Meu Cometa de Papel Machê
Por Fabrício
Carvalho Amorim Leite
Véspera do meu
aniversário de nove anos: 1985. Trapalhadas, censura em tropeço, Xuxa de
shortinho micro, bota até o joelho, euforia, um país em histeria.
Tabuada? Um
desastre. Presentes? Sempre um acerto. Eu sabia: vó Zoraide, com os
cruzeirinhos para os bombons; pai e mãe, um enigma. E os tios? Jogos, os da Estrela,
bolas, afagos, traquinagens.
Eu não sei vocês,
mas eu já esperava pelo chocolate em guarda-chuvinha. Açúcar puríssimo,
colorido, que derretia entre os lábios. A qualidade? Graças à manteiga trans.
Ah, como viciava… e ninguém vigiava.
Era um tempo sem
spoiler, e meus sentidos já farejavam um pacote escondido. Lá estava, meio oculto
no guarda-roupa, atrás da porta de vidro, com cheiro de madeira-madeira. O
objeto. A insônia. Um embrulho de papel machê, com laço vermelho, desenhos,
juras caladas. Inteiro, ali.
Já escutava o
familiar trinar das chaves no bolso. Ela vinha, ia. O armário, sempre o canto
dos segredos. Então, quase num cochicho, perguntei: — Vozinha… o que é aquela
coisa? E apontei, como quem receia e cobiça.
Sua mudez me
irritou. Quem sabe ali tenham nascido minhas primeiras estranhezas sobre a
indiferença ou sobre o cinismo adulto.
Senti uma vontade
danada de roubá-lo, como Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, ou
até de me passar por Ali Babá, mesmo à mercê de boas chineladas ou cipoadas do
vô.
Gritei para o
armário: — Abre-te, Sésamo!
Ele se fechou.
Não cedeu à minha voz fina, frouxa, falha.
Chutei a porta de
vidro. Estalo. O vidro trincou. Crash! Crash! Corri para o meu pé de goiaba,
certo de que, do alto da copa, ninguém me pegaria. Sobrevivi. Para bem… ou mal.
Voltemos ao
embrulho: o ladrão do meu sono, tal qual o cometa Halley, pairando ameaçador
sobre minha infância. No mesmo ano em que ele, o cometa, espalhava o fim do
mundo. Lembro: abrigado no banheiro, embaixo da cama do vô, aguentando dias,
imaginando a perda. Pai, mãe, avós e, com eles, todo o mundo pequeno da cidade
do interior.
Pela vez
primeira, pensei na morte. Morte: palavra dura, crua, que anos depois a vi
despida nas sentinelas, nas moléstias, nas crenças… e nas descrenças.
Inexorável, pálida e flácida.
Mas estava em
novembro de 1985, e Halley seguia zanzando lá em cima. Eu podia me perder no
presente da tia-avó Raimundinha. O tempo, ou o fim dos tempos, ainda eram meus.
Mal soprei a vela e corri ao embrulho, deitado na cama, entre tantos, à espera.
Queria aquele, sem saber por quê. Não toquei: desfiz com as mãos.
E então surgiu,
nu, num plástico que lembrava a cauda de um cometa, cheio de bombons,
pirulitos, caramelos: um astro açucarado que se desfez inteiro em mim. Em
seguida, apareceu aquele coleguinha, pedindo um doce... Escolhi o verde, azedo,
limão. Fez cara traventa, saiu apressado, tropeçando num andar de pato manco.
Ri, sem parar.
Foi num dia
desses que, chupando um bombom de morango, por instantes, meu cometa riscou o
céu, doce, doce, embalando-me outra vez em papel machê.
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