quarta-feira, 30 de setembro de 2020

As escaramuças e garatujas de Carlos Rubem

Prof. Welington Soares, Gutemberg Rocha e Elmar Carvalho
De baixo para cima e no sentido horário: Welington Soares, Gutemberg Rocha, Olavo Pereira da Silva Filho, Carlos Rubem e Elmar Carvalho, no lançamento da 2ª Edição do livro Sonetos & Retalhos de Gerson Campos, ocorrido no dia 13.09.2013. 
Em tempos idos e vividos, na solenidade de lançamento de meu livro Lira dos Cinqüentanos, quando eu tinha exatamente cinquenta anos. Foi o primeiro lançamento de livro ocorrido no espaço cultural Solar das 12 Janelas.



DIÁRIO 

[As escaramuças e garatujas de Carlos Rubem]

Elmar Carvalho

30/09/2020

Neste últimos dias, recolhido por causa da quarentena, aproveitei para escrever um longo prefácio para o livro Acordo de Oeiras e outras garatujas, de Carlos Rubem. Não preciso dar maiores explicações porque nele tudo está devidamente explicado. Assim, sem delongas e sem nenhuma excrecência, segue abaixo o meu texto, que passa a integrar o vertente Diário destes tempos de pandemia e pandemônio:

 

As escaramuças e garatujas de Carlos Rubem

 

1

Conheci Carlos Rubem em agosto de 1989, em Oeiras, quando, na qualidade de presidente da União Brasileira de Escritores do Piauí – UBE-PI, promovi o III Encontro de Escritores do Piauí. A esse evento compareceram importantes literatos piauienses, entre os quais, salvo eventual falha de minha memória, Francisco Hardi Filho, Francisco Miguel de Moura, Rubervam Du Nascimento, Júlio Caribé, Adrião Neto, José Pereira Bezerra, Ivanildo de Deus, etc.

Como um dos pontos altos do Encontro, haveria uma palestra sobre a imprensa oeirense, a ser proferida pelo médico e escritor Expedito Rêgo. Posso testemunhar que foi uma bela conferência, feita por escrito, com muitas informações e dados históricos precisos. Era um texto profundo, sem dúvida elaborado através de muito trabalho de pesquisa, e que daria um belo opúsculo, que elucidaria muitos fatos obscuros da história da imprensa no Piauí.

Não sei que fim levou essas laudas escritas e lidas por Expedito Rêgo, romancista, poeta e cronista, que um pouco depois viria a integrar, como membro efetivo, a Academia Piauiense de Letras. Sei que Carlos Rubem, já então Promotor de Justiça, o cercou de muitos cuidados, e mesmo respeitosa reverência. O Promotor de Justiça, como no decorrer destas linhas se verá, com o passar do tempo, se tornou também um grande promotor de eventos culturais, de livros e de memoráveis e importantes campanhas em defesa do patrimônio histórico e artístico, não só de Oeiras, mas de outras paragens piauienses.

Posteriormente, vim a saber que Carlos era seu afilhado, através de sacramento católico, embora o padrinho se declarasse agnóstico. Anos mais tarde, em conversa, senti que ele não tinha Fé, mas parecia buscá-la, quase com sofreguidão. Tive conhecimento que, por ocasião de sua doença e morte, ele se reencontrou com Deus, do qual, na verdade, nunca esteve afastado, pois era um homem digno e bom.

Numa das manhãs do Encontro de Escritores, o Carlos Rubem nos levou em comitiva para visitarmos o grande compositor, músico e escritor Possidônio Queiroz, uma de suas mais entusiasmadas admirações. Foi engraçada essa visita, porque, quando o mestre da oratória e de maviosas valsas, veio para a sala, trazia o seu aparelho auditivo numa das mãos, e foi logo nos esclarecendo que sem ele nada ouvia. Por isso mesmo, não foi interrompido em sua longa e erudita conversa, na verdade um monólogo. E isso terminou sendo algo positivo, porque saímos mais enriquecidos com a sua atraente e cultural prática, como se dizia outrora.

Peço licença ao autor, para abrir um pequeno parêntese, e transcrever um pequeno trecho de crônica de minha autoria, em memória e como uma homenagem ao grande Possidônio Queiroz:

“Vi o Bruxo Velho de Oeiras, como o cognominou Carlos Rubem, em bela e brincalhona alusão ao epíteto de Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho, pela derradeira vez, no Cine-Teatro Oeiras, quando do lançamento de seu cd Valsas Piauienses, em que se apresentou a Orquestra de Câmara de Teresina, sob a regência do maestro Emmanuel Maciel. O mestre Possidônio, surdo, colocava a cabeça dentro das cavidades das caixas amplificadoras, na ânsia inglória de escutar as sublimidades que ele próprio criara. Lembrou-me Beethoven, sem poder ouvir a música extraordinária que produzira e nem os aplausos delirantes que o seu gênio divino arrancava.

Lembrou-me, também, os versos de Drummond: ‘Era meu avô já surdo, / querendo escutar as aves / pintadas no céu da igreja’. E a música do sacerdotal Possidônio era como uma catedral soberba, que tudo envolvia, em que éramos os crentes e o culto era o êxtase dessa música celeste.”

