domingo, 28 de julho de 2024

FAZENDA TOMBADOR

 

Fonte: Google

FAZENDA TOMBADOR


Elmar Carvalho

 

Em vez de tombamento

a protegê-la da usura,

sem limites e sem pudor,

e das mordidas vorazes

do tempo e do vento,

literalmente tombaram

a Fazenda Tombador.

 

Lançaram ao desabrigo,

em eterno e impiedoso castigo,

os históricos fantasmas

do tempo da Batalha,

que ficaram ao relento,

expostos à chuva e ao vento,

sem vestes e sem mortalha.

 

Quando literalmente tombaram

a Fazenda Tombador,

nenhuma voz se levantou,

nem mesmo a voz de alguém,

que clamasse no deserto, clamou.

E a Fazenda Tombador

literalmente tombou.

 

Pela ânsia bruta da ganância,

da Fazenda Tombador, rediviva,

em nossa repetível retentiva,

restou apenas o retrato da saudade

numa redoma de dor.

                  Te. 13.04.97

sexta-feira, 26 de julho de 2024

AINDA JOSÉLIA


                                    

AINDA JOSÉLIA


Elmar Carvalho

 

Ontem, quando vinha a Parnaíba, com a missão de fazer a apresentação de Manuel Domingos Neto e de seu livro “O que os netos dos vaqueiros me contaram”, resolvi passar pela casa de meus pais em Campo Maior, sobretudo com o objetivo de lhes entregar cópia da crônica que publiquei neste Diário, datada do dia 17, sob o título “A morte de Josélia”, uma vez que eles não são navegantes da internet, na qual fora publicada.

 

Talvez nisso tenha havido certa dose de recôndito e dissimulado sadismo sentimental e vaidade artística, que nem Freud saberia explicar. É que meu pai é muito emotivo e eu sabia que derramaria lágrimas. Enquanto esperava a refeição num restaurante de Piracuruca, liguei para minha mãe. Ela me informou que papai chorara copiosamente, e lhe lera, com voz embargada e entre lágrimas e soluços, a crônica elegíaca sobre a morte de minha irmã.

 

Posteriormente, já em Parnaíba, após ter cumprido minha missão literária no SALIPA, verifiquei que no meu blog havia um comentário de minha filha Elmara sobre esse texto, em que ela se declarou emocionada, sobretudo na parte em que narrei o sofrimento de meus pais.

 

Havia outro, da lavra do escritor e professor Cunha e Silva Filho, do qual, algo cabotinamente, pinço o seguinte trecho: “A sua querida Josélia teve o destino dos que se vão cedo e têm sua biografia brutalmente interrompida. (…) A poesia, ou a crônica poetizada, como esta que lhe dedicou de corpo e alma, tem suficiente poder de tornar sua irmãzinha sempre viva e doce, e bela e alegre junto de você e de sua família.”

 

Com efeito, ela não é apenas uma fotografia na parede, como no poema de Drummond. Continua muito viva na memória e na saudade de nossos pais e de todos aqueles que a conheceram e lhe tinham estima e amizade.

21 de agosto de 2010

domingo, 21 de julho de 2024

EL PACIFICADOR

 

Autor: Gervásio Castro

EL PACIFICADOR


Elmar Carvalho

 

Não tanto herói das Conquistas

                muito menos El Matador

                muito mais El Pacificador.

Bernardo de Carvalho e Aguiar

seu nome honrado

ainda vibra no ar,

nas cidades, nos currais

e nas igrejas que semeou.

Os dedos longos dos campanários ainda

apontam as etéreas campinas celestiais.

Da fazenda Bitorocara,

plantada nas margens do Surubim,

rebentou a cidade encantada

dos planos campos maiores,

dos carnaubais vastamente dilatados.

Valoroso na guerra,

amante e pacífico na paz,

seu braço guerreiro

curava e amparava

no final dos combates.

Por isto

sua bondade e justiça

os índios por justiça respeitavam.

 

                           Te. 02.09.95

sábado, 20 de julho de 2024

A ÁRVORE

Fonte: Google
Genial charge que acabo de receber, da autoria de Gervásio Castro



A ÁRVORE 


Elmar Carvalho

 

Era por volta de sete e meia da manhã. Tudo bem claro, mas nada de excesso de luminosidade. A temperatura estava agradável; nada de calor, nem de frio. Contudo, eu não estava feliz naquele momento. Estava um pouco preocupado, por causa de coisas que não dependiam de minha vontade. Coisas que dependiam dos outros e das circunstâncias para serem resolvidas ou melhoradas.

