quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O primo do rei

 


O primo do rei


Pádua Marques

Contista, cronista e romancista

 

Gladstone Alfred Murphy puxou de dentro de uma bolsa de couro de crocodilo um maço de notas, uns papeis e fotografias e foi passando e mostrando pra todos aqueles homens suados e cheirando forte a aguardente. Uns nus da cintura pra cima, banguelas, barba por fazer, outros desconfiados e de mãos calosas ali naquela casa de barro, sem piso, coberta de palha de carnaúba, esperando a opinião deles, mesmo que fosse apenas um aceno de cabeça, pra tudo o que viam enquanto o inglês ia contando suas façanhas.

Murphy havia descido cedo do Hotel Carneiro no rumo do porto Salgado naquele sábado sem movimento no centro de Parnaíba, um dia depois de ter desembarcado num navio vindo de Tutóia, pra conhecer a cidade onde na segunda-feira iria tratar com os industriais e grandes comerciantes de cera de carnaúba sobre o destino de uma carga que havia sumido e que precisava de explicações. Mas acabou tomando foi o rumo dos Tucuns.

No caminho entre o hotel e o porto Murphy encontrou Timóteo, um caboclo que de tanto trabalhar no porto Salgado, a sol e sereno, até entendia do que um inglês estivesse falando. O estivador puxou conversa, ganhou uma moeda e acabou servindo de guia naquele mundo de gente miúda no sábado. Da rua Grande com mulheres pobres pedindo esmolas nas portas de armazéns e lojas. E o inglês foi vendo aquilo tudo, às vezes correndo a mão na caneta pra fazer alguma anotação e perguntando isso e mais aquilo.

Naquele sábado de outubro de 1941 o súdito do rei Jorge VI ia puxando conversa, querendo saber de tudo, se admirando dos armazéns, das torres das duas igrejas, o Cine Éden, as mercearias e a praça da Graça, que até lembrava a sua agora distante Londres, a passagem de alguns poucos carros, as carroças puxadas por burros fazendo mudanças, os botadores de água, as mulheres lavando roupas no cais, os meninos nadando e dando cambalhotas nas proximidades de um guindaste e mais lá na frente um negro dando banho num cavalo dentro do rio.

Timóteo e Gladstone agora iam dar nos dos Tucuns, às vezes desviando de uma poça de água, um cachorro dormindo na frente de uma casa e a admiração do inglês ia aumentando. As casinhas de barro e cobertas de palha, umas pintadas e outras não, um cercado de madeira, galinhas, porcos soltos naquela rua tortuosa, uns jardins improvisados aqui e ali, mulheres catando piolhos de meninas suas filhas. Muito daquilo trouxe em Murphy a lembrança de uma viagem há três anos à Cidade do Cabo, na África do Sul.

Vendo aquele homem de boa estatura, diferente nos traços, branco, cabelo acobreado, bem vestido, com cara de estrangeiro e já àquela hora do dia, sol alto, muito suado, muitas mulheres iam saindo às portas. Muitos meninos estavam nus e descalços.  Até que Timóteo achou de ir procurando a sombra e se chegar em casa de uma conhecida, dona Maria José, mulher de seu Pedro Barqueiro e pedir um pouco de água pra eles beberem naquele sol de quase do meio do dia. As duas visitas foram recebidas com toda a cerimônia.

O estivador foi logo dizendo que o inglês era seu amigo e vindo de Londres de cretado pra Parnaíba fechar grandes negócios sobre cera de carnaúba com a Casa Inglesa e os Marc Jacob. Coisa de milhões de libras esterlinas! Uma das filhas da dona da casa correu na cozinha pra fazer um café e a outra trouxe uma rede de pano pra Murphy descansar da viagem a pé entre o porto Salgado e os confins dos Tucuns. Haveria de estar enfadado!

E Murphy foi gostando de ficar ali com os pés fora dos sapatos, no meio daquela gente miúda, pobre, ordinária. Enquanto esperava o café vindo da cozinha ia se esforçando no pouco português que sabia falar, ia falando de sua terra, sua Inglaterra, sua Londres e seu rei. Mostrou uma foto sua em frente ao Palácio de Buckingham, outra em Trafalgar Square e mais outra em London Tower. Depois passou a falar da guerra se intensificando na Europa, do que poderia acontecer no mundo.

Timóteo estava entre alegre e cheio de rapapés pra com o corretor de cera de carnaúba que iria dar um impulso na Parnaíba. Mostrou pra todo mundo a moeda ganha de Murphy. Ali naquela casa de pouca mobília, de duas moças e uma mulher sem muita beleza e muito pobre dos Tucuns, o estrangeiro puxou de dentro da mochila de couro um mapa do Brasil e com o dedo furabolo tentou mostrar onde ficava Parnaíba no distante e desconhecido Piaouí.  

Trazido pelas moças e tomado o café, o guia fez menção de que estavam de saída, pediu licença. Ainda tinham um dia inteiro pela frente e muita gente pra ver. Quem sabe até pudesse ainda ver doutor Mirócles. E vieram outras pessoas pra porta da casa, admiradas, curiosas. Umas até mangando e outras achando graça daquele homem estrangeiro tentando falar o nome Parnaíba. Timóteo foi abrindo caminho e dizendo que mister Gladstone Alfred Murphy era primo do rei da Inglaterra e amigo da Parnaíba! Viva o rei! Viva o rei!  

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Tributo a Licurgo de Paiva

Flagrante da posse (19/11/2008) de Elmar Carvalho na cadeira n° 10 da APL, cujo patrono é Licurgo de Paiva. Seus antecessores foram os poetas Celso Pinheiro, Mons. Antônio Monteiro de Sampaio e H. Dobal. Na foto, da esquerda para a direita, vê-se: Rosália Maria, Miguel Carvalho, João Miguel, Fátima, Elmar e Elmara (pais, esposa e filhos).

 

DIÁRIO

[Tributo a Licurgo de Paiva]

Elmar Carvalho

29/12/2020

Há aproximadamente quatro meses o Chico Acoram Araújo me pediu escrevesse um poema sobre Licurgo de Paiva, meu patrono na Academia Piauiense de Letras. Na época lhe expliquei que já não escrevia versos, que meu estro, para usar uma palavra antiga e em desuso, havia batido na laje, de modo que minha pequenina cacimba da inspiração havia secado, e dela já nada minava.

O Acoram me disse que hoje existiam perfuratrizes modernas, dotadas de brocas diamantadas e rotativas, que rompiam lajes e outras rochas mais consistentes. Insisti que o veio de meus poemas estava exaurido, e eu já nada produzia. Todavia, ante sua insistência, e também considerando que meu patrono, hoje já um tanto esquecido, como esquecidos estão quase todos os poetas, merecia todo o meu apreço, prometi que o faria.

Também levei na devida conta o fato de que todos que tiveram assento na minha cadeira, a de número 10, são poetas, a começar do seu patrono. Poetas foram Celso Pinheiro, um dos maiores simbolistas do Piauí e do Brasil, monsenhor Antônio Monteiro de Sampaio (meu professor no curso de Administração de Empresas – UFPI), compositor, poeta e um dos maiores oradores sacros de nosso estado, assim como H. Dobal, que dispensa comentário, cuja poesia é por todos unanimemente aplaudida. Sobre Licurgo acho oportuno transcrever o seguinte trecho de meu discurso de posse na Academia Piauiense de Letras:

“Licurgo José Henrique de Paiva, cuja carreira literária foi inicialmente tão auspiciosa, tão plena de esperança, foi depois gradativamente declinando até o seu trágico e melancólico crepúsculo, através de uma série de vicissitudes, em sua vida particular e profissional, sobretudo ocasionadas pela dipsomania, que frustrou todos os bons augúrios com que os astros lhe acenavam. Na derrocada final do sol negro da desgraça, terminou sendo enterrado numa sepultura por muitos considerada ignota, em lugar remoto do Piauí. Talvez algum viandante, ao passar por essa cova rasa, contrariando os versos do poeta Castro Alves, que pedia ao caminheiro, que não atirasse “o ramo do alecrim cheiroso” na sepultura do escravo, para que ele melhor dormisse em paz na solidão e para não “espantar o bando buliçoso das borboletas” que ali pousavam, talvez depositem algum punhado de flores na campa desse poeta piauiense, que tanto sofreu em sua vida malograda, quando poderia ter-se alcandorado aos mais elevados píncaros do serviço público e da arte literária. O acadêmico, advogado e valoroso pesquisador de nossa história Reginaldo Miranda, referindo-se à sepultura de Licurgo, conta-nos que o vate, do alpendre da casa-grande da fazenda Santo Antônio, em que se encontrava em busca de cura para a tuberculose que o consumia, apontando para um morro que havia em frente, pediu fosse sepultado no seu cume. O seu anfitrião lhe fez ver que não seria possível tal escalada fúnebre. Licurgo pediu então para ser enterrado à sombra de uma frondosa pitombeira que até pouco tempo existia. Reginaldo Miranda acrescenta que os moradores da região conhecem bem onde fica essa cova humilde onde repousa o notável luminar das letras piauienses.”

