quarta-feira, 4 de setembro de 2024

A MORTE DA BARATA


                    

A MORTE DA BARATA


Elmar Carvalho

 

Ontem uma barata, por várias vezes, tentou tocar-me os pés. Eu os batia, enxotando-a, mas logo ela investia novamente. A insistência desse inseto, pavor das mulheres em geral, acabou por me torrar a paciência. Devo dizer que faz alguns anos não gosto de eliminar nenhum tipo de ser vivo, nem mesmo baratas, moscas e grilos.

 

Aliás, já fiz uma crônica em que tratei de um grilo. Godofredo Rangel, antes de mim, escreveu um texto sobre o caso de um grilo, em que ele, para dar liberdade a esse impertinente e enfadonho cantor, o conduziu para o quintal. Seu gesto caridoso, porém, foi fatal ao inseto, porquanto ele terminou indo parar no papo de uma faminta e gulosa galinha.

 

As cigarras foram cantadas em verso e prosa; em fábulas, e em sonetos de Olegário Mariano. Um dos personagens de Kafka, como é sabido por todos, acabou por se metamorfosear num inseto. Tornou-se página antológica, recolhida em muitas seletas, o capítulo XXXI de Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual a personagem ficou incomodada com a presença de uma grande borboleta, pelo simples fato de ela ser negra. Um golpe de toalha encerrou sua vida. A personagem, em irônica autocomplacência, ainda se perguntou, como atenuante, por que não era ela azul.

 

Recentemente, ao vivo e em cores, como se dizia outrora, ou em tempo real, como se fala agora, viu-se o presidente Barack Obama, em piparote certeiro e fulminante, abater uma mosca que lhe importunava durante uma filmagem de televisão.

 

Mas, como eu dizia, faz muitos anos que não gosto de tirar a vida de nenhum ser, por menor que ele seja, mesmo nocivo, como aranhas e caranguejeiras. Não me sinto bem em fazê-lo. Contudo, como a personagem machadiana, terminei ficando aborrecido com a insistência da barata em querer lamber-me os pés. Resolvi fulminá-la com leve golpe de chinela japonesa. Brandi a arma sem raiva e a contragosto, sem muita vontade de eliminá-la. O inseto ficou completamente imóvel, de forma que o dei como morto. Em seguida, o afastei para um canto do compartimento, onde ficou de patas e papo para o ar.

 

Para minha surpresa, hoje à tarde, não mais vi o menor vestígio dele. Dizem que é um dos animais mais resistentes, e talvez seja o único espécime que sobreviveria à radiação de uma guerra nuclear. Sendo assim, é bem possível que tenha mesmo resistido ao golpe de minha alpargata. Melhor assim. Mas se assim não foi, que descanse em paz.  

25 de agosto de 2010

O professor Antônio José Melo dos Santos me mandou o seguinte comentário, por WhatsApp:

"Bom dia, caríssimo.


Li sua crônica.


Vc soube equilibrar muiito bem a sensação grotesca q um barata comumente nos faz sentir, combinado a um passeio literário deste e doutros insetos na literatura universal.


Não lembro o autor (poeta ou escritor) q ao sentar para escrever, veio-lhe o parovoso branco e nada conseguia redigir, até q apareceu uma simples formiga e aquilo foi produto de sua criação.


Parabéns por mostrar mais uma vez q a singularidade das coisas em estar em ser singular.


Despois desta, não verei mais os insetos como inoportunos, mas possíveis de criação literária.


Satisfação.


Antonio JMS"

Professor,

Acho que essa barata era o próprio Kafka.

Era uma barata cara; pelo menos não era barata.

4 comentários:

  1. Crônica bastante divertida. No meu caso. a barata é pode infantir alimentos que serão nossa comida. Daí. nós fará. Quem é ou pode ser contra mim, não gosto de poupar. Se puder, mato, sim.

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  2. Bom dia, amigo, gostei da sutileza de atenção aos animais invertebrados, principalmente em um mundo que muitas vezes não damos atenção nem aos humanos (seres invisíveis no cotidiano da vida).
    Everardo-Parnaíba

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  3. Pelo visto, não era uma barata tonta, mas esperta, pois se escafedeu!

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  4. Essa barata era o próprio Kafka.
    Essa barata era cara; pelo menos não era barata.

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