Ao longo de minha vida, participei de diversas solenidades culturais em Oeiras, a convite de entidades culturais ou de amigos, entre os quais cito Carlos Rubem, Antônio Reinaldo Soares Filho e Ferrer Freitas. Por solicitação deste último, escrevi um trabalho de crítica literária sobre a mais recente obra de Expedito Rêgo, o romance Vidas em contraste.

Um pouco depois, em nome do Instituto Histórico de Oeiras, o nosso bravo Carlos Rubem, um verdadeiro Dom Quixote da cultura oeirense, divulgou, organizou e promoveu o seu lançamento em Oeiras, cuja solenidade aconteceu na noite do dia 31 de outubro de 1992, no espaço cultural do Café Oeiras, perto do velho e bonito coreto do Passeio Leônidas Mello. Por causa do meu texto, creio, publicado no jornal O Dia, fui convidado para ser o seu apresentador.

Quando o evento terminou, ficamos conversando alguns amigos, entre os quais, se não me falha a memória, o autor do livro, Ferrer Freitas, Carlos Rubem e o professor Balduíno Barbosa de Deus, ex-secretário de Educação do Estado do Piauí, oeirense e muito amigo de Expedito, que fora meu professor no curso de Direito (UFPI). Das tantas para as tantas, para minha surpresa, o velho mestre disse que eu fora um de seus melhores alunos.

Foi uma cortesia e generosidade sua, porque eu trabalhava, já era pai de dois filhos e confesso que pouco estudava, a não ser às vésperas da prova. Incontinenti respondi: – É bondade do professor Balduíno; ele é que foi um dos melhores professores que já tive. Não bastasse essa cortês troca de confetes, mais adiante, após eu haver dito que queria assistir à sua apresentação do livro em Teresina, o saudoso mestre, invocando Camões e apontando para mim, exclamou: – Cesse tudo que a antiga musa canta, que outro valor mais alto se levanta.

Não me dei por achado, e de bate-pronto, apontando direto para o seu coração, retruquei: – Levanta-se, mas apenas para aplaudir o Mestre! Balduíno sorriu, balançando a cabeça, como se dissesse que eu não tinha mesmo jeito. Em seguida, caminhou em direção à Praça das Vitórias e sumiu na noite oeirense, para nunca mais revê-lo. Poucos dias depois soube de sua morte, vítima de fatal acidente automobilístico.   

 

2

No começo de minha carreira, quando fui juiz substituto na longínqua Comarca de Socorro do Piauí, durante três meses, no começo de 1998, passava por Oeiras no começo de uma semana e no final da seguinte, quando retornava a Teresina, onde minha família residia. Algumas vezes, no centro histórico da velha capital, encontrava o Carlos Rubem. Entretínhamos breve conversa, a reforçar nossa amizade, e eu prosseguia em minha demorada e um tanto penosa viagem, em meu pequeno e valente Fiat Palio verde.

Foi exatamente nesse tempo em que exerci a magistratura na pequenina, quase insulada e bucólica urbe, que quiseram borrar o antigo calçamento oeirense com o breu feioso de asfalto. Carlos se insurgiu contra isso e desenvolveu uma forte campanha contra essa indesejável agressão contra o patrimônio de sua terra natal. O calçamento do centro de Oeiras fora feito com uma técnica antiga, com a utilização de pedaços de laje, e não com blocos de pedra, como nos dias de hoje. Portanto, era algo que já se encontrava agregado à paisagem arquitetônica dos vetustos solares e sobrados. Pediu-me publicasse uma matéria contra essa verdadeira barbárie e quase vandalismo praticado pelo Poder Público, que exatamente deveria zelar pela conservação e restauração do velho calçamento. Escrevi uma crônica, em que pretendi imprimir um toque de arte e emoção. Espero ter alcançado o meu objetivo.

Em outra ocasião, creio que no início dos anos 1990, quando o antigo sobrado, que fora outrora Casa de Câmara e Cadeia, começava a se transformar numa quase ruína, o intrépido defensor do patrimônio oeirense, mais uma vez, me pediu escrevesse algo a respeito. Esse sobrado, como seu nome indica, fora nos tempos provinciais a sede da Câmara, vale dizer do governo local, e sede da cadeia pública; mais adiante, quando Oeiras não era mais a capital do Piauí, foi adquirido pelo coronel João Batista Ferraz, que o modificou e lhe fez adaptações, como nos informa o primoroso livro Passeio a Oeiras, de Dagoberto Carvalho Jr. Tive a honra de  ser o prefaciador de sua esmerada 6ª edição, cuja capa ostenta o velho e belo solar assobradado.

Mais uma vez atendi ao pedido do nobre paladino das coisas de Oeiras, e fiz uma crônica em que dizia que se providências urgentes não fossem tomadas, o antigo sobrado, que já servira ao Poder Público, em que pontificaram os vereadores do velho Senado da Câmara, que já fora casa residencial, e que por isso ficara com o nome de Sobrado dos Ferraz, em homenagem ao velho coronel, que o comprara, que já abrigara escola e que, por último, se tornara a sede do Círculo Operário, fatalmente se transformaria em escombros.

Acrescentei que suas vigas já ameaçavam despencar, que suas paredes já se encontravam gretadas, cheias de fissuras, que o velho solar se encontrava acometido pelos achaques das intempéries e do tempo. O certo é que essa campanha do Carlos Rubem foi empreendida também por outros intelectuais, com reivindicações e sugestões em textos literários, entre os quais o amigo e confