas vezes ingênuo, mas sempre tão cheio de sonhos, tão sentimental e
emotivo, em que a poesia, a me arder na alma, parecia me consumir. E como
terapia e catarse, eu tive que escrever os versos que escrevi.
2.
OEIRAS
Chegamos a Oeiras na boca da noite do dia 18. Fomos conhecer
o museu do Sobrado Major Selemérico, no qual estive em outras ocasiões
culturais. Estava restaurado e limpo. Vi antigos móveis e sua ambientação, que
me fez viajar ao Piauí colonial. Estavam expostos vários quadros e a galeria
dos governadores republicanos. Em outro ambiente havia a pintura de quase todos
os governadores provinciais (mas não os coloniais ou da velha Capitania). A
partir do operoso Zacarias de Gois, seu construtor, eles governaram o Piauí
provincial, tendo como palácio esse vetusto sobrado, rústico e sem luxo. Sem
traumas e sem preconceitos, ali estava o retrato do Conselheiro Saraiva, o fundador
de Teresina, a nova capital. Mas, também, dominava o recinto, entronado na
moldura, o Visconde da Parnaíba, oeirense que governou a província por
dezesseis anos.
Fui abordado na calçada do sobrado pelos vereadores José
Alberto Pinheiro de Araújo, presidente da Câmara Municipal, e Francisco
Espedito Nunes Martins. Me comunicaram que meu Título de Cidadão Oeirense,
concedido em 2013, me seria entregue neste ano. Fiquei muito satisfeito com a
notícia, e disse que o mais difícil, a concessão, já estava feito, ao que
Espedito Martins retrucou: “O mais fácil... a votação foi por unanimidade”. Sou
agradecido a todos os parlamentares oeirenses por essa alta honraria, que
consagra a minha condição de oeirense por devoção e vocação.
Assisti com muita atenção à magnifica palestra do professor e
secretário municipal de Cultura Stefano Ferreira, titulada “Interpretação do
Patrimônio Cultural”. Em voz de correta dicção e pronúncia, com frases claras e
bem construídas, com riqueza de detalhes e denso conteúdo, o palestrante
discorreu, com notável poder de síntese, sobre diversos aspectos da cultura
oeirense, tais como patrimônio arquitetônico, música, literatura,
religiosidade, artesanato e costumes. Após ter visto a linda Praça das Vitórias
e os bem-conservados solares e sobrados coloniais, a conferência de Stefano me
fez ressurgir a Oeiras colonial, que insiste em permanecer, mesmo ante a
insolência e iconoclastia dos dias atuais.
Sem dúvida foi uma das melhores palestras a que tive a
oportunidade de assistir, ilustrada ainda por oportunos e elucidativos slides,
e com certeza a melhor na temática abordada. E para minha maior satisfação, uma
das telas projetadas estampava estes versos de meu Noturno de Oeiras: “Oeiras
navega na noite / de um tempo que não termina”. Stefano teceu rápidas
considerações elogiosas a esse poema. Também fez referência ao Noturno do
Cemitério Velho de Oeiras.
Uma voz, não sei se do Carlos Rubem, defensor perpétuo das
coisas oeirenses, ou se do Alcide Filho, exímio fotógrafo e cinegrafista, disse
que eu estava presente. Como o Stefano tentasse me localizar no meio da
multidão, lhe acenei, sentado em minha cadeira. Não tendo ele me visto, pediram
que me levantasse. Para minha honra e contentamento, tive a alma afagada por
uma forte saraivada de palmas. Obrigado a todos os oeirenses e expedicionários
por esse momento ímpar na vida de um poeta menor e provinciano.
Sinto-me quase forçado a esclarecer que Noturno de Oeiras já
foi entoado em diferentes ocasiões e locais da velha capital. Na solenidade de
restauração do antigo fórum, na gestão do des. José Luís Martins de Carvalho,
foi interpretado pelo ator Bonifácio Lima no Cine Teatro Oeiras; em certo 24 de
janeiro, data magna oeirense, foi recitado entre as naves da tricentenária
catedral, assim como também em seu adro. Foi declamado em rodas de poesia,
documentários e em lançamento de livros. Existem clipes dele no You Tube.
