segunda-feira, 26 de maio de 2025

Meu Cometa de Papel Machê

Fonte: Google


Meu Cometa de Papel Machê


Por Fabrício Carvalho Amorim Leite


Véspera do meu aniversário de nove anos: 1985. Trapalhadas, censura em tropeço, Xuxa de shortinho micro, bota até o joelho, euforia, um país em histeria.

Tabuada? Um desastre. Presentes? Sempre um acerto. Eu sabia: vó Zoraide, com os cruzeirinhos para os bombons; pai e mãe, um enigma. E os tios? Jogos, os da Estrela, bolas, afagos, traquinagens.

Eu não sei vocês, mas eu já esperava pelo chocolate em guarda-chuvinha. Açúcar puríssimo, colorido, que derretia entre os lábios. A qualidade? Graças à manteiga trans. Ah, como viciava… e ninguém vigiava.

Era um tempo sem spoiler, e meus sentidos já farejavam um pacote escondido. Lá estava, meio oculto no guarda-roupa, atrás da porta de vidro, com cheiro de madeira-madeira. O objeto. A insônia. Um embrulho de papel machê, com laço vermelho, desenhos, juras caladas. Inteiro, ali.

Já escutava o familiar trinar das chaves no bolso. Ela vinha, ia. O armário, sempre o canto dos segredos. Então, quase num cochicho, perguntei: — Vozinha… o que é aquela coisa? E apontei, como quem receia e cobiça.

Sua mudez me irritou. Quem sabe ali tenham nascido minhas primeiras estranhezas sobre a indiferença ou sobre o cinismo adulto.

Senti uma vontade danada de roubá-lo, como Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, ou até de me passar por Ali Babá, mesmo à mercê de boas chineladas ou cipoadas do vô.

Gritei para o armário: — Abre-te, Sésamo!

Ele se fechou. Não cedeu à minha voz fina, frouxa, falha.

Chutei a porta de vidro. Estalo. O vidro trincou. Crash! Crash! Corri para o meu pé de goiaba, certo de que, do alto da copa, ninguém me pegaria. Sobrevivi. Para bem… ou mal.

Voltemos ao embrulho: o ladrão do meu sono, tal qual o cometa Halley, pairando ameaçador sobre minha infância. No mesmo ano em que ele, o cometa, espalhava o fim do mundo. Lembro: abrigado no banheiro, embaixo da cama do vô, aguentando dias, imaginando a perda. Pai, mãe, avós e, com eles, todo o mundo pequeno da cidade do interior.

Pela vez primeira, pensei na morte. Morte: palavra dura, crua, que anos depois a vi despida nas sentinelas, nas moléstias, nas crenças… e nas descrenças. Inexorável, pálida e flácida.

Mas estava em novembro de 1985, e Halley seguia zanzando lá em cima. Eu podia me perder no presente da tia-avó Raimundinha. O tempo, ou o fim dos tempos, ainda eram meus. Mal soprei a vela e corri ao embrulho, deitado na cama, entre tantos, à espera. Queria aquele, sem saber por quê. Não toquei: desfiz com as mãos.

E então surgiu, nu, num plástico que lembrava a cauda de um cometa, cheio de bombons, pirulitos, caramelos: um astro açucarado que se desfez inteiro em mim. Em seguida, apareceu aquele coleguinha, pedindo um doce... Escolhi o verde, azedo, limão. Fez cara traventa, saiu apressado, tropeçando num andar de pato manco. Ri, sem parar.

Foi num dia desses que, chupando um bombom de morango, por instantes, meu cometa riscou o céu, doce, doce, embalando-me outra vez em papel machê.

Maio, 2025.

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