Estive adoentado e um tanto indisposto, portanto, posto em sossego. Contudo, hoje me veio a vontade de escrever o indigitado poema, que fará o contraponto em versos a uma biografia da lavra de Chico Acoram. Estes textos e outros, em prosa e em versos, farão parte do seu livro “O menino, o rio e a cidade”, que contém crônicas, artigos e poemas, sobre variados assuntos.

Algumas crônicas são de caráter memorialístico. Os artigos versam temas históricos e biográficos, sendo que alguns, pela profundidade e tamanho, podem ser considerados pequenos ensaios. Os poemas, de diferentes estilos, alguns dos quais em cordel, fazem contraponto às biografias, o que me tornou a missão quase impossível. Eis o poema que hoje veio à tona ou à luz; ou seja, que aflorou ou minou da cacimba de minha inspiração já exaurida:

 

Licurgo de Paiva

 

As dores da alma e da vida

dissolvia no copo de bebida amarga

que mais dolorosas dores lhe infligia.

 

Os louros de glória

de há muito haviam fenecido

em sua fronte sofredora, contudo sonhadora.

 

Os espinhos da política mesquinha e medonha

coroaram esse Quixote apenas de vergonha

e de lanhos de chicote no cerne de sua carne.

 

Tísico, despojado, talvez, da esperança,

que outrora lhe sorrira, sonhava ser

inumado no cimo de um outeiro.

 

Até esse funéreo sonho malogrou.

Foi sepultado em cova rasa, sob a fronde

de altiva e exuberante pitombeira.

 

Ao menos a árvore não lhe negou

a sombra densa, verdoenga, e os louros

e confetes das ramagens.  

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A história de um típico e bravo sertanejo



A história de um típico e bravo sertanejo

 

Zózimo Tavares

Jornalista e escritor. Presidente da APL

 

Pense em num cabra disposto, nascido nos confins dos Sertões de Dentro do Piauí, que aos 5 anos de idade já montava cavalo, semeava milho e feijão logo nas primeiras chuvas, tangia criações e tocava boi no engenho…

 

Esse menino atendia por Joaquim. Joaquim Rodrigues Martins – o seu nome completo. Era o segundo dos sete filhos do major Luiz Rodrigues de Sousa Martins com Ana Maria Clementino de Sousa Martins.

 

Joaquim, o menino criado solto na fazenda Canavieira, em Oeiras, era pentaneto de Valério Coelho Rodrigues, tronco da bicentenária família do Piauí que tem em seu neto Manoel de Sousa Martins, o Visconde da Parnaíba, uma de suas principais referências.

 

Ainda novo, porém já calejado nas labutas do cotidiano sertanejo, Joaquim casou-se com Jandira Nunes Martins, outra sertaneja de fibra.

 

Já era então um galego alto, de olhos azuis, esbelto, corpulento, de boa presença e benquisto em seu meio.

 

No comércio e na política

 

Sem abandonar as lidas do campo, fez-se também comerciante, no povoado Estreito, onde se destacava pela sua capacidade de trabalho e liderança.

 

Quando Joaquim tinha 38 anos, o povoado se emancipava, com o nome de Santa Cruz do Piauí, e ele se tornaria o primeiro prefeito do novo município, instalado em 1958.

 

Joaquim e Jandira tiveram 14 filhos. Os meninos foram crescendo e começaram a ganhar o mundo, atrás de estudo. A primeira leva foi para Oeiras.

 

Houve tempo em que, apesar dos muitos filhos que geraram, Joaquim e Jandira estavam praticamente com a casa vazia. Os filhos estavam espalhados por Oeiras, Campo Maior, Crato, Teresina, Recife, Fortaleza, Brasília e São Paulo.

 

Uma história de lutas

 

A história desse sertanejo típico, de prole numerosa e lutas hercúleas, está sendo contada no livro “Centenário de Joaquim Rodrigues Martins”, recém-publicado em Teresina.

 

A obra foi organizada pelo escritor e acadêmico Homero Castelo Branco, sua esposa Hilma Martins Castelo Branco e a filha Verônica Martins Castelo Branco, respectivamente, genro, filha e neta de Joaquim Rodrigues.

 

O livro traz depoimentos dos filhos Edgar, Edvar, Luiz Neto, Darci, Hilma, Socorrinha, Brivaldo, Teresinha, Rubem, Inaldo, Jandira Maria, Joaquim Júnior e Wilson Martins. E também dos netos.

 

Nascido em 18 de agosto de 1920, Joaquim Rodrigues faleceu em 2 de novembro de 2007, aos 87 anos.

 

Sua história é também a história de muitos sertanejos de seu tempo, que enfrentaram bravamente as adversidades do meio e da época para criar e educar uma numerosa família.

 

O tempo mostrou que o esforço valeu a pena. Seus filhos se destacaram nas mais diferentes atividades profissionais e políticas que abraçaram, prologando a história do pai como um exemplo.    

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Brigadeiro Manuel de Sousa Martins (Visconde da Parnaíba)

 

Fonte: Google

Brigadeiro Manuel de Sousa Martins (Visconde da Parnaíba)

 

Reginaldo Miranda*

Escritor e historiador. Membro da APL.

 

Foi o mais importante político do Piauí durante a era provincial, exercendo consolidada liderança por longo período e o governo da província, por vinte anos, com pequenos interregnos. Foi ele quem liderou e deu o brado da Independência no Piauí, assegurando a adesão e inclusão dessa parte da colônia ao concerto da nação. Estabeleceu a estrutura administrativa da província e, mais tarde, mesmo contra a orientação do governo central despendeu todas as forças na repressão à Balaiada, assim, como esteve atento e armado contra todos os focos rebeldes que estouraram em regiões vizinhas ao Piauí.

 

Foi um piauiense genuíno, autêntico, que lutou bravamente por sua terra até o fim de sua vida.

 

Nasceu Manuel de Sousa Martins, em 8 de dezembro de 1767, em casa de seus pais, na fazenda Serra Vermelha, então município de Oeiras, depois passando a Jaicós. Era filho de Manuel de Sousa Martins, o velho, português dos Açores, radicado no Piauí, onde fundou algumas fazendas, e dona Ana Rodrigues de Santana, esta última filha de Valério Coelho Rodrigues, também português e fundador de fazendas no Piauí, e de sua esposa Domiciana Vieira de Carvalho, por sua vez filha de José Vieira de Carvalho e Maria Freire da Silva, casal bandeirante que se estabeleceu no Piauí, no ano de 1719, fundando diversas fazendas e deixando uma ilustrada descendência que é tronco de várias famílias do centro-sul do Piauí e regiões circunvizinhas.

 

Criado na fazenda de seus genitores, em cuja companhia aprendeu as primeiras letras, mais tarde foi mandado para a vizinha fazenda Boa Esperança, a fim de prosseguir nos estudos sob a orientação do tio-afim Marcos Francisco de Araújo Costa. Esse parente ali mantinha um curso de alfabetização de jovens, precedendo ao que mais tarde e com mais regularidade iria fazer o filho homônimo, padre Marcos, da Boa Esperança. Com esse culto parente aprendeu a ler, escrever, contar, enfim, praticar as quatro operações aritméticas, estando assim preparado para a vida. Foi tudo o que estudou e de mais nada precisou para projetar-se em seu meio, pois era astuto e inteligente.

 

Em 1783, com a morte prematura do genitor teve de assumir os negócios da família, constituídos por diversas fazendas. Tinha apenas 16 anos, mas era o filho primogênito. Então, exercitando o que aprendera com o pai acompanhava de perto a lida na fazenda, desde a juntada do gado para a ferra e partilha, bem como o tocar das boiadas para as feiras na Bahia e Pernambuco, daí ganhando a fama de vaqueiro. Sobre esse assunto, anotou o diligente pesquisador Wilson de Andrade Brandão:

 

“Vaqueiro e comerciante, diligente e incansável, multiplica a herança paterna, sobretudo com vantajosas transações de gado na Bahia. Torna-se uma das potências econômicas do Norte do País. A Casa Souza Martins rivaliza em riqueza e prestígio com a Casa Dias da Silva. A disputa entre ambas marca algumas décadas da história da Província”[1].

 

Ao contrário do que dizem alguns biógrafos, Manuel de Sousa Martins ingressou na carreira militar muito jovem, por volta de 1785, com 18 anos de idade, assentando praça de soldado da 1.ª Companhia do Regimento de Cavalaria Ordenança. Em pouco tempo foi promovido para o posto de cabo de esquadra. Em 27 de julho de 1788, recebeu a patente de furriel da 5.ª Companhia do mesmo Regimento de Cavalaria Ordenança, comandado pelo coronel João Paulo Diniz. Em 15 de agosto de 1798, com a reorganização das forças militares e criação do regimento de milícias, teve seu nome proposto para o posto de 2º tenente da 2.ª Companhia, de que era coronel Luís Carlos Pereira de Abreu Bacelar; depois foi sendo sucessivamente graduado para 1º tenente, capitão, em 1809, quando assumiu o posto de comandante da ribeira do Itaim; major e tenente-coronel; em 1812, era coronel agregado, efetivando-se no posto em 1815; por fim, através do decreto de 4 de setembro de 1820 e patente de 3 de outubro do mesmo ano, foi reformado no posto de Brigadeiro, sem vencimentos. Era, assim, um militar respeitado e de alta patente quando estoura o movimento de nossa independência política.

 

Paralelamente a essa carreira militar, mal completara a maioridade assumiu o cargo de Tesoureiro Geral da Junta da Fazenda, onde se demorou por largos anos. Também, foi eleito para a câmara municipal de Oeiras, ocupando o cargo de juiz ordinário em 1803.  Em 1811, foi condecorado com a comenda do Hábito da Ordem de Cristo e o grau de Cavaleiro da mesma Ordem em 16 de julho de 1814, quando professou e foi armado pelo governador Baltazar de Sousa Botelho de Vasconcelos, na igreja de N. Sra. da Vitória. Por decreto de 16 de outubro de 1830, seria nomeado comendador da mesma ordem.

 

Com a saída do governador Elias José Ribeiro de Carvalho, do governo da capitania do Piauí, em 24 de outubro de 1821, integrou como militar de mais alta patente, a junta de governo que o substituiu, sendo eleito vice-presidente da mesma; mas com a inaptidão do ouvidor Francisco Zuzarte Mendes Barreto é ele quem, de fato, preside a junta de governo do Piauí. Porém, por ação de seus adversários é afastado do colegiado em 7 de abril de 1822, renovando-se sua composição. Em face desse alijamento passa a fazer surda oposição contra a nova junta de governo e, mais tarde, contra o próprio regime. Esperou apenas a ocasião para atacar. Era este o seu estado de espírito ao tempo em que Dom Pedro brada o Grito do Ipiranga, no sudeste da nova nação que então iria se formar. Possuía 55 anos de idade e já era experiente, reconhecido e respeitado. No entanto, iria ter início a fase mais auspiciosa de sua vida.

 

Em rápida rememoração dos fatos, lembra-se que em 24 de agosto de 1820, estoura a Revolução do Porto, logo mais espalhando-se por todo o reino. Criou-se em 28 de setembro uma Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, instituindo as Cortes Constituintes de Portugal para elaboração de uma Constituição e obrigando o retorno imediato do rei Dom João VI, que estava acomodado no Brasil, então parte integrante do Reino Unido de Portugal e Algarve. De fato, desejavam retornar o Brasil à condição de colônia com novo fechamento dos portos para comercializar apenas com a burguesia portuguesa. D. João VI, sabendo que o Brasil não mais aceitaria essa condição, parte para Lisboa com a família real, cortesãos e negociantes portugueses, em torno de quatro mil pessoas de sua entourage, na madrugada de 25 de março de 1821, mas deixa o príncipe herdeiro D. Pedro, como regente. Ocorre que, os governantes de algumas capitanias não aceitavam a autoridade de D. Pedro, desconhecendo em D. João VI autoridade para delegar tais poderes, para eles cabendo apenas às Cortes Constituintes de Lisboa. É o caso da Bahia, que correspondia-se com o príncipe regente mas solicitava auxílio de forças às Cortes, para reagir em caso de necessidade. No Piauí a situação não era diferente, mantendo-se a junta fiel aos interesses do reino.

 

Não há dúvidas de que o sonho português era dividir o Brasil, isolando o movimento emancipacionista apenas às províncias do sul e mantendo sob seu domínio o norte, desde a Bahia para cima, inclusive todo o antigo Estado Colonial do Maranhão e Grão-Pará. Com a Bahia já resistindo, enviou para assumir o governo das armas em Oeiras o experiente major João José da Cunha Fidié, que ali chegou a 18 de agosto de 1821, para manter essa província central sob o jugo português, ligando a Bahia ao Maranhão, Pará e Amazônia. Era, portanto, estratégica a posição do Piauí.

 

Todavia, sabedora de que em São Paulo, o príncipe Dom Pedro proclamara a Independência do Brasil em 7 de setembro de 1822, em 19 de outubro daquele mesmo ano, a vila de Parnaíba, no norte do Piauí, proclama sua adesão à causa. É quando Fidié parte para abafar o movimento naquela vila litorânea. Então, em 24 de janeiro do ano seguinte o Brigadeiro Manuel de Sousa Martins lidera o movimento em Oeiras e brada a adesão da capital à Independência. Sobre o assunto, interessante é o depoimento de Monsenhor Joaquim Ferreira Chaves:

 

“Ao anoitecer do dia 23 de janeiro os conspiradores de Oeiras, chefiados pelo Brigadeiro Manoel de Sousa Martins, reuniram-se, pela última vez, na residência dele, àquela hora transformada em autêntico arsenal com o armamento e as munições que os patriotas haviam surrupiado aos poucos dos armazéns nacionais. Dezenas de jagunços, agregados do Brigadeiro, ali se concentravam, aventureiros e truculentos, aguardando a hora da tomada da cidade. Presumia-se que poderia haver luta, pois o Capitão de 1.ª Linha Agostinho Pires e o Alferes Dâmaso Pinto da Veiga tinham a tropa sob seu comando e eram acérrimos inimigos da causa da independência. Concertados os planos, saíram os seus executores, já de madrugada, para os locais onde deveriam atuar. O Ten.-Cel. Raimundo de Sousa Martins e o Major Francisco Manoel de Araújo Costa deveriam rebelar o Regimento de Cavalaria n.º 1, que estava sob o comando de dois oficiais contrários ao movimento da independência. Ao Ten.-Cel. Manoel Pinheiro de Miranda Osório e ao Capitão José de Sousa Martins fora confiada a tarefa de assaltarem o quartel de Linha e o dominarem. O Cel. Inácio Francisco de Araújo Costa deveria cercar a residência do Cap. Agostinho Pires e prendê-lo. O mesmo deveria fazer o Alferes José Martins de Sousa com relação ao alferes Dâmaso Pinto da Veiga. O Major Manoel Clementino de Sousa Martins tomaria a Casa da Pólvora e conservá-la-ia em segurança. Os Majores Bernardo Antônio Saraiva e Honorato de Morais Rego, oficiais rebelados do Regimento de Cavalaria n.º 2, deveriam conservar nas ruas o Regimento e dar apoio onde se fizesse preciso. Tudo foi pronta e silenciosamente executado entre 2 e 4 horas do dia 24. Quando o povo saiu à rua, pela manhã foi para responder aos vivas que Manoel e Joaquim de Sousa Martins ergueram à Independência e ao Imperador diante da tropa formada na praça da Matriz”[2].

 

Então, reunindo-se extraordinariamente o Senado da Câmara ouviu do Brigadeiro Sousa Martins a leitura de um ofício do general Labatut, sobre a tomada do poder na Bahia e ordenando fosse também reconhecida a Independência no Piauí e aclamado Dom Pedro. Não havendo opositores, todos aclamando com vivo entusiasmo a Independência e o Imperador, foi lavrada ata que foi assinada pelos vereadores, militares e demais autoridades e povo presente. Em seguida, com a consequente deposição da junta de governo, foi eleita uma Junta Provisória de Governo que, imediatamente fez o costumeiro juramento e tomou posse, assim constituída: Presidente, Manoel de Sousa Martins; Secretário, Manoel Pinheiro de Miranda Osório; demais membros, Miguel José Ferreira, Inácio Francisco de Araújo Costa e Honorato de Morais Rego. No dia seguinte, essa junta despachou mensagem às câmaras das vilas piauienses, comunicando os fatos e ordenando imediatamente fizessem o mesmo, o que foi feito. Também, enviou ordens a dois comandantes militares estacionados em Campo Maior, para cessarem suas ações; ao major Fidié, para abandonar a Piauí e ao governo do Maranhão para guardar neutralidade com relação ao Piauí. Por via de dúvidas, suspendeu a exportação de carnes e tomou medidas de segurança com relação à fronteira maranhense.

 

Manuel de Sousa Martins foi o grande líder desse movimento, por isso assumindo a testa do governo da província, como presidente da Junta Provisória. Não esmoreceu com a derrota dos patriotas em 13 de março, na histórica Batalha do Jenipapo, em Campo Maior, só descansando com a derrota total dos portugueses e prisão de Fidié, depois do cerco de Caxias, em agosto de 1823. Com esse gesto heroico os patriotas piauienses asseguraram a integridade do território brasileiro, evitando, assim, o esfacelamento, como ocorreu na colônia espanhola, onde diversas províncias se transformaram em nações independentes.

 

Passada essa fase épica, que coloca os patriotas piauienses entre os grandes heróis da pátria, era hora de governar. E Sousa Martins tomou as rédeas do governo piauiense sem mais largar. Foram vinte anos de governo, com pequenos interregnos, o que causou-lhe alguns desgastes, inclusive divergências entre ele e outros vitoriosos da grande luta.

 

Consolidada a adesão do Piauí à independência do Brasil, Manuel de Sousa Martins permaneceu na presidência da referida Junta Provisória de Governo, desde 24 de janeiro de 1823 “até 19 de setembro de 1824, quando é escolhido e empossado presidente provisório, em câmara geral, para o governo unitário, estabelecido por decreto imperial”[3]. Logo mais, em 1.º de dezembro do mesmo ano vai confirmado no cargo por nomeação do Imperador, tomando posse em 1.º de maio seguinte. Nesse exercício ininterrupto permanece até 9 de dezembro de 1828, quando, por injunções da época, entrega as funções para seu primo o vice-presidente Ignácio Francisco de Araújo Costa. Novamente, recebe as funções das mãos do primo em 13 de fevereiro de 1829, porém, dois dias depois, em 15 de fevereiro é obrigado a dar posse ao novo presidente nomeado por carta imperial, Dr. João José Guimarães e Silva.

 

Todavia, em 17 de fevereiro de 1831, com o afastamento daquele presidente, por motivo de grave enfermidade, vindo, de fato a falecer em 29 do mesmo mês, Sousa Martins retoma o poder, na qualidade de vice-presidente da província, sendo confirmado no cargo por carta imperial de 1º de julho de 1832.  E para a ira de seus adversários permanece à frente do governo do Piauí até 30 de dezembro de 1843, quando é definitivamente afastado, aos 76 anos de idade.

 

O fato marcante desse último período de governo foram as ações empreendidas no combate à Balaiada, movimento rebelde que sacudiu os sertões do Piauí e Maranhão(1838-1839), de que resultou estabelecer a paz na província. Combateu ainda os partidários de Pinto Madeira, revoltosos da região do Cariri, no Ceará, que ameaçaram a paz na província do Piauí.

 

Também, protestou contra a invasão do território piauiense pelo Ceará, pugnando pela devolução dos terrenos que vão pela costa, desde a Barra do Igaraçu à Barra do Timonha, na tromba da Serra de Ibiapaba, que forma a linha de divisão destas duas províncias; lutou pela anexação do delta do Parnaíba ao Piauí; promoveu os recenseamentos de 1826 e 1831 e imprimiu o jornal O Telégrafo, que começou a circular em novembro de 1839.

 

Durante esse período de gestão recebeu outras condecorações, entre essas: oficial da Imperial Ordem do Cruzeiro, por decreto de 12 de outubro de 1823, sendo elevado a dignatário da mesma ordem por decreto de 9 de agosto do ano seguinte; por carta de 6 de agosto de 1824, recebeu o foro de fidalgo cavaleiro da casa real; por carta de 3 de junho de 1825, recebeu o título de Barão da Parnaíba e pela de 26 de julho de 1841, foi elevado ao título de Visconde da Parnaíba, com honras e grandezas, este último título dado em retribuição por sua vitoriosa ação no combate aos rebeldes da Balaiada.

 

Porém, ao deixar o governo, já na velhice ainda liderou importante facção política, sofrendo toda sorte de ataque. Na Assembleia Geral, no Rio, alguns deputados abriram fogo contra ele em continuados discursos, fazendo-lhe várias acusações, quase todas infundadas. E nenhuma voz levantou-se para defendê-lo. É que já estavam cansados de seu mandonismo. O poder desgasta. Sobre essa última fase de sua vida, entre o fim do governo e o óbito, interessante é o depoimento de Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco:

 

“Em 1844, não existiam ainda na província partidos políticos bem discriminados. Os piauienses dividiam-se, porém, em duas parcialidades assaz poderosas, uma das quais trabalhava tenazmente a favor da influência, então decaída, do Visconde da Parnaíba, que por mais de vinte anos predominou na província; a outra se empenhava com todos os seus esforços para que a influência do Visconde, que consideravam perniciosa, jamais se reabilitasse no Piauí.

 

‘Nesse mesmo tempo, teve de proceder-se às eleições para deputados à Assembleia Geral; cresceu a luta, renovaram-se os antigos ódios, e na cidade de Oeiras, deram-se então graves atentados e crimes.

 

‘Os adversários do Visconde – disse o presidente do Piauí, em 1845 – supondo-o mandante ou cúmplice dos atentados cometidos e de outros que se premeditavam, reuniram-se em grande número junto da cidade, nos dias 21 a 23 de maio, e talvez dispostos a entrarem por ela se não fossem atendidos, se dirigiram ao Exmo. Sr. Conde do Rio Pardo, exigindo a saída do Visconde da Parnaíba para fora da cidade; e anuindo-se prudentemente a esses e outros pedidos dos insurgentes, dissipou-se logo o ajuntamento, dando-se por finda a tormenta que ameaçava a ordem e tranquilidade pública.

 

‘Foi esse o feliz desenlace daquela revolução armada, constante de quatro mil pessoas, pouco mais ou menos, que então cercaram a heroica cidade de Oeiras, onde tiveram encerrados por alguns dias, como prisioneiros de guerra, o Visconde da Parnaíba, bem assim o próprio presidente da província, o Exmo. Sr. Conde do Rio Pardo”[4].

 

Além dessa forte oposição política, no final de seus dias o Visconde da Parnaíba ainda teve de enfrentar a ingratidão de alguns de seus descendentes das primeiras núpcias, respondendo na justiça ação que visava interditá-lo por senilidade. Na ação diziam, inclusive, que ele por velhice causava prejuízos na administração dos bens do Conde d’Áquila[5], de quem era procurador[6]. É que desejavam lançar mãos de seu rico patrimônio, enciumados pelo novo casamento na velhice e pelos muitos filhos bastardos que possuía. Sobre o assunto, em folheto que mandou publicar no ano de 1855, assim desabafou o velho político:

 

“Desde os primeiros anos de minha mocidade dediquei-me ao público serviço. O pressentimento de fidelidade e obediência – ao governo do meu país, fez-me conhecer, que deveria primeiro ser desvelado na manutenção da ordem, do que no curar exclusivamente dos meus interesses particulares. Assim obrando, muitas vezes fiz o sacrifício de minha pouca fortuna, de sorte que em breve adquiri a confiança dos governadores mandados para esta província.

 

‘Tamanha dedicação tornou-me credor das honras das mais importantes comissões: por cuja pontual e decidida execução habilitei-me para informar e propor nos diferentes pontos da província as pessoas mais aptas para a gerência dos negócios da administração. Achando-me pois colocado nesta posição entendi que deveria dar com preferência aos meus parentes maior importância; e feliz neste empenho, embora injusto (é forçoso confessá-lo) consegui em quase todos os termos da província que fossem eles os investidos dos cargos da maior dignidade. Então todos eles me cercavam e aplaudiam. Se no decurso de minha vida tenho errado foi sem dúvida por este proceder, porquanto cheguei muitas vezes dominado pelo desejo da elevação deles a desprezar o merecimento de alguns indivíduos, obrando assim de sorte a serem meus parentes sempre encartados nas primeiras posições. Tiveram eles os meios de se elevarem e prosperarem, e quando chegou a época em que mereci do governo de S. M. o Imperador ser nomeado presidente desta província, então mais depressa conseguiram seu engrandecimento; e pode-se dizer que a família Martins ocupara na maior parte da província todas as posições vantajosas.

 

‘Reconheço hoje que foi isso um mal, pois sem a menor dúvida, disso procederam em grande parte as minas desafeições no Piauí, e meus maiores inimigos tiraram desse procedimento odiosos argumentos contra a minha administração”.

 

Em tom de desabafo continua em seu folheto o octogenário chefe de família:

 

“Minha lealdade ao governo, meus serviços sempre prestados com dedicação e acerto, tiveram na balança da justiça mais peso do que os brados contra mim erguidos por meus inimigos”.

 

“Justificando-me por meus atos ante o nosso Augusto Monarca como fiel servidor do estado, fui merecendo distinções e títulos – até ser nomeado Barão da Parnahyba e depois Visconde com grandeza do mesmo título”.

 

“As circunstâncias que acabo de referir demonstram evidentemente o aceso que teve minha família na escala da representação, e qual a sua prosperidade com a minha vida pública. Para se fazer uma ideia mais razoável dessas vantagens basta considerar-se que de soldados estavam oficiais, de pequenos criadores nestes sertões a ricos fazendeiros, e hoje assim elevados revoltam-se contra seu benfeitor, zombam e escarnecem de mim.

 

‘Oh! Quão falíveis são os juízos do homem!... Eu que supus erigir, à força de benefícios no seio da minha parentela um santuário, para repouso de minha velhice enganei-me! Os meus parentes me infamam e caluniam; eis a paga de tamanhos benefícios, e será sem dúvida o epitáfio que hão de lavrar sobre a campa do meu sepulcro!