 

De repente, atentei para a beleza daquela árvore. Todo dia passava por ela, mas nunca havia reparado em sua nobre beleza. Embora não se destacasse por ser de grande porte, era altiva e copada. Seu verde era incomum, peculiar; tinha tonalidades ímpares. Suas folhas eram lustrosas, e pareciam ser de uma textura levemente esmaltada. Conforme as folhas estivessem contra ou a favor da luz solar, atingiam diferentes gradações esmeraldinas. Às vezes pareciam foscas, outras vezes, translúcidas.

 

Algumas pareciam espelhos verdes, a refletir a luz do sol; daí a intensidade com que brilhavam. A folhagem da copa era densa, fechada, e se recortava contra o límpido azul do céu daquele dia, em que apenas alguns fiapos de nuvens se esgarçavam tênue e esparsamente. Pela primeira vez percebi suas flores. Eram grandes e belas. Algumas mal começavam a desabrochar. Outras estavam no apogeu de sua beleza madura e completa.

 

Algumas ainda não eram; eram apenas botões, que ainda haveriam de se desabotoar em pura magia, no esplendor de sua glória. As pétalas róseas formavam uma espécie de coroa em torno de uma bolota, que certamente era o embrião do fruto que viria. As pétalas centrais pareciam ter uma franja dourada, arremate de pura e caprichosa ourivesaria. Aquelas gradações de verde e de brilho eram como que o símbolo da esperança, que nos deve alimentar a cada dia.

 

Os diferentes estágios das flores, de broto a botão, de botão a flor, de flor a fruto, me fazem lembrar as etapas de nossa própria vida. Mesmo as flores que se não convertem em frutos são frutos; frutos de beleza e graça. Naquela árvore abençoada colhi o fruto da esperança, e segui confiante e já restituído a mim mesmo em minha integralidade.

 

Rilke, na primeira das Elegias de Duíno, falava de uma árvore sobre a colina, que a cada dia poderíamos rever. Desejo que essa árvore possa sempre ser vista e revista, e se mantenha distante dos golpes brutais de um machado.

21 de agosto 2010

domingo, 14 de julho de 2024

CROMOS DE CAMPO MAIOR - VII

Fazenda Abelheiras   Fonte: Gloogle


CROMOS DE CAMPO MAIOR


Elmar Carvalho


           VII

 

Na casa grande da fazenda

o brasão é uma grande

caveira de boi erado

de chifres enormes

às vezes descrevendo

curvas

como obra de arte.

O vaqueiro e o cavalo

se fundem e se confundem na desabalada

                                                          alada

carreira quase voo

campeando gado pelos campos

                                 de Campo Maior.

A perneira e o gibão

dependurados na parede

como se vestissem invisível corpo

são a lembrança palpável do vaqueiro

morto na desobriga.

O vaqueiro em seu terno de couro

– segunda pele áspera de seu corpo –

solta seu canto de guerra

e paz: o aboio – eeeeei! boooooi!

O eco é o aboio de

outro vaqueiro: – eeeei! boooooi!

quinta-feira, 11 de julho de 2024

A MORTE DE JOSÉLIA


Miguel e Rosália
Retrato de meus pais, quando jovens


                                   

A MORTE DE JOSÉLIA    


Elmar Carvalho

 

No domingo, Dia dos Pais, fui a Campo Maior. Na casa paterna encontrei a minha irmã Maria José, que passou a minhas mãos um envelope contendo vários recortes de jornais, que ela cuidadosamente colara num papel de boa qualidade, de modo que esses recortes estavam em perfeito estado de conservação. Eram pequenas notas tipográficas, do final da década de 1970, dos jornais Folha do Litoral, Norte do Piauí e O Estado.

 

A maioria continha poemas de minha autoria, do final de minha adolescência. Alguns desses textos, embora não os renegue, não os recolherei em livro. Havia breves notas sobre o lançamento do livro Galopando, primeira obra a agasalhar meus versos, e que mais me causou emoção, por isso mesmo. Também faziam parte do opúsculo os poetas Paulo de Athayde Couto, Josemar Neres, Paulo Couto Machado e Rubervam Du Nascimento.

 

E havia, no meio dessa relíquia de celulose, duas notas sobre o trágico acidente automobilístico em que faleceu minha irmã Josélia, no apogeu de sua beleza e na plenitude de suas quinze primaveras. Ali estava uma elegia que escrevi sob o impacto de sua morte, e que se encontra estampada no meu livro Rosa dos Ventos Gerais. No meio desses velhos papéis, havia um texto manuscrito, de que já não tinha a menor lembrança, vazado em nervosa prosa poética, em que eu extravasava as minhas emoções ao ferir essa tragédia familiar.

 

Josélia faleceu no dia 2 de julho de 1978, e mal completara quinze anos de vida. Era bela. Era alegre. Era cheia de vida. Sua alegria era verdadeiramente contagiante. Exercia feliz e natural liderança sobre suas amigas. Soubemos que no último dia de aula, quando viriam as férias de julho, ela abraçou todos os seus colegas de classe, um a um, meninos e meninas, e lhes disse que fazia aquilo porque lhes desejava umas férias tão alegres como as que ela teria.

 

Também escreveu num caderno uma breve crônica em que pedia que, quando morresse, fosse posto um ramo verde sobre seu túmulo. Parecia ter a premonição de que morreria no verdor dos anos. E um ramo verde apareceu no local em que ela foi sepultada. E – quem sabe? - talvez as suas férias, em outros infinitos páramos de Deus, tenham se convertido numa eterna festa de paz e beatitude.

 

Recordo muito bem. Eu estava sob uma das traves do estádio de futebol de Buriti dos Lopes, em minha posição de goleiro, quando vi umas moças virem em minha direção. Reconheci que eram umas amigas de minha família e de minhas irmãs. Logo, salvo engano, a Clotildes Duarte me disse que minhas três irmãs haviam sofrido um acidente, mas que estavam bem.

 

Quando percebeu que eu havia assimilado o golpe, acrescentou que não iria me enganar; que a Josélia havia morrido, e que seus parentes iriam me levar a Parnaíba, para eu ficar ao lado de meus pais. Soube, depois, que meu pai, homem extremamente emotivo e sentimental, ao saber da notícia estendeu-se no solo, prostrado, arrasado. Um de meus irmãos teve a presença de espírito e inteligência emocional para cantar uma música religiosa da predileção dele, que dizia para a pessoa segurar na mão de Deus e ir em frente.

 

Imediatamente, o velho se levantou e criou forças para fugir do desespero. Minha mãe, que sob certos aspectos sempre fora mais forte e mais contida que meu pai, ficou arrasada, e ficou prostrada por vários dias. No dia seguinte, o meu amigo Antônio Gallas escreveu uma de suas Crônicas da Cidade, dedicada a Josélia, que era sua aluna. O texto foi lido por Gilvan Barbosa, de bela e vibrante voz.

 

Dessa época, o poeta Jorge Carvalho encontrou entre os pertences e pequenas lembranças de sua mãe um pequeno impresso, em sua memória, que me repassou de forma muito atenciosa através de e-mail. O diretor dispensou os alunos do Colégio Comercial, onde minhas irmãs estudavam, e eles encheram a catedral, de onde saiu o cortejo fúnebre em direção ao Cemitério da Igualdade, de nome tão sugestivo quanto apropriado.

 

Tentei ajudar a levar o caixão. Mas como o senti pesado, embora minha irmã fosse tão leve em sua beleza esbelta, em sua espiritualidade alegre. Acho que ele me pesou na alma, porque eu sabia que aquela era uma viagem de onde não se regressa jamais. A não ser na saudade dos que nos amam, dos que sentem a nossa falta.

 

Certamente por isso, meu pai mandou gravar numa placa, que contém a imagem de seu rosto eternamente jovem, os imortais versos de Da Costa e Silva: “Saudade! Asa de dor do pensamento!”  

17 de agosto de2010

domingo, 7 de julho de 2024

CROMOS DE CAMPO MAIOR - VI

Fonte: Google


CROMOS DE CAMPO MAIOR


Elmar Carvalho


           VI

 

Festejo de

Santo Antônio do Surubim:

sob as estrelas do céu

sob as estrelas de lágrimas da pirotécnica

foguetes estilhaçam ruídos e silêncios

enquanto a bandinha do Antônio Músico

ataca com o (dobrado) Capitão Caçula

a fil(h)armônica do Antônio Músico

toca a valsa Coração Magoado

da autoria de seu pai

– Major Honório Bona Neto.

A bandinha do Antônio Músico

deflagra lentas valsas

                lânguidos boleros

                lépidas marchas

sob a batuta batuta

do seu filho Antônio Francisco

– maestro excepcional –

em sua cadei(a)ra de rodas.    

sexta-feira, 5 de julho de 2024

A CADELA, A ELEFANTA E O BURRO

 

Fonte: Google

A CADELA, A ELEFANTA E O BURRO


Elmar Carvalho

 

Nesta sexta-feira, 13, deste corrente mês, cujo dia seria dupla ou triplamente aziago, por ser sexta-feira, por ser dia 13, e por ser agosto, que os supersticiosos consideram mês agourento, enquanto esperava ser atendido pelo barbeiro e irmão maçônico Chagas Vieira, fiquei folheando um jornal de uma denominação religiosa.