Tendo escrito vários textos sobre Oeiras, além dos dois
poemas citados, resolvi enfeixá-los no livro “Noturno de Oeiras e outras
evocações”, que o IBENS lançou em memorável acontecimento cultural, em que
foram apresentados números de dança, música e uma performance de Noturno. Um
aluno do Instituto Barros de Ensino - IBENS musicou o Noturno do Cemitério
Velho de Oeiras e o apresentou nessa ocasião. Essa obra foi apresentada nessa
solenidade pelo advogado e escritor Moisés Reis. Sobre esse livro disse o
médico Elisabeto Ribeiro Gonçalves, um dos maiores oftalmologistas do Brasil,
em bela missiva: “Além das virtudes próprias do livro, que são tantas, ele me
dá, de lambujem, mais uma satisfação e um encantamento: rememorar Oeiras,
retornar a Oeiras, reviver Oeiras. // O livro é Oeiras encadernada, viva,
palpitante. Ele me levou a Oeiras, de onde saí ainda bem jovem em busca do conhecimento
que ela não poderia mais me dar. Mas não sei, não sei...”
Após essa digressão, retomo a trilha expedicionária, para
dizer que por volta das 23 horas fomos ao Hotel do SESC, onde ficamos
hospedados, em cuja recepção, tempos atrás, Valdeci Cavalcante mandou afixar
uma grande e bela placa de metal, na qual consta o meu poema Noturno de Oeiras.
Degustamos um lauto e delicioso jantar. No dia seguinte, tivemos um farto café
interativo, em que o engenheiro Avelino Neiva, presidente da Codevasf, proferiu
uma palestra sobre o projeto de restauração da navegabilidade do Parnaíba,
inicialmente de Uruçuí até Teresina, e, em segunda etapa, se o porto for
construído, até Luís Correia.
Segundo o palestrante e outros técnicos da companhia a
navegabilidade é viável e pode ser restaurada, e já existe um empresário
interessado e com recurso suficiente para essa empreitada. Para mim, que tenho
denunciado a degradação do Velho Monge em diferentes ocasiões, bem como
apontado soluções, tanto por escrito como através de minha voz, achei uma
notícia auspiciosa, inclusive em termos econômicos, pois o transporte dos
produtos seria barateado consideravelmente. Oxalá esse projeto se torne uma
realidade. Navegar é preciso, mas salvar o Parnaíba é mais preciso ainda. Esse rio
é o mais importante e imprescindível patrimônio natural do Piauí.
Após a palestra, fomos em demanda da “Fábrica dos Sonhos”,
perdida num dos confins dos sertões de Cabrobó.
3.
SANTO
INÁCIO E CAMPINAS DO PIAUÍ
Seguindo a orientação de Carlos Rubem, nos deslocamos para
Santo Inácio do Piauí, que outrora teve o bucólico nome de Brejo de Santo
Inácio. Iríamos visitar o degradado olho-d’água. Nesse brejo, em pleno Piauí
colonial, a partir de 1711, os jesuítas nele tomavam banho. Pelo que se observa
em seu derredor, e pelo que se sabe da história da região, nessa época deveria
ser um local totalmente isolado.
Os padres construíram a casa e a ermida em local sobranceiro,
um verdadeiro mirante, de onde se observa a longa distância toda a paisagem
circundante, e as faldas de morros em seu derredor. A casa foi restaurada,
embora com algumas restrições apontadas pelo grande arquiteto Olavo Pereira da
Silva Filho, um dos maiores peritos na área de restauração. Segundo ele me
informou, três imagens de santos da igrejinha são do período colonial. Fui
vê-las e deu para que eu percebesse a sua antiguidade, observável em sua
textura cromática e desgastes naturais. Também observei, seguindo informação do
Olavo, que o altar, em certos pontos, apresentava resquício de sua construção
inicial.
Aliás, ouvi comentários de que até a década de 1960, a
igrejinha dos padres da Companhia de Jesus de Santo Inácio de Loiola ainda
apresentava a sua feição colonial, mas que teria sido demolida (a pretexto de
reforma, ampliação e melhoramentos) para que homens gananciosos tentassem
encontrar supostos tesouros enterrados pelos jesuítas, quando da ordem de
confisco e expulsão da época do Marquês de Pombal. Também os comentários que me
chegaram diziam que o banheiro dos padres, com as pedras formando uma espécie
de caracol, também existia até cinquenta ou sessenta anos atrás; todavia, pelo
mesmo motivo, foi destruído, dele só restando algumas pedras. Não sei se se
trata apenas de histórias um tanto lendárias sobre os tesouros de jesuítas, que
também ocorrem em outros lugares, nem tampouco se é mesmo verdade o motivo da
destruição da igreja e do banheiro, que deveriam ter sido preservados como
testemunhas e fontes da história do Piauí Colonial.
O banheiro dos padres fica a uma boa distância. A ida até lá
foi sem problema. Mas a volta, com o sol a pino, e com a trilha em constante e
implacável subida, extenuou alguns expedicionários, que tiveram de fazer
paradas estratégicas, à sombra de duas ou três arvores que se destacavam no
descampado. No local da vertente, houve alguns pronunciamentos, em que foi
pedida a sua recuperação, através de drenagem e reflorestamento, sobretudo.
Restou, ao menos, a esperança naquele sertão adusto e esquecido de que algo
pode ser feito.
Seguimos para Campinas do Piauí.
Outrora, denominada Campos, ao tempo da instalação da fábrica
de laticínios. De mulheres idosas, nas quais ainda remanesce um pouco da antiga
e gloriosa beleza, dizem os ironistas e sarcastas, entre os quais não me
incluo, que são uma bela ruína. Mas a fábrica de laticínios do engenheiro
Sampaio, bastante deteriorada, é mesmo uma bela e imponente ruína, a um passo
de se tornar escombros, quase uma imensa tapera, no meio de construções novas e
de uma quadra esportiva, que lhe encobre a fachada, ainda majestosa apesar da
incúria do poder público.
Segundo afirma e pergunta Fernando Pessoa, “Sem a loucura que
é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?” Loucura no
sentido, talvez, de sonho utópico ou de difícil realização. Nessa acepção, pelo
que tenho lido e meditado, ao longo de alguns anos, o engenheiro Antônio José
de Sampaio foi um sonhador e um louco. Mas foi também um realizador e
empreendedor, que não soube, talvez, calcular todas as consequências de sua
obra magna. Esse engenheiro, cientista, professor, escritor e poliglota, nasceu
na Fazenda Ininga, hoje cidade de José de Freitas, em 9 de abril de 1857. Vejo
que nasci no mesmo dia que ele, 99 anos depois. Morreu em 1906.
No meio do nada, como hoje se costuma dizer (embora, segundo
muitos acreditam, o nada sequer exista) construiu o seu sonho. Para esse fim,
em 26/04/1889 firmou vultoso contrato de arrendamento com o governo imperial.
Nesse mesmo ano sobreveio a proclamação da República, que lhe trouxe ônus
adicionais, sob alegações diversas, inclusive supostos descumprimentos de
cláusulas. Comprou modernos, caros e pesados maquinários, que tiveram de ser
levados até o porto de Floriano, pelo rio Parnaíba.
Levar esses pesados equipamentos e peças, no final do século
XIX, de Floriano até Campos (hoje Campinas do Piauí) foi um trabalho hercúleo e
uma verdadeira epopeia, como bem disseram os escritores Luís Mendes Ribeiro
Gonçalves e Reginaldo Miranda, ambos da Academia Piauiense de Letras. Sem
dúvida, os entraves burocráticos, as dificuldades financeiras enfrentadas pelo
engenheiro Sampaio, e a condução das partes desmontadas da fábrica, em longo
trecho de precárias estradas carroçáveis, enfrentando atoleiros de lama e
areais, atravessando rios e riachos, dariam um belo filme épico. Para que fossem
vencidos esses atoleiros usavam peles bovinas, sobre as quais passavam as
ringidoras rodas de madeira. Em alguns trechos teve de abrir estradas, quebrar
morros e construir pontes e pontilhões. Dezenas de bois morreram, extenuados,
nessa penosa jornada.
O contrato de arrendamento previa vários ônus dispendiosos a
serem custeados por Sampaio, entre os quais manter o Estabelecimento Rural São
Pedro de Alcântara, construir frigorífico, fábrica de gelo, estação
meteorológica; introduzir melhores raças de gado vacum, lanígero, cavalar e
muar; adquirir maquinaria moderna para fabricação de manteiga, queijo, leite
condensado e outros produtos, sobre os
quais não pretendo me estender, porquanto a sua simples enumeração não
exaustiva é suficiente para o que pretendo concluir.