 

‘Dormirei tranquilo no jazigo, mas a negra ingratidão permanecerá nessas frontes amaldiçoadas!”[7]

 

Foi este o desabafo do velho político e chefe de família em seus últimos dias de vida, desgostoso com as demandas que enfrentava em face da administração de seus bens particulares. De fato, era colossal a fortuna de Manuel de Sousa Martins, porque tendo herdado muitos haveres de seus pais e sogros, multiplicou-os por força de seu trabalho. Quando do falecimento de sua primeira esposa os bens do inventário foram avaliados em 262:650$361 réis, sendo o gado vacum de toda sorte avaliado a 5$000, cavalos a 16$000 e potros a 10$000, entre outros[8]. Reconhecido por sua probidade e tino, desde moço fez-se procurador e administrador de grandes latifundiários absenteístas do Piauí, por cuja gestão era remunerado, depois adquirindo as respectivas fazendas quando esses ou seus herdeiros delas quiseram se desfazer. Segundo Clodoaldo Freitas, a compra feita às fazendas do capitão-mor Cristóvão da Rocha Pita[9], residente em seu Engenho do Caboto, na Bahia, das quais fora por muitos anos administrador, deu-lhe imenso avanço em sua riqueza, sendo o gado de toda a sorte comprado a 4$000 a cabeça. Outro salto foi a compra feita à viúva e herdeiro único das fazendas do nababo Luís Carlos Pereira de Abreu Bacelar, inclusive a Serra Negra, então residentes em Lisboa.

 

Manuel de Sousa Martins, o Visconde da Parnaíba, foi casado duas vezes, sendo a primeira com a prima Maria Josefa dos Santos[10], com quem gerou três filhos[11]; e a segunda, a partir de 1844, na idade de 77 anos, com dona Maria Benedicta Dantas, viúva de João Barbosa de Carvalho[12], com quem não deixou sucessores. No entanto, deixou diversos filhos naturais havidos com dona Mariana Joaquina Barbosa, que os registrou e educou com esmero.

 

Faleceu o grande piauiense, na cidade de Oeiras, a 20 de fevereiro de 1856, com 89 anos de idade, sendo o corpo sepultado na capela mor da igreja matriz de N. Sra. da Vitória.

 

Contra ele deixou impressões pouco lisonjeiras o naturalista inglês George Gardner, que o visitou em Oeiras, no ano de 1839; seguramente a aversão foi recíproca, pois é pouco provável que o Brigadeiro Manuel de Sousa Martins, de existência prática, tenha achado vantagem num homem que vinha de tão longe coletar amostras de pequenas plantas e de borboletas, por exemplo. Também, o escritor José Martins Pereira de Alencastre, que acompanhou o presidente José Antônio Saraiva ao Piauí, ambos baianos, em obra de 1857, deu um duro depoimento sobre o seu governo; mas ali não é obra de um historiador, e sim de um sectário político. Melhor depoimento é o de um piauiense genuíno, o incansável Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco:

 

“Nenhum estudo regular teve o Visconde da Parnaíba, e posto que o seu longo governo fosse deficiente para o progresso do Piauí, não se lhe pode negar a inteligência e tino admirável com que ele soube conquistar a elevada posição de que gozou na sociedade, criando ao mesmo tempo a grande e importante família que deixou na província”.

 

Por fim, vamos ouvir outro piauiense genuíno, o monsenhor Joaquim Chaves, historiador dos mais acreditados de nossa gleba:

 

“Claro que ele não era um santo, mas também não era o demônio que seus adversários políticos pintaram. Queriam alijá-lo a qualquer preço, pois seu governo já durava 20 anos; esta é que era a razão última de toda aquela guerra contra o velho fazendeiro”.

 

Foi, de fato, um grande piauiense com larga folha de serviço prestado. Obviamente, cometeu equívocos como todo governante que se demora no poder por largos anos, daí a necessidade da rotatividade no comando de qualquer povo. Mas não se lhe pode ser injusto e negar o grande bem que fez à sua nação ao ajudar a consolidar a independência e assegurar a integridade territorial. Merece, pois, figurar na galeria dos grandes brasileiros.

 

_______________

 

*REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.

 

 

 

 

 

[1] BRANDÃO, Wilson de Andrade. História do Poder Legislativo na Província do Piauí. 2ª Ed. Coleção Centenário 36. Teresina: APL, 2015.

 

[2] CHAVES, Monsenhor Joaquim Ferreira. Marcos de Araújo Costa. In: Obras completas. 2.ª Ed. Teresina: FCMC, 2013.

 

 

 

[3] BRANDÃO, Wilson de Andrade. História do Poder Legislativo na Província do Piauí. 2ª Ed. Coleção Centenário 36. Teresina: APL, 2015.

 

[4] CASTELO BRANCO, Miguel de Sousa Borges Leal. Apontamentos biográficos de alguns piauienses ilustres e de outras pessoas notáveis que ocuparam cargos importantes na província do Piauí. 3. Ed. Coleção Centenário 3. Teresina: APL-Senado, 2014.

 

[5] Em 1844, as fazendas do departamento do Canindé, fizeram parte do dote da princesa imperial D. Januária, e desde então foram administradas por procuradores particulares nomeados por sua alteza o Conde d’Áquila, que casara-se com a referida princesa, continuando os outros departamentos sob a administração tesouraria da fazenda (Nortista, 3.8.1901). Em correspondência datada de 6 de setembro de 1849, Samuel Phellips e Cia., em nome do príncipe Conde d’Áquila, agradece ao tenente-coronel Thomé Joaquim Gomes Teixeira a prestação de contas feita em 10 de novembro do ano anterior, da administração das fazendas do Canindé referentes ao tempo em que este fora procurador daquele, antecedendo, assim, ao Visconde da Parnaíba (O echo liberal, 25.11.1849). Mais tarde, ao anunciar a morte do coronel Antônio Leôncio Pereira Ferraz, comandante superior da guarda nacional de Valença, em 14 de fevereiro de 1872, foi assinalado ser ele procurador do Conde d’Áquila, para administrar as fazendas que nesta província lhes foram dadas para usufruir (O Piauhy, 31.3.1872)

 

 

 

[6] Theotônio de Sousa Mendes, seu sobrinho, chegou a escrever a Samuel Phellips, representante daquele no Rio, comunicando o estado de demência do Visconde da Parnaíba, e pedindo para substituí-lo na gestão dos referidos bens. Por outro lado, o neto Marcos de Sousa Martins chegou a publicar manifesto dizendo que tendo tomado conhecimento não concordava com a ação de interdição de seu avô ajuizada em seu nome por seu tutor, Manoel Ignácio de Araújo Costa, que era primo do Visconde. Por fim, em seu suplemento o visconde diz perdoar a filha Maria Josefa Clementino de Sousa Martins, porque dada aos afazeres domésticos talvez não soubesse o que escreviam em seu nome, atribuindo tudo ao neto Clementino de Sousa Martins, filho desta.

 

[7] A Imprensa, 19.9.1869.

 

[8] FREITAS, Clodoaldo. A Balaiada. Coleção centenário 142. Teresina: APL, 2019.

 

[9] Era senhor de oito fazendas na ribeira do Itaim, capitania de S. José do Piauí, herdadas de seus ancestrais, que as povoaram, a saber: Maria Preta, Jenipapo, Tábua, Serra, Torta, Canabrava, Canavieira e Tranqueira.

 

[10] Batizada em 20 de fevereiro de 1778; filha de Carlos José de Carvalho e Ana Joaquina Freire de Andrade, casados em 4 de maio de 1784, ela filha de Diogo Antônio Freire de Andrade e Francisca Moreira da Silva; neta paterna de José Vieira de Carvalho e Maria Pereira da Silva, esta filha de Antônio Pereira da Silva e Maria da Purificação, portugueses estabelecidos na fazenda Malhada, no vale do rio Piauí; bisneta de Hilário Vieira de Carvalho, o velho, e Maria do Rego Monteiro, ambos descendentes de pioneiros colonizadores do Piauí.

 

[11] Raimundo de Sousa Martins, José de Sousa Martins e Maria Josefa Clementino de Sousa Martins.

 

[12] João Barbosa de Carvalho, também primo do Visconde da Parnaíba. Desse primeiro consórcio D. Maria Benedicta Dantas, teve nove filhos dos quais apenas dois sobreviveram à mãe, esta falecida em 14 de dezembro de 1870, na cidade de Oeiras, com 76 anos de idade (A Imprensa, 12.1.1871).  

domingo, 27 de dezembro de 2020

Seleta Piauiense - Elias Paz e Silva

 

Fonte: Google/Revista Crescer

Haicai da tarde


Elias Paz e Silva (1963)


Cigarra, cigarro

acesos na tarde. Só

os sóis do canto.    

sábado, 26 de dezembro de 2020

PEQUENA CANÇÃO

Visitando a casa de Petrarca. Em Arquà, diz-se que se tem a vista de montanhas mais bonita de toda a Itália


PEQUENA CANÇÃO

  

Vitor de Athayde Couto

 

– Meu pai gostava muito de sonetos. Camões, Shakespeare… Ele costumava dizer que fazer sonetos não é para todo mundo.

  

– Por quê?