 

Nele, li uma matéria sobre prótese em animais. Um dos casos se referia a uma cadela que, por causa de uma hérnia de disco, acabou perdendo o movimento das patas traseiras. Sua dona não a abandonou e não aceitou sacrificá-la. Envidou esforços, com considerável gasto de dinheiro e tempo, em tratamentos, que não surtiram o desejado efeito. Mas a guardiã da cadela conseguiu fosse feito um engenhoso aparato que lhe dava sustentação, e permitia que ela, com as patas dianteiras, se locomovesse, e até mesmo corresse, nos momentos em que se encontrava mais alegre e eufórica.

 

O outro caso abordado era o de uma elefanta, que tivera uma das patas dianteiras mutilada, por causa da explosão de uma mina terrestre, espalhadas por causa dessas guerras fratricidas e completamente insanas, como são todas ou quase todas as guerras. Cientistas conseguiram desenvolver uma prótese, semelhante às usadas pelos seres humanos, que lhe permitiram voltar a andar. O caso aconteceu quando a elefanta tinha apenas sete meses.

 

O fato é que os animais vêm sofrendo muito por causa das ações humanas, como desmatamentos, queimadas, caçadas, acidentes provocados pelo trânsito nas estradas, etc. Felizmente, além dos insensíveis, egoístas e perversos, que cometem verdadeiras atrocidades contra os nossos irmãos menores, existem os que são legítimos anjos da guarda dos animais, e lhes dispensam todo cuidado, carinho e amor, às vezes até com sacrifício pessoal.

 

Ao sair da barbearia, fui fazer minha caminhada. Quando retornava, vi um homem fazendo o burro que puxava sua carroça correr, ao girar o chicote. Suponho que o animal temia ser açoitado, e por isso seguia a galopar. Ora, depois de um dia inteiro de trabalho, em prol do sustento do carroceiro e de sua família, evidentemente já cansado das cargas que deve ter conduzido, ainda tinha que fazer um esforço enorme com a corrida, para que o seu dono se desse ao luxo de voltar mais rapidamente para casa.  

13 de agosto de 2010

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Encontrando Leonardo

Fonte: Google

 

Encontrando Leonardo

 

Paulo Silva (*)

 

      Para Diderot Marvignier   

 

   Antigamente, quando as férias escolares de fim de ano, no meu tempo de menino, aconteciam nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, passei todas elas na casa do velho Paraizo, para onde meu bisavô paterno se mudou em 1864. Já morando em Fortaleza, para onde minha família tinha se mudado, passei lá todas as minhas férias, a partir dos seis anos de idade. Viajava no ônibus da Viação Horizonte acompanhado de algum adulto que me deixava e voltava no dia seguinte.

   Tinha chegado no meu Paraiso terreno. Aquela casa de tantas gerações e tantas estórias era um universo de informações e aconchego. Naquele tempo, começo da década de sessenta, era habitada apenas por quatro mulheres de idade muito avançada.

   Adelina tinha origem africana e hábitos também. Pude observá-la com mais atenção nessa minha primeira e emocionante temporada sozinho com elas. Todos da família adoravam a temporada de julho na Pedra do Sal, praia. Dezembro era quando começavam as chuvas na Ilha. Surgiam os insetos que atraíam rãs e sapos, que atraíam cobras. Era preciso conhecer e saber com   o que estava se lidando. Foi lá o aprendizado pragmático que carreguei pelo resto da vida, até aqui.

   Ela tinha 101 anos. Usava tamancos de madeira que revelavam com som alto seu caminhar firme, mas arrastado. Fumava cachimbo com fumo de rolo que picava com uma faquinha que amolava sempre em uma pedra do pátio. Usava um grande bastão de bambu, maior do que ela, para se equilibrar, mas era também uma arma contra cachorros e vacas paridas. Cantava coisas que eu não entendia, pois não era português. Perguntei à nossa querida cozinheira Maria Area se ela estava caducando, que me respondeu que era porque falava a língua dos índios. Talvez não quisesse me dizer que era a língua dos escravos 

   Nessa época do ano, a partir de cinco da tarde, as nuvens de muriçocas saíam das moitas de jiquirí da beira do rio em direção à varanda da casa, que ficava insuportável. Todos os dias, um pouco antes, Adelina ia sozinha com um grande chifre cheio de bosta seca de boi e ficava fazendo fumaça com aquilo. A única maneira de se livrar das picadas. Contra as cobras, espalhava pedaços de couro de guaxinim na calçada da varanda.

   Viveu até os 108 anos. Em um desses anos que ia de férias para lá, apareceu uma impinge na minha barriga. Ela pediu para alguém pegar umas folhas de fedegoso. Macerou e passou na minha barriga. Uma semana depois, nenhum resquício do fungo.

   Fui aguçando minha curiosidade para aprender de tudo e me libertar de preconceitos.

   Maria Area era a mais nova das quatro, devia ter 78 anos, a cozinheira da casa. Minha queridíssima dona Maria. Adorava todas as comidas que fazia, principalmente porque montava o cardápio do dia baseado no que eu queria comer. O que me encantava nela era a generosidade dela com meus amigos, parceiros dos banhos de rio, das guerras de baladeira, de torear vacas paridas. Quando convocado para o almoço às onze em ponto, não queria deixar meus amigos sem ter o que comer voltando para suas casas. Ela já havia triplicado a comida e tudo que se comia dentro de casa eles comiam também. Criança, não tinha cacife para ir comer com eles. Aprendi com ela algumas receitas que repito até hoje.

   Inácia tinha 82 anos. Nossa querida Dadá. Era a governanta da casa. Dentre as várias funções que exercia, a mais importante era a de ter dado continuidade ao Terço diário às 18 horas na sala principal da casa, o que lhe conferia autoridade sobre todos os membros da família. Esse gesto religioso tinha sido iniciado por Evangelina Rosa durante a Segunda Guerra Mundial, pedindo proteção para os dois netos ingleses em situação de perigo na África e na Índia. Continuou acontecendo até que a última moradora da casa antiga   tivesse morrido. Ela própria.

   Era o único momento do dia que eu perdia a alegria. O lusco-fusco da hora já criava um clima melancólico. Vários adultos com terço na mão repetindo a oração como uma cantilena triste em busca de salvação de suas almas e de perdão dos seus pecados. Os retratos dos antepassados já falecidos na parede daquela sala sobre os quais eu ouvira relatos de como havia sido suas vidas. Para completar, era exatamente nessa hora que uma fanhosa "radiadora", levantada no outro lado do rio no bairro da Coroa, começava outra cantilena. Poste de madeira e alto-falante pequeno para o volume que colocavam, distorcendo o som sempre com a mesma abertura: "Mulher tu deixaste a moradia pra viver de boemia, foi viver num cabaré. E eu pra não morrer de tristeza..." Era tétrico.

   Maria Clara tinha 86 anos e era a dona da casa, posto que era filha do Capitão Claro. Era a única de toda a família a chamar a Dadá de Inácia, mas em nenhum momento tirava a autoridade dela na gestão da casa. Dadá a tratava por dona Iaiá.

   A vida da casa começava cedo. Às quatro da manhã, a bezerrada mugindo anunciava a movimentação dos funcionários da cocheira para a primeira tirada do leite. A cocheira para duzentas vacas de leite ficava a cerca de trinta metros da cozinha antiga. Era como se estivesse dentro de casa. Pulava da rede, colocava minha primeira calça comprida jeans e botas, o que me fazia sentir um cowboy do cinema. Com minha caneca saborizada de açúcar e canela, tomava o morno leite direto da vaca para a caneca.

   Com o dia amanhecendo, a melhor parte. Acompanhar um dos cocheiros conduzindo as vacas para o ótimo pasto da Sorocaba e na volta o galope livre disparado no meu pequeno rosilho, que corria de volta à cocheira. Daí pra frente, futebol, banho de rio, pescaria, guerra de baladeira e tudo que era possível inventar até as 10 horas. O almoço era religiosamente servido às 11 horas.

   Por ser o único entre as quatro, tive o privilégio de ter acesso ao escritório do meu avô onde ficava sua biblioteca. Maria Clara, irmã dele, me confiava a chave mediante promessa de não estragar nada. Costumava pegar quatro a cinco livros e ir me deitar na varanda da frente lendo até as 16 horas. Ganhava o mundo e as estrelas através dos livros. Foi quando tomei conhecimento do genial Leonardo de Nossa Senhora das Dores Castelo Branco.

