A MORTE DA BARATA
Elmar Carvalho
Ontem uma barata, por várias
vezes, tentou tocar-me os pés. Eu os batia, enxotando-a, mas logo ela investia
novamente. A insistência desse inseto, pavor das mulheres em geral, acabou por
me torrar a paciência. Devo dizer que faz alguns anos não gosto de eliminar
nenhum tipo de ser vivo, nem mesmo baratas, moscas e grilos.
Aliás, já fiz uma crônica em que
tratei de um grilo. Godofredo Rangel, antes de mim, escreveu um texto sobre o
caso de um grilo, em que ele, para dar liberdade a esse impertinente e
enfadonho cantor, o conduziu para o quintal. Seu gesto caridoso, porém, foi
fatal ao inseto, porquanto ele terminou indo parar no papo de uma faminta e
gulosa galinha.
As cigarras foram cantadas em
verso e prosa; em fábulas, e em sonetos de Olegário Mariano. Um dos personagens
de Kafka, como é sabido por todos, acabou por se metamorfosear num inseto.
Tornou-se página antológica, recolhida em muitas seletas, o capítulo XXXI de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual a personagem ficou incomodada com a
presença de uma grande borboleta, pelo simples fato de ela ser negra. Um golpe
de toalha encerrou sua vida. A personagem, em irônica autocomplacência, ainda
se perguntou, como atenuante, por que não era ela azul.
Recentemente, ao vivo e em cores,
como se dizia outrora, ou em tempo real, como se fala agora, viu-se o
presidente Barack Obama, em piparote certeiro e fulminante, abater uma mosca
que lhe importunava durante uma filmagem de televisão.
Mas, como eu dizia, faz muitos
anos que não gosto de tirar a vida de nenhum ser, por menor que ele seja, mesmo
nocivo, como aranhas e caranguejeiras. Não me sinto bem em fazê-lo. Contudo,
como a personagem machadiana, terminei ficando aborrecido com a insistência da
barata em querer lamber-me os pés. Resolvi fulminá-la com leve golpe de chinela
japonesa. Brandi a arma sem raiva e a contragosto, sem muita vontade de
eliminá-la. O inseto ficou completamente imóvel, de forma que o dei como morto.
Em seguida, o afastei para um canto do compartimento, onde ficou de patas e
papo para o ar.
Para minha surpresa, hoje à
tarde, não mais vi o menor vestígio dele. Dizem que é um dos animais mais
resistentes, e talvez seja o único espécime que sobreviveria à radiação de uma
guerra nuclear. Sendo assim, é bem possível que tenha mesmo resistido ao golpe
de minha alpargata. Melhor assim. Mas se assim não foi, que descanse em
paz.
25 de agosto de 2010
O professor Antônio José Melo dos Santos me mandou o seguinte comentário, por WhatsApp:
"Bom dia, caríssimo.
Li sua crônica.
Vc soube equilibrar muiito bem a sensação grotesca q um barata comumente nos faz sentir, combinado a um passeio literário deste e doutros insetos na literatura universal.
Não lembro o autor (poeta ou escritor) q ao sentar para escrever, veio-lhe o parovoso branco e nada conseguia redigir, até q apareceu uma simples formiga e aquilo foi produto de sua criação.
Parabéns por mostrar mais uma vez q a singularidade das coisas em estar em ser singular.
Despois desta, não verei mais os insetos como inoportunos, mas possíveis de criação literária.
Satisfação.
Antonio JMS"
Professor,
Acho que essa barata era o próprio Kafka.
Era uma barata cara; pelo menos não era barata.
Crônica bastante divertida. No meu caso. a barata é pode infantir alimentos que serão nossa comida. Daí. nós fará. Quem é ou pode ser contra mim, não gosto de poupar. Se puder, mato, sim.
ResponderExcluirBom dia, amigo, gostei da sutileza de atenção aos animais invertebrados, principalmente em um mundo que muitas vezes não damos atenção nem aos humanos (seres invisíveis no cotidiano da vida).
ResponderExcluirEverardo-Parnaíba
Pelo visto, não era uma barata tonta, mas esperta, pois se escafedeu!
ResponderExcluirEssa barata era o próprio Kafka.
ResponderExcluirEssa barata era cara; pelo menos não era barata.