Com o arrendamento, o engenheiro Sampaio passou a administrar
imensas glebas de terras e um grande rebanho de gado bovino “pé duro”, que
pertenceram a Domingos Afonso Sertão e depois aos jesuítas, dos quais foram
confiscados e passaram a constituir as Fazendas Nacionais. Trouxe alguns
colonos italianos e suas famílias (cerca de quarenta), que por esse simples
fato lhe acarretaram grandes despesas, além das salariais que adviriam. Teve
que adquirir reses propícias à produção de leite, mas certamente em pequena
quantidade. Como se sabe, as vacas nativas ou curraleiras produzem pouco leite,
e por isso não são adequadas ao laticínio.
Mas, além de todos esses percalços econômicos, financeiros,
de transporte, de pessoal, e burocráticos, que tiveram de ser enfrentados, como
dito acima, a meu ver o maior problema foi o da logística. Ora, havia a
imensidão de terra e o gado pé duro, adaptado à criação extensiva. Mas para o
leiteiro talvez houvesse a necessidade de ração, medicamentos e outros insumos,
que teriam de vir de muito longe. Teria que haver consumidores para os produtos
da fábrica, que não estavam na região, que então era deserta ou de desprezível
densidade demográfica, como ainda hoje o é.
Esses consumidores estavam em locais muito distantes. O porto
fluvial mais perto se localizava no Estabelecimento Rural São Pedro de
Alcântara, que deu origem à cidade de Floriano. Portanto, teria que ser
percorrida uma distância de mais de mais de duzentos quilômetros. E os produtos
teriam que ser levados em lombos de animais ou em veículos de tração animal,
por trilhas rústicas, ou estradas carroçáveis, talvez impossíveis de serem
percorridas no período chuvoso. De Floriano teriam que ser levados, por via
aquática, até os longínquos centros consumidores. Ademais, o preço dessas
mercadorias teria competitividade com as produzidas na região em que se
encontrava o público consumidor?
Daí, sem querer tirar o mérito e a glória do engenheiro
Sampaio, creio poder afirmar que esse lindo e grande sonho, não levou na devida
conta a logística de transporte, distribuição e mercado consumidor, e os custos
e despesas a que fiz referência. Por conseguinte, teria mesmo que fracassar,
mais cedo ou mais tarde, quando os recursos financeiros se exaurissem e as
dívidas se acumulassem. Foi um sonho megalomaníaco que malogrou, e cujo belo e
imponente prédio se transformou em um magnífico ocaso, que ainda hoje ilumina a
pequena urbe que nasceu em seu derredor. Contudo, parafraseando o poeta já
citado, sonhar é preciso, viver não é preciso.
O edifício recebeu o abraço simbólico de todos os
expedicionários. Visitamos as suas entranhas, os seus sótãos e porões, os seus
alçapões mais recônditos, as suas vísceras mais esconsas, e vimos que está
muito mal, como um moribundo em seu leito de morte, como um paciente em estado
terminal. Houve vários pronunciamentos. O Carlos Rubem relembrou os velhos
tempos em que iniciou a campanha pela sua restauração. O des. Carlos Brandão
falou da importância de sua preservação. O senador Elmano Ferrer e a deputada
federal Margarete Coelho prometeram envidar esforços em prol de sua
restauração. O senador prometeu propor uma emenda, salvo engano, no valor de R$
500.000,00 para esse objetivo. O prefeito Valdinei Carvalho de Macedo estava
presente e também fez uso da palavra, na mesma toada e refrão.
A professora Socorro Alves, campinense, que estudou e
lecionou nesse vetusto prédio industrial, falou de sua história e de suas
lembranças, já que ele é parte integrante e indissociável da história e da
paisagem arquitetônica e sentimental da cidade. Olhando os detalhes esmerados e
ornamentais de sua arquitetura, que muito deve ao engenheiro alemão Alfredo
Modrack e seus auxiliares, e, sobretudo, vendo a sua fragilizada chaminé, já
sem o orgulhoso penacho de fumaça, que ostentou na época de seu fastígio, senti
que o apito saudoso de sua caldeira ainda parece ecoar nesse sertão esquecido,
a implorar por socorro.
Socorro que tanto tarda, e que talvez não venha, ou venha
demasiado tarde, quando já nada mais possa ser feito.