   Durante os vários anos que continuei indo até a adolescência, pude ler muitas coisas. As que não gostava, mas lia. As que gostava e separava para ler de novo no ano seguinte. E as que não entendia, como os sermões de Antônio Vieira, mas lia.

   Certa vez me interessei pela escrivaninha dele onde havia coisas pessoais como sentenças, crônicas que não publicou, o rascunho da primeira liga de futebol organizada e com regras do país, a Liga Parnaibana de Futebol, criada por ele. Também dois envelopes grandes, um deles endereçado ao primo e cunhado Antônio Tavares, de São Luis do Maranhão. Dentro tinha uma das obras escritas por nome Leonardo da Senhora das Dores Castelo Branco, A Criação Universal. Ao abri-lo, encontrei um manuscrito em letras esculturais feito em caneta tinteiro pelo meu avô. Tratava-se do termo de proclamação da independência do Piauí, datado de 24 de janeiro de 1823, quando Leonardo retomou a cidade de Piracuruca da tropa deixada por Fidié. Vasado nesses termos:

"Queridos irmãos brasileiros que habitais a rica Província do Maranhão e especialmente os moradores das fronteiras desta até agora infeliz Província do Piauí, acho que malignas e espessas nuvens ofuscam as luzes do vosso entendimento. Pois vós sois brasileiros e recusais a obedecer ao Sr. D. Pedro, Imperador Constitucional do Brasil e seu Perpétuo Defensor?

   Não sois europeus e seguis o seu partido com perigo evidente da vossa vida e com perda de vossa honra. Ah! Onde está o brio, o patriotismo brasileiro! Onde a honra e onde o dever? O meu coração se vê dilacerado pelo pungente punhal da mais intensa dor... Irmãos, irmãos! Quereis ter o desonre de que a força exija de vós e por violência obtenha o que dever, a Honra e o patriotismo em vão, até agora, vos têm tão instante cordial e docemente requerido e rogado! Que lástima! Que afronta! Que vergonha! Persuadido! A dor me embarga as vozes do sentimento, apenas respiro, quereis que a vossa adesão à nossa santa e comum causa seja obra da força! Sereis satisfeitos. Ei-la: ela se apresenta. Um pé de exército de quatro a seis mil homens já deve ter feito em Oeiras o que cedo vereis em vós. Outro de dois a três mil vai fazer o mesmo em Campo Maior. Um corpo de observação de quinhentos a setecentos homens se acha na Barra da Amarração para conter o inimigo, a quem inquieta com contínuas correrias pela costa. Todos estes trazem todos os petrechos de guerra e várias peças de campanha, que tornam formidáveis as suas forças. Além desses corpos, um batalhão ligeiro de índios e brancos de mais de seiscentas praças, destinado a cortar as relações do inimigo com o sul da província, a impedir a reunião de novas tropas, já se fez senhor de Piracuruca, e do seu grosso Presídio apavorando-se do seu numerosíssimo avante ali plantou o seu quartel comandante pela voluntária reunião dos povos circunvizinhos no curto espaço de três dias tem visto crescer ao duplo dos seus soldados. Obtida a possível reunião dessas forças mencionadas, seguros da vitória, marchamos alegres a desalojar o nosso tirano déspota do seu último e mal seguro asilo.

