Assim vi meu pai de Socorro Mello
Tajra
Dilson Lages Monteiro
Professor e diretor de
Entretextos
Em circulação, uma obra de grande
interesse aos leitores de memórias sobre o Piauí: “Assim Vi Meu Pai, de Socorro
Mello Tajra”. Trata-se de um livro autorreferencial, que dialoga com um dos
clássicos do memorialismo regional na literatura piauiense, Trechos do meu
caminho, de Leônidas de Castro Mello, cuja primeira edição é da década de 1980.
Obra reeditada em 2017, pela Academia Piauiense de Letras, aos cuidados de
Nelson Nery Costa.
Socorro Mello Tajra, pondo em
interlocução a voz narrativa do pai e a de seus contemporâneos, além de resumir
ou recontar didaticamente os lances de superação da trajetória de Dr. Leônidas
de Castro Mello, enseja novas condições para a leitura de uma dimensão
desconhecida publicamente sobre o biografado. Em sua narrativa, faz-se ver “o
grande desafio do trabalho biográfico, o desafio que torna o perfil biográfico
mais próximo dos leitores: ao falar do seu personagem, o biógrafo, de certa
forma, fala de si mesmo, projeta algo de suas emoções, de seus próprios valores
e necessidades”.
A autora concentra-se em
conciliar a relação entre as ações praticadas pelo pai no contexto social e as
no seio familiar, assinalando a coerência e constância das ações, e sobretudo,
o amor às origens, o desapego à ânsia de uma perspectiva de vida centrada na
especulação financeira.
Assim Vi Meu Pai é livro – cumpre
enfatizar – autorreferencial. Lê-lo é recapitular o projeto discursivo de
Trechos do Meu Caminho. Nessa obra, projetando-se do lugar social de
ex-governador que o foi, não haveria, supõe-se, como Leônidas Mello
desconsiderar o descortinamento das relações de poder, das circunstâncias e
detalhes de fatos controversos de seu tempo. De como foi ocupando ou criando as
oportunidades que fizeram a vida e a carreira vitoriosa em todos os campos da
atividade humana a que se propôs: o magistério, a medicina, a
política-partidária. Entretanto, o que conquista os leitores no texto que
funciona como matriz de Assim Vi Meu Pai é, sobretudo, o derramamento lírico da
escritura, o tom de conversa do texto com abundantes discursos diretos e as
descrições de costumes e espaços da primeira metade do século XX. A descrição
do cotidiano de um homem simples e, conforme a versão da escrita de si, afeito
às virtudes e à inclinação para a vontade de servir, reproduzida em variados
documentos constantes na autobiografia.
Ainda que o conjunto de textos de
Assim Vi Meu Pai, de Socorro Mello Tajra,
remonte os instantes de grandes emoções ou conquistas da vida de
Leônidas Mello; os traços da personalidade do biografado e de suas ações, um
dos propósitos comunicativos evidentes da narradora, vertem-se em segunda
natureza, quando Barras do Marataoã volta à cena nas memórias sobre a fase de
maturidade do pai, principalmente, representado agora pelo olhar afetuoso e
vivencial da filha amável.
A fazenda Santa Rita e a
temporada no lugarejo exemplificam. Mais uma vez, os costumes são humanizados e
conquistam ressonância nas recordações de um sem número de leitores que guardam
alguma lembrança campestre. A gastronomia, os hábitos rotineiros, além da
descrição sinestésica de aspectos arquitetônicos e da paisagem, põem o leitor
em contato com sons, cheiros, sabores e visões de um tempo eterno, arquivado no
fundo mais profundo de nossas subjetividades. Sons, cheiros, sabores e visões
que suplantam o tempo, para o aqui e o agora da universalidade.
A universalidade de Trechos de
Meu Caminho de Leônidas de Castro Mello
revive nas páginas de Assim Vi Meu Pai, de Socorro Mello Tajra. Revive a
luz que foi chama para grandes realizações que permanecem até hoje como marca
intransponível da certeza de que, para muito além das relações de poder, o fim
maior da vida é servir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário