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Voe, Canarinho
Por Fabrício Carvalho Amorim
Leite
Tenho quase certeza de que já
escrevi sobre o meu bendito muro — ou pelo menos tentei escrever e esqueci de
começar — algo sobre ele, em minha breve e errante passagem como cronista de
objetos cotidianos.
Uma pessoa normal — ou apenas
tida como convencional — talvez nem se perguntasse sobre um objeto tão comum,
tão medíocre.
Mas o olhar desse muro me
incomoda profundamente.
É o grande muro que faz divisa
perpétua com o meu vizinho.
Monótono. Monocromático. Mudo.
Um muro frio, impávido, amarelo
desbotado.
Bem que pesquisei na internet —
e, até agora, não encontrei uma parede sinceramente contente. Há as tentativas:
umas pintadas com grafites, outras cobertas de murais ou flores falsas ... mas
o meu muro, não.
Voltemos a ele.
Eu, atrás da janela com grades.
Ele, sempre de pé.
Todos os dias.
Se há algum alento nessa
paisagem, ele vem de cima.
No galho mais alto da palmeira
imperial do vizinho, avisto ele — o canarinho-da-terra — confundindo-se com a
alvorada no seu canto suave:
“Tsip, tsi-tit, tsi, tsiti, tsi,
tsi, tsiti. ”
Tenho-o observado desde as
primeiras chuvas de dezembro. Naqueles dias, ele flertava com entusiasmo.
Exibia os penachos dourados,
inflava o peito, soltava um canto que misturava alegria. E estava sempre
rodeando várias louras.
Porque é livre. Livre de mim, do
muro, do mundo.
Outro dia, uma filha de uma amiga
— vinda do Canadá — mirou o meu muro com aqueles olhos que ainda sabem
perguntar e tascou:
— Mãe, por que neste lugar tem
tantas prisões?
Eu e a mãe desconversamos. O
silêncio nos foi mais doce que a resposta.
Depois, vieram as minhas
sandices. Imaginei, um dia, oferecer alpiste ou pedacinhos de pão ao canarinho.
Talvez um gesto de carinho disfarçado da velha vontade de possuir um pouco
dele.
Deixei a ideia.
Mas o amarelinho, certo dia, me
visitou.
Pousou no muro como quem pisa em
algodão. Pus os óculos e vi o que antes era apenas movimento no ar: a esposa
elegante, os filhotes cambaleantes, a família inteira saltando sobre o muro.
Ziguezagueavam como quem brinca
de errar o voo. Um dos pequenos, no entusiasmo, esbarrou a penugem amarronzada
na cerca elétrica e quase deu de cara com a parede da casa.
Vieram todos. Como se soubessem
que, naquele momento, lhes cabia a tarefa de alegrar um outro passarinho preso
— o que está dentro do muro.
Recebi aquela família com um
sorriso amarelo.
Ele me observou. Juro: havia dó
nos seus olhinhos.
Então partiram. Voaram para
longe. Sumiram na copa da palmeira imperial do vizinho.
E eu fiquei.
Janela.
Muro.
Silêncio.
Voe, canarinho. E volte, se
quiser.
Tu que levas e trazes, sempre, um
pedaço de mim.
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