   Ele não ignora a sua fraqueza; a deserção atual de suas tropas aumenta o temor. Consequente a esse conhecimento, o seu pesar se patenteia em três cartas escritas aos seus amigos de Campo Maior e Oeiras e com um ofício dirigido às autoridades de Caxias, pedindo socorro: todos esses papéis nos vieram às mãos por terem nossos soldados tomado ao correio. Concluída essa expedição, o que esperamos em brevíssimos dias, a não termos mais o que fazer, exultando de gosto, por sermos os instrumentos de liberdade de nossos irmãos, cantando alegres hinos ao Senhor dos Exércitos, entre os vivas e aclamações, ufanos entraríamos em nosso país natal, cheios de uma nobre e generosa vaidade. Esses são os nossos desejos; mas se os nossos fascinados irmãos do Maranhão, persistirem teimosos em fazer a facção política do grande Império Brasilico, rebeldes aos decretos do nosso Augusto e Amado Imperador, acaso devemos consenti-lo? Não e mil vezes não, primeiro derramaremos a última gota do nosso sangue. Ah! Queridos e enganados irmãos, que é o que temeis? E o que é o que esperais? Temeis as forças do miserável Portugal, esgotadas com as contínuas levas de soldados pelo sul do Brasil, onde todos têm sido sacrificados à Deusa da Liberdade Brasiliense, esmagando suas cabeças com a mesma vara de ferro com que pretendiam subjugarmos. Este magnânimo e liberal exemplo nos tem dado aqueles nossos intrépidos irmãos de dezesseis províncias, desde além Prata até os limites ocidentais do Ceará, proclamam a liberdade e prestam gostosa obediência a D. Pedro. Não temeis essas forças muito superiores às vossas e existentes no vosso próprio continente e, confiantes, temeis as de Portugal tão remotas e apoucadas? Que estranha mania! Passando em silêncio os poderosos socorros que nos prestam várias nações do continente europeu e americano, vamos analisar o que é que esperais: oferece-vos, grandes vantagens à dependência servil de Portugal, com tudo e por tudo; e não encontrareis nenhuma no comércio franco e liberal com todas as Nações? Torno a dizer: que estranha mania! Irmãos! Com que os exarais um procedimento tão alheio do senso comum e honra brasileira? Porventura vos decides sobre a vossa futura felicidade pelo que ledes nas lodosas páginas do “Conciliador”? Ignorais que o seu redator é europeu e, por isso, nos oculta o conhecimento dos fatos que fazem o nosso bem e aprovam o direito inalienável e decidida razão com que proclamamos a nossa independência? Ele nos chama de facciosos, perjuros, incendiários. Ele nos faz estólidos e iludidos agentes do velho despotismo. Ele afirma que o partido europeu é atualmente no Brasil quase universal. Que mentira! Que blasfêmia política! Proclamamos a constituição a par da independência; elegemos Deputados das Cortes Brasileiras e estes se estão reunindo, o nosso Imperador aclamou-se constitucional. Continuamos a conservar e eleger governos provisórios: todas as questões se decidem pela maioria de votos: Eis aqui o nosso provável será disso, que o padre Tesinho chama despotismo? A que pois chamará ele Constituição? Quanto aos exemplos de consciência que este senhor conta que tais e outros iguais nos metem, não é mais que um pretexto próprio só para enganar gentes rudes que ignoram qualquer contrato que contém condições ou são expressas ou ocultas, faltando esta, não tem valor aquele. Isto vemos no mesmo que a respeito de Adão, e vê-se nos casamentos e outros contratos de qualquer natureza que sejam.

   Que vos falta, pois, queridos irmãos? Que vos impede os passos? Que vos prende a língua? Ah! Gritai, gritai comigo:

 Viva a nossa santa religião!

 Viva a futura Constituição Brasileira!

 Viva o Sr. D. Pedro I, Imperador Constitucional do Brasil e seu Perpétuo Defensor!

 Viva a nossa santa Independência!

Vivam todos os brasileiros honrados, briosos e intrépidos!

Do vosso patrício Secretário e Ajudante da expedição de Piracuruca, no quartel da mesma a 24 de janeiro de 1823. Leonardo de Carvalho Castelo Branco

   Por tudo que está escrito nesse manifesto, é possível entender porque a Coroa Portuguesa o considerava uma perigosa ameaça. O homem mais “perigoso” agindo em território do Piauí, sendo decretada sua imediata prisão. Só não havia como. Leonardo, à frente de sua tropa do outro lado do rio, jamais se deixaria prender.

   Esse manifesto complexo e abrangente traz à baila muitas revelações. A de que a situação era crítica e perigosa para os que ousavam desafiar a Coroa Portuguesa, tanto que foi preso e condenado à forca. Demonstra a confiança de poder enfrentar a artilharia pesada de Fidié, pois a retirada estratégica para comprar armas e munição no Ceará permitiria equilibrar as forças   para derrotar as tropas do Governador das Armas, com a missão de garantir a Província do Maranhão e a do Grão Pará para a Coroa Portuguesa. O Piauí iria junto, pois era parte do Maranhão, desde o decreto do Marques de Pombal em 1772.

   Leonardo era um gênio na expressão máxima da palavra. Um líder nato e formidável estrategista, guerreiro por excelência e instinto. O manifesto revela ainda sua paixão pela causa da independência e fidelidade absoluta a D. Pedro I, o que sugere que ele não tinha conhecimento do que foi, de fato, o movimento na câmara de vereadores de Parnaíba. O 19 de outubro ia muito além do apoio à causa da independência.

   Grande conhecedor de mecânica, física, astronomia, atento observador dos fenômenos naturais, Leonardo tinha a intuição e curiosidade espacial e a lógica empírica dos gênios como Nikola Tesla, Newton, Santos Dumont ou Alexandre de Gusmão. Foi o primeiro cientista brasileiro a descrever as abelhas nativas sem ferrão. Desenvolveu e construiu vários inventos úteis para o cotidiano da época, como um grande pilão com reduções até a manivela para triturar grande quantidade de milho ou descascar arroz. Construiu uma canoa de madeira com palhetas na popa movida a pedal, que atingia grande velocidade. E entre vários outros inventos, o mundialmente tentado moto contínuo, jamais conseguido até hoje pela impossibilidade termodinâmica. Mas acreditava poder resolver esse desafio, que seria a maior revolução tecnológica do planeta. Reclamava de perseguição política por nunca ter podido experimentar com equipamentos necessários para as tentativas nos diversos modelos, embora tivesse tido algum apoio de Dom Pedro II. À luz da tecnologia atual, o máximo que se conseguiu foram as baterias de longa vida à base de lítio carregadas por energia solar.

    Leonardo Castelo Branco era um visionário cem anos à frente de seu tempo, cuja mente carregava uma usina de ideias e o coração um combatente revolucionário, destemido, carismático, entusiasmado e comprometido.

   Garantida a integridade do território brasileiro pelos acontecimentos no Piauí e rendição de Fidié no cerco ao Morro do Alecrim, no Maranhão, o Imperador Dom Pedro I indicou Simplício Dias como primeiro presidente da província do Piauí, considerando a importância de seu domínio do comércio e navegação com a Europa. No entanto, ele declinou, escondendo o verdadeiro motivo de sua recusa.

    Por influência de parentes importantes no Maranhão, foi indicado então Manuel de Souza Martins.

 Grato, manteve-se fiel à causa da Independência e a Dom Pedro.

   Somente em agosto de 1824, o brado do 19 de outubro em Parnaíba se revela na totalidade. A luta intestina da Maçonaria na construção do Estado Nacional.

    João Cândido de Deus e Silva e Simplício Dias anunciam adesão à Confederação do Equador e deixam evidente a luta entre monarquistas e republicanos.

   Luta de vida e morte, onde muitos foram julgados e fuzilados. Só então a mente privilegiada de Leonardo foi informada da motivação da causa e imediatamente já fez pulsar o coração do carismático líder guerreiro, declarando-se defensor da República.

   Conhecedor de sua capacidade de liderança, Manuel de Sousa Martins decreta sua imediata prisão.

  Levado para a cadeia em Oeiras, sofreu várias humilhações durante um ano, até ser mandado para julgamento em São Luís e, quem sabe, ter o mesmo destino dos líderes de Pernambuco e Ceará, fuzilados em praça pública.

   A interferência do Dr. João Cândido de Deus e Silva e a confraria de Coimbra, funcionando como universidade desde 1290, e os contemporâneos de Gonçalves Ledo, denominado na Maçonaria como "Diderot", o livraria da condenação, da cadeia e do possível fuzilamento.

O esfacelamento do movimento em Pernambuco e no Ceará, levou ao arrefecimento de   Leonardo, que se recolheu com a   família em sua fazenda, ate morrer algum tempo depois. Encerraria ali a   luta da maior personalidade de toda a história do Piauí.

   Estava em construção um livro que jamais foi escrito por nenhum historiador e lhe dava o reconhecimento na dimensão que um gênio com tantas habilidades e criações deveria ter. O grande historiador Diderot Marvignier o escrevia há anos. Tinha método, organização cuidadosa e preocupação em chegar às fontes primárias e aos documentos. Nessa empreitada, ajudei-o no que pude. No que encontrei em sebos de Fortaleza, Brasília, Lisboa e Porto, além de opiniões e comentários de historiadores portugueses meus amigos.

   Pelo que conhecia de Diderot por mais de cinquenta anos, dali sairia uma obra-prima. Séria, consistente, verdadeira. Ele sentia ojeriza aos que assacavam ofensas aos heróis da Pátria, se auto-intitulando historiadores, cuja preguiça e limitações intelectuais não lhes permitiam ir além do que escrever sandices ao sabor de suas frustrações pessoais e trejeitos patológicos. E desprezo pelos que queriam mudar as verdades históricas para atender a caprichos e vaidades regionais, sem provar com documentos e fontes primárias.

   Entre todos os hinos oficiais, é o da independência o que mais gosto. Quando ouço o trecho “Ou Ficar a Pátria livre, ou Morrer pelo Brasil,” é de Leonardo que me lembro. E todas as vezes que ler ou ouvir o nome Leonardo da Senhora das Dores Castelo Branco, será do meu querido amigo Diderot Marvignier de quem me lembrarei eternamente.

(*) Constituinte de 1988.