  

– Porque, além dos recursos tradicionais da elaboração de poemas, como métricas, rimas cruzadas e bem colocadas, na base de 4-4-3-3, o tema, as metáforas, as emoções, as críticas – quando é o caso – têm que estar bem encaixados. Sempre em 14 versos.

  

– E a modernidade?

  

– Ora, ora, ora. Você pode ser moderno. E até pós! E continuar fazendo sonetos. Manuel Bandeira, por exemplo. Outro dia consultei o Gúgli com a palavra-chave “soneto”. O primeiro registro que me apareceu foi “Soneto de fidelidade”. De quem? De algum parnasiano? Haha!

  

– Que foi?

  

– Tou aqui pensando nos poetas extemporâneos.

  

– Diabéisso?

  

– São os poetas que se acham modernos, embora coevos da pós-modernidade, mesmo sem saber…

  

– Haha, nunca tinha pensado nisso.

  

– Pois… É como a pintura moderna, abstrata.

  

– Por quê?

  

– Assim como os sonetos, a pintura de inspiração e técnicas clássicas também dá muito mais trabalho para ser feita. Os auto-retratos, por exemplo. Mas isso é coisa do passado. Com as câmeras nos celulares, ninguém precisa mais nem de fotógrafos, muito menos de pintores. Só os turistas, na Place du Tertre.

  

– Verdade. Agora, todo mundo se acha artista. Até os postes fazem arte.

  

– Como assim? – perguntei.

  

– Munidos de câmeras de segurança, os postes fazem vídeos, alguns deles estão entre os mais exibidos nos noticiários. E viralizam.

  

– Haha, eu também não tinha pensado nisso.

  

– Até os gatos.

  

– Agora, fui eu que não entendi.

  

– Certa vez, um artista plástico dito moderno ganhou um prêmio internacional por suas telas ditas abstratas. Quando os jornalistas perguntaram a que escola ele pertencia, respondeu, bem no estilo irônico de Villa-Lobos: “Escola Felina”. Todos se entreolharam e pediram que ele falasse mais dessa escola, tão pós-moderna quanto desconhecida, qual a sua técnica, etc. O artista explicou assim: primeiro, eu disponho algumas telas em branco pelo ateliê. Depois, amarro, no rabo do meu gato, uns pincéis untados com pastas de diferentes cores. Solto um rato naquele espaço de criatividade e empreendedorismo. Enquanto o gato persegue o rato, vai distribuindo as tintas nas telas. No final, pelo menos uma delas será premiada. Arte moderna, poesia moderna, dança moderna, universidade moderna… Simples assim. É preciso ser empreendedor.

  

– Haha. E a crônica “A boneca de milho”? Sabe de onde veio essa ideia?

  

– Não.

  

– De um antigo soneto, pode acreditar.

  

– Verdade? Você é poeta?

  

– Não. Não me chame de poeta. Tampouco sou poste. Nem gato. Apenas faço minhas artes, nem sempre tão belas, haha.

  

– ?

  

– Explico. Eu visitava a casa-museu de Petrarca, em Arquà, província de Padova. Se entendi bem o guia eletrônico toscano, Petrarca inventou o soneto, há sete séculos. Soneto teria o significado de “pequena canção”. Mas é melhor não confiar. Os guias de museus foram substituídos por um gadget de áudio, com várias opções de línguas muito estranhas.

  

– “Imprecionante”… turismo também é cultura, haha.

  

– Lá pelo século XIX, por falta de barbies, fofoletes, moranguinhos, chuquinhas, feijõezinhos e bate-palminhas modernas e pós, a boneca de milho levou-me a escrever uma crônica com o mesmo nome. Ela encantou Baptista Cepelos (1872-1915) pela graciosa pequena Lili, brincando de ser mãe, na sua maternidade metafórica:

 

MATERNIDADE

 

Sob uma latada amena,

onde a folhagem se entrança,

a luz se infiltra, serena,

como um olhar de criança…

Lili, graciosa pequena,

numa rede se embalança,

mais ligeira que uma pena,

mais linda que uma esperança.

E, nesse grato abandono,

com voz monótona e incerta,

convida os olhos ao sono…

E, mãe que adora o seu filho,

entre os bracinhos aperta

uma boneca… de milho!   

Cousas do Natal

Fonte: Google/Mercado Livre



Cousas do Natal


Carlos Rubem


Em todas as épocas, na casa do vovô Joel Campos, acolheram-se agregados que, ao longo dos anos, se tornaram familiares. 


Até o início dos anos cinquenta, por lá morou a Joana que veio a casar-se com o Sr. Antônio Vieira, morador no então povoado "Saco do Rei". 


Este, logo após a sua cerimônia matrimonial ocorrida, num domingo qualquer, na Igreja da Conceição, ao encontrar-se com o meu citado patriarca, na calçada de sua vivenda, muito reverencioso, ajoelhou-se e pediu-lhe a bênção. Inusitada cena muito lembrada por Raimundinho de Zefinha, acompanhada da sua característica gargalhada!... 


Deste enlace, sobreveio uma prole de cinco filhos, entre os quais a Inácia da Rocha Vieira que passou, ainda em tenra idade, a ser criada por vovó Bembém. É afilhada de batismo da Mãe Içe (Alice, minha tia).


Inácia, também conhecida por Lalá, é abirutada. Nunca aprendeu direito executar tarefas domésticas. Pedia-se para que ela fizesse um serviço, ela fazia outro. Burrinha de fazer pena! Enfim, atrapalhava mais do que ajudava. Estudava no Grupo Escolar “Armando Burlamaqui”, mas não aprendia nada. Não passava de ano... Lembro-me bem do seu esforço para assimilar as lições do abecedário. Copiava mil vezes a seguinte frase: “Eva viu a uva, a uva é de Ivo”.


Em criança, toda traquinagem que eu fazia, ela me dedurava ao meu povinho. No início da minha adolescência, fez chegar aos ouvidos das minhas pudicas tias solteironas que eu, no quarto dos baús, estava querendo fazer 'saliença' com Raimunda, outra criada.


Já faz muito tempo que Inácia voltou a morar nas Marrecas, antiga fazenda do vovô Joel havida por herança do seu sogro, Antônio Tapety (o velho). Tal possessão, hoje, é situada no município de Colônia do Piauí, que tem se expandido a olhos vistos.  


Aposentada como ruralista pelo INSS, passa o ano todo no seu meio pastoril. Mas quando chega o Natal, Inácia vem a Oeiras se confraternizar conosco. A ceia natalina na casa do vovô, como manda a tradição, é precedida de muita reza, cânticos católicos, troca de presentes, etc... 


Ontem (24.12.2013), encontrei-me com a esquálida Inácia na residência do meu aludido ancestral. Indagou-me por meus filhos, constatou que estou ficando com cabelos brancos, coisas assim. 


Não teve acanhamento em dizer que queria ganhar de “Papai Noel” um lençol. E um dinheirinho para sua passagem de retorno...


Na noite festiva de ontem, sentimos a sua ausência. Na hora das brincadeiras, amigo secreto, a pedido da moçada, ela canta hinos cívicos, músicas escolares e outros mais para a algazarra de todos. Sabe, inclusive, quem descobriu o Brasil. 


Para a contrariedade de sua madrinha, Inácia saiu à francesa e foi participar de um culto evangélico. Para Galiano, outro agregado de juízo curto, “ela está ficando é doida!”. 


Seja como for, nesta manhã, entreguei a Inácia o seu ansiado presente em frente ao presépio natalino montado na casa do vovô Joel. Ela, mais uma vez, se admirou, ficou encantada com “os bichinhos do Menino Jesus”!  

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

TRÊS IRMÃOS EM TRÊS TEMPOS

 


TRÊS IRMÃOS EM TRÊS TEMPOS

Elmar Carvalho 

Recebi o livro “A Medicina, a Família e as Letras”, da autoria de Paulo Ferreira, de caráter autobiográfico. Nele, o autor conta a sua vida, desde o nascimento até a sua carreira vitoriosa de médico e de empresário do setor de saúde. Conheci o Paulo e seus irmãos Clemilton e Gilberto Ferreira, desde nossa adolescência e juventude. Com eles mantive amizade e respeito recíprocos.

 

Gostava de ouvir a gargalhada reverberante e altissonante do Clemilton, quando via ou ouvia alguma coisa engraçada. Certa feita, ao chegar a uma bodega, cumprimentei os presentes, e dirigindo-me a ele disse que ele era um gigante, um verdadeiro cavalo batizado. Ele, no mesmo instante, respondeu-me que não, que apenas batizava os cavalos. Todos riram da resposta, e o Clemilton mais que todos.

 

Não perdi o rebolado, como se diz, e retruquei-lhe: - “Então corre, vai buscar água, e batiza-te primeiro a ti mesmo, pois tu és o mais cavalo de nós”. Todos acharam graça do meu repente, inclusive o Clemilton, que disse eu não ter mesmo jeito, e querer ganhar sempre.

 

Ele, que nessa época, começo dos anos 70, fazia o curso de Técnica Agropecuária no famoso Colégio Agrícola de Teresina, foi abordado por um vizinho para fazer o diagnóstico de uma vaca que havia morrido. Respondeu que não poderia fazer tal coisa, porquanto se o animal estava morto só poderia fazer a necrópsia, e soltou o estardalhaço de sua vibrante gargalhada.

 

Quando foi trabalhar como técnico em agropecuária ganhou fama logo no início de sua carreira. Havia uma rês magérrima, quase à morte, pois se recusava a comer. Outros técnicos e veterinários examinaram a vaca e não conseguiram descobrir a doença. O nosso bravo Clemilton também foi chamado para solucionar o problema. Logo ao chegar, pediu que atravessassem um pau na boca do animal. Meteu-lhe a mão garganta a dentro, e remexeu-a, atentamente e de forma circunspecta, de um lado para outro.

 

Descobriu um caroço de mucunã, mas o escondeu na mão, para valorizar o seu trabalho. Logo que pode, guardou o caroço no bolso da calça, de forma discreta, de modo que ninguém visse. Depois, aviou uma receita para desinflamar a garganta bovina. E esperou o resultado. Depressa soube que o animal voltara a comer e que se encontrava completamente restabelecido. Ganhou fama de ser o maior “veterinário” da região e de ser quase milagroso.

 

O Gilberto é mais sisudo, embora também tenha senso de humor. De boa voz, rítmica entonação e de bom poder argumentativo, tornou-se respeitado advogado criminalista. Foi atuante e dinâmico líder estudantil, sendo um dos fundadores da AUCAM (Associação dos Universitários de Campo Maior). Presidiu a Casa do Estudante Pobre do Piauí, situada na Rua Rui Barbosa, em Teresina.

 

Em sua gestão foi inaugurado o anexo, que fica por detrás do bloco antigo. Professor de História, certamente essa disciplina lhe serve para enriquecer e ilustrar a sua retórica forense. Foi, durante algum tempo, uma das lideranças proeminentes do PDT.

 

Quanto ao Paulo, veio para Teresina, onde cursou o 2º Grau e se formou em Medicina. Graças a seu esforço e tino administrativo e empresarial, construiu, aos poucos, mas sempre de forma segura, sem endividamentos temerários, o Hospital das Clínicas de Teresina. Dentro de seu planejamento e possibilidades, foi expandindo a área construída, com novos anexos e melhoramentos, e hoje pode ser considerado um dos grandes empreendedores de Teresina.

 

Já se prepara para construir um shopping na zona norte da capital, mais precisamente num grande terreno que possui na frente do HCT. Não duvido que esse empreendedor logo dará a Teresina um novo centro comercial; coisa, aliás, de que a capital já está precisando. Não deixou, contudo, de ser aquele rapaz simples, afetivo, amigo dos amigos, de sorriso largo e franco, além de ser o médico humanitário e vocacionado que é.

29 de junho de 2010  

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

2020 – UM NATAL DIFERENTE

Charge de Gervásio Castro


2020 – UM NATAL DIFERENTE


José Pedro Araújo

Historiador, contista e cronists

 

O Natal está chegando este ano com um gosto amargo para muita gente. Um vírus mortal que veio lá das bandas do oriente é o principal responsável por isso, somos sabedores. Muitas famílias estão enlutadas e, por isso mesmo, terão um período natalino mais triste do que o do passado. Até mesmo para aqueles grupos familiares que escaparam até agora do poderoso e nefasto inimigo microscópico, as festividades serão mais simples, mais magra, e sem a pompa de outras épocas. Nas igrejas, por exemplo, onde costumávamos comemorar alegremente a virada do dia vinte e quatro para o vinte e cinco, haverá modéstia nas comemorações, simplicidade nas apresentações. Entretanto, nada disso apagará o brilho desta data que encanta a todos os cristãos, nem interromperá a sua realização por completo. E a razão disso está no fato de que, o que comemoramos nessa data, é a chegada do Filho de Deus, a ocorrência da esperança para nossas vidas, da alegria de sabermos que a vinda do Redentor nos trouxe a certeza de que há salvação para as nossas almas, bálsamo para as nossas dores, e a certeza de uma vida eterna plena de  paz e alegria. Isso, ninguém, nenhum vírus maléfico, vai nos tirar. Nunca sairá de nós a alegria do tocar dos sinos no alto das catedrais, de nos encantarmos, e nos emocionarmos, com o som maravilhoso das lindas canções invadindo nossos lares, ocupando o espaço da tristeza em nossos espíritos.

 

Pensando no assunto, comecei a imaginar como deve ter sido o Natal dos britânicos em 1943/1944 (e de muitos europeus), no momento mais agudo da segunda grande guerra, quando os alemães escolheram o período da noite para lançar suas bombas mortíferas sobre os lares londrinos. A história nos conta que, mesmo com a permanente tensão, os moradores da cidade nunca perderam a sua fleuma, parte da sua rotina; não esmoreciam e procuravam levar uma vida como se os nazistas não pudessem afetar o curso delas. E com esse pensamento, muitos enfeitaram suas casas normalmente para esperar o Natal, e a maioria comemorou frugalmente o grande dia nos abrigos subterrâneos da cidade. A data, e o motivo da comemoração, precisava ter continuidade, mesmo sem a pompa de outras épocas. Deste modo, venceram o medo com a Fé; o terror das bombas V1 com o som maravilhosos dos cânticos.

 

Do mesmo modo, deve ter acontecido assim na primeira grande guerra, ou em períodos de pestes mortais, como a Gripe Espanhola, a Peste Negra, a Varíola, a Peste Bubônica, entre tantas outras. Nada disso foi suficiente para estancar o curso das festividades do dia em que comemoramos a vinda de Cristo.

 

A terra onde Jesus nasceu, por exemplo, tem sido um local permanente de incertezas de como será o Natal do ano que corre. O conflito árabe/israelense tem apagado, ano após ano, o brilho desta festa, mas não a interrompe por completo. Um exemplo disso aconteceu em 2006. Belém fica hoje localizada fora do território de Israel, na Cisjordânia, mas, mesmo assim, dezenas de milhares de turistas procuram a cidade nesse período natalino para visitar o local onde o Filho de Deus se fez homem. O conflito entre os dois povos ocasionou o surgimento de um muro entre as duas regiões litigiosas. E isso tirou o acesso dos trabalhadores que diariamente adentravam em Israel para exercer suas funções em Jerusalém, cidade próxima à fronteira, especificamente naquele ano. A Intifada, provocada pelo Hamas, foi a responsável por Israel levantar o muro para proteger a sua população dos ataques quase diários promovidos pelos seus inimigos. Pagaram por isso os trabalhadores do outro lado do muro, em Belém, que precisavam do dinheiro ganho dos Judeus para promover o sustento de suas famílias.

 

A cidade de Belém, de pouco mais de 40.000 habitantes, ficou sem recursos financeiros, sem condições até mesmo de pagar os salários de seus funcionários. Aquele Natal foi muito triste. Até mesmo os produtos retirados das fazendas existentes no outro lado do muro, foram impedidos de chegar até a mesa das famílias na cidade de Cristo. Contudo, não duvido de que os cristãos lá residentes deram um jeito de comemorar a data mais importante da cristandade. Eles sempre conseguem. A Fé que move montanhas, segundo as escrituras, sempre encontra um modo de acender a chama da esperança nos corações cristãos. E não há peste ou flagelo suficientemente grande que impeça que eles festejem a sua data célebre.

 

Quem não tem acesso à energia elétrica para acender as luzes da árvore mais humilde, acendem velas de cera e o brilho das chamas fazem refletir as cores nas bolas e arranjos natalinos. Elas emitem o fulgor e o brilho de suas belas cores: O Vermelho, que representa o sangue de Cristo, e o amor incondicional ensinado pelo Mestre; e o Dourado, que significa a presença do divino, a luz, o sol. Essas cores, esse brilho, nunca morrerão nem faltarão nos lares cristãos. Mesmo em tempos de guerra ou de peste, como a que vivemos hoje.

 

Em algum lugar encontrei uma lista de coisas que podemos fazer para alegrar as crianças nesse Natal diferente:

 

1 – Tirem o dia para cozinhar receitas natalinas;

2 – Façam cartões de natal personalizados;

3 – Organizem uma chamada de vídeo com Papai Noel;

4 – Decorem a casa juntos;

5 – Invista em maratona de filmes de natal;

6 – Façam um Karaokê com músicas de natal;

7 – Troquem presentes virtualmente;

8 – Passeie de carro pela cidade para admirar as luzes de natal pela cidade;

9 – Criem uma lista de agradecimentos e pendurem na árvore. Motivos para agradecer a Deus pelo ano passado não faltarão.

10 - E, principalmente, ajoelhem-se e renovem os votos de Aliança com o nosso Poderoso e Amoroso Deus.

Um Feliz Natal a todos!      

