LÍNGUA DE MATUTO
José Expedito Rêgo
O sertanejo piauiense ficou durante muitos anos confinado nestes rincões bravios, praticamente sem comunicação com os principais centros de cultura do resto do Brasil. A língua falada por nosso matuto guarda muitos termos antigos. A escritora Alvina Gameiro aproveitou essa fala camponesa em seu livro CURRAL DE SERRAS com bastante beleza e arte.
Nosso homem da roça fala errado, comete erros de concordância, mas isso acontece até com certos deputados que amam dar entrevistas na televisão. Com frequência sorrimos do linguajar sertanejo, achando que está errado, quando na verdade está apenas fora de época.
Relendo recentemente OS LUSÍADAS, anotei várias palavras que se encontram ainda hoje na boca de nosso matuto. Ele diz FRUITA quando se refere a cucurbitáceas como a melancia e a abóbora. É português correto, está em Camões:
“Estavas, linda Inês, posta em sossego
De teus anos colhendo o doce FRUITO...”
Quando clinicava em Oeiras, velha cidade em que o tempo ficou parado, aconteceu muitas vezes que eu mandava um caboclo deitar-se na mesa de exame para a palpação abdominal. Ao fim, dizia: “Pode levantar-se!” O paciente permanecia deitado, sem entender. Eu falava, então: “Se ALEVANTE!” E era prontamente obedecido. É o velho Camões:
“Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se ALEVANTA.”
Quantas vezes ouvimos, no curral, o vaqueiro gritar ao ajudante: “SOJUGA o boi, home!” E nos Lusíadas vamos encontrar:
“Vê que já teve o Indo SOJUGADO...”
O matuto não diz estômago, fala EST MAGO. Errado? Não:
“Porque enfim vem de EST MAGO domado...”
Ouvi muito minha vó paterna, mulher de poucas letras: “Menino, não ESTRUI a comida!” Ela empregava o termo no sentido de desperdiçar. Dá no mesmo, Camões usava com o significado de destruir:
“Mas seguindo a Vitória, ESTRUI e mata...”
Na hora do almoço, a roceira chama o filho que brinca no terreiro: “Menino, ENTRA PRA DENTRO!” Redundância que não despreza o grande poeta lusitando:
“E diz que, porque o Sol no mar se esconde,
Não ENTRA PRA DENTRO...”
Na Rua do Fogo, brincando de luta com meus amigos de infância, escutava a reclamação: “Você me pegou de TREIÇÃO. Está no Canto II, Estrofe 17:
“E nesta TREIÇÃO determinava...”
Também no consultório, ouvia a velha moradora da zona rural: “Doutor, eu me AQUEIXO de uma dor nos rins.” Ainda no canto II, Estrofe 38 de Os Lusíadas, podemos ler:
“Que se AQUEIXA e se ri...”
O verbo “experimentar” é muito comprido para a língua curta do vaqueiro. Ele diz, como Camões:
“Nelas sós EXPRIMENTA toda sorte.
MAS PORÉM, muito usado em Catulo Cearense, o Poeta do Sertão, tem apoio nos Lusíadas, Canto III, Estrofe 99:
“MAIS PORÉM, quando as gentes Mauritanas...”
“Em nome do pai, do Fio e do ESPRITO Santo.” É assim que se benze a mulher da roça. “Fio” está incorreto, mas “esprito” vem do imortal poema, Canto IV, Estrofe 80:
“Por vós, ó Rei, o ESPRITO e a carne é pronta.”
Queixa-se a lavadeira de que não consegue tirar a NODA do vestido. A patroa sorri e afirma que a “nódoa” sairá com o tempo. Mas a lavadeira não está de todo errada. É só ver no Canto VII, Estrofe 60 de Os Lusíadas:
“Tingindo a que se deixou de escura NODA”
Apreciando a luta do vaqueiro com o boi rebelde, no pátio da fazenda, o dono da terra exclama: “Eta boi FEROCE!” Falando dos cavalos árabes, também diz Camões:
“Donde vêm os cavalos para a guerra
Ligeiros e FEROCES, de alta raça...”
A Palavra “planta” nem sempre é pronúncia fácil para a criança do sertão, que fala PRANTA, como nos Lusíadas:
“Nas ilhas de Maldiva nasce a PRANTA...”
E o “rudo” camponês encontra finalmente seu lugar no Canto X, Estrofe 154.
“Mas eu que falo humilde, baixo e RUDO...”
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