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O CRONISTA TURUKA E A GERAÇÃO LITERÁRIA DE 1970

 

Antonio Andrade Filho, Irmão Turuka. Foto cedida por Simão Pedro Andrade, filho do escritor


O CRONISTA TURUKA E A GERAÇÃO LITERÁRIA DE 1970

 

Celson Chaves

Escritor, historiador e professor

 

O Jornal A Luta foi o principal veículo de informação impresso de Campo Maior no século XX. Sua importância mede-se não apenas pelo número de edições publicadas e o longevo período de circulação, mas pela proeza de reunir um seleto grupo de escritores, uns jovens, outros nem tanto; num movimento de divulgação da literatura local. Em torno do periódico, formou-se uma geração literária.

 

O A Luta foi responsável por um movimento literário espontâneo nunca mais repetido no jornalismo de Campo Maior. Da poesia ao romance. Dos vários gêneros literários contemplados, a poesia se sobressaiu pela variedade e quantidade. Muitos escritores iniciaram a atividade literária no A Luta. Diversos talentos revelados. O poeta Elmar Carvalho e o cronista Antonio Andrade Filho (Irmão Turuka) foram uns deles.

 

Dos cronistas atuantes no periódico, vale ressaltar, Antonio Andrade Filho, José Francisco Bona, Marion Saraiva e Teresinha de Jesus Oliveira Nascimento. Os cronistas anônimos também fizeram presentes no jornal escondendo-se por trás de pseudônimos para denunciar os problemas da cidade de ordem urbana e social, comportamentos supostamente imorais e crítica às autoridades municipais.

 

Mesmo vivendo sob o manto da censura militar, nenhum escritor sofreu perseguição política por conta do que escreveu. Eles evitavam comentar sobre política nacional. Até certo ponto, a Geração do A Luta foi conservadora, sobretudo no aspecto político. Pouquíssimos opinavam sobre o impacto político do regime militar na vida das pessoas. Escrever era perigoso, publicar mais ainda. Muitos campo-maiorenses já tinham sido importunados pela polícia, presos ou interrogados por expressarem opinião contrária à ditadura militar. Até escritores e jornalistas mais afoitos, como Raimundo Antunes Ribeiro e Zeferino Alves Neto não ariscaram cometer tão grave erro.

 

Muitos dos escritores da Geração do A Luta eram ecléticos. Escreviam um pouco de tudo. Marion Saraiva e Teresinha de Jesus Oliveira Nascimento enveredaram para a poesia, crônica, conto e história. As mulheres tiveram uma participação significativa no periódico. Eram dinâmicas, intimistas e criativas. Dentre os homens, destaca-se Elmar Carvalho (poesia), José Cunha Neto (cordel), José Miranda Filho (romance), José Francisco Bona e Irmão Turuka (crônica).

 

A Geração do A Luta caracteriza-se por um grupo de escritores e jornalistas focados nos problemas da cidade, preocupados com questões política e social de cunho local, ideológica, questões religiosas, assim como os centrados apenas na literatura.

 

Era rico o cenário literário estampado nas páginas do jornal A Luta. A frenética década de 1970, com suas inúmeras novidades e atrativos assustavam os escritores mais conservadores. A modernidade em curso não quebrava apenas a rotina da pacata cidade, mas abalava os alicerces e os costumes de uma sociedade extremamente religiosa.

 

Campo Maior saia do isolamento. A prosperidade econômica do município atraia todo tipo de forasteiro. Novas visões de mundo foram implantadas. O cineteatro, os clubes, a zona do meretrício, o namoro nas praças, às tendências subversivas na moda, na música e na própria literatura abriam o horizonte da juventude campo-maiorense desejosa por novidades e aventuras.  Os anos rebeldes dos anos 50 chegavam tardio a Campo Maior.

 

A crônica campo-maiorense da década de 1970 refletiu tudo isso. Porém, seu papel maior foi na construção de um repertório literário para a história local. Um rico manancial de informações sobre Campo Maior da primeira metade do século XX. O sentimento saudosista da historiadora Marion Saraiva e do cronista Irmão Turuka foram responsável por parte dessa produção. Hoje, toda essa massa documental está sendo largamente utilizada em pesquisas acadêmicas.

 

Antônio Andrade Filho participou da geração literária do A Luta numa linha ideológica mais próxima de Marion Saraiva, Cunha Neto e, sobretudo Octacílio Eulálio, quando o assunto era salvaguardar o catolicismo e os bons costumes das tentações do mundo moderno, do avanço do protestantismo.

 

Irmão Turuka era maçom kardecista. Sua religiosidade refletia na produção literária. A Geração do A Luta era composta por católicos, maçons e kardecistas. Não havia protestantes. O grupo era coeso, apesar da existência de pensamentos diferentes. O respeito intelectual prevalecia entre os membros do jornal.

 

A participação do Irmão Turuka no jornal A Luta restringiu mais a crônica que o jornalismo propriamente dito. Publicou trinta e dois textos, segundo o historiador José Ribamar de Sena Rosa (2015). De narrativa simples, seus escritos são fontes da memória prodigiosa do cronista bairrista. Para ele “Recordar é Viver”. Suas crônicas revelam o lugar onde nasceu. São recordações afetivas, memórias de uma cidade velha.

 

O roteiro histórico-sentimental do cronista interiorano é traçado em três pontos: lugares, personagens e episódios. Irmão Turuka não fazia acepção de pessoas ou classes em seus textos. Independente da condição social, todos são personagens de uma mesma paisagem.

 

Ainda não há estudo específico sobre as crônicas de Irmão Turuka. Porém, coube aos historiadores Reginaldo Gonçalves Lima, Francisco Assis Lima e José Ribamar de Sena Rosa tratarem da biografia e obra de Turuka. O primeiro resumiu a vida do escritor, sem adentrar muito a crítica e análise dos textos; o segundo fez um completo levantamento das crônicas, de textos dos colegas de jornal do autor e perfis biográficos sobre ele. Todos publicados na íntegra. O terceiro foi o único até agora a realizar um estudo mais crítico de algumas crônicas de Turuka numa dissertação de mestrado sobre o jornal A Luta.

 

Muito louvado como humanitário, pouco reverenciado como escritor. Esse aspecto biográfico é bem característico em Irmão Turuka desde as primeiras homenagens recebidas no ano do seu falecimento, em 1970, pelos colegas de jornal A Luta até Reginaldo Gonçalves Lima, o primeiro historiador a traçar um perfil biográfico de Turuka. Reginaldo Lima, contudo não conseguiu aprofundar o estudo sobre a faceta literária do autor. O texto traz ligeiras notas e citações das principais crônicas publicadas por Turuka nos jornais O Estímulo, A Luta e o Tombador. Todos de Campo Maior.

 

Ao contrário de Reginaldo Lima, penso que a literatura em Irmão Turuka não foi fruto de um autodidatismo e sim resultante de uma educação esmerada. Para os padrões da época, ele teve uma boa formação educacional, leu bons livros e estudou nos melhores colégios de Campo Maior (Valdivino Tito e Ginásio Santo Antônio) e do Piauí (Colégio Diocesano).

 

A obra de Turuka expressa à voz do povo. Do mais simples até a fina estirpe. “Bem Aventurados os simples” dizia ele uma de suas crônicas. O rico imaginário popular com histórias e lendas perpassam os textos do escritor. Ele amava contar reminiscências de uma Campo Maior esquecida pelo povo. Os beatos e seus dons milagrosos, oralidades revestidas de um verniz cultural e secular. O lado folclórico da escrita abrangem tudo isso e um pouco mais. Turuka salva o povo da sua própria banalidade. Típico cotidiano rasteiro.

 

Campo Maior torna-se cheia de poesis. O autor tira a cidade da trivialidade. Tudo bem elaborado, minuciosamente descrito. Com temas extremamente sugestivos, ele envolve a mente do leitor na trama de homens de dons “sobrenaturais”, os médiuns e os profetas do sertão. Adepto do espiritismo kardecista, tema como a morte sempre lhe devotava tempo e atenção. Seus textos publicados no jornal A Luta são crônicas e algumas notas trazem curiosidades sobre diversas situações do cotidiano e da cultura humana, a exemplo do “listão de São Silvestre”.

 

O cronista também teve seus momentos de historiador, quanto teve a percepção crítica de levantar o passado da cidade com olhar perspicaz. Ele atualizava nossos dramas. Entendia a história como mestra da vida. O papel de cronista é o mesmo do cidadão historiador.

 

Dos cronistas do Jornal A Luta, Irmão Turuka foi o único a enveredar para a crônica musical. A maioria dos jornalistas e escritores ficou na crônica esportiva. Ele teve a incumbência de cobrir todo o contexto cultural da década de 1930 a 1970, em que brilharam grandes bandas e talentosos músicos em festas estonteantes.  São três as crônicas que versam sobre essa temática: “Lyra de Santo Antônio”, “Serestas e Seresteiros” e “Eu Vi a Banda Passar” publicados originalmente nas páginas do Jornal A Luta, depois reproduzidas na íntegra nos livros Geração Campo Maior -anotações para uma enciclopédia (1995) e Recortes de Campo Maior (2008) dos respectivos historiadores Reginaldo Lima e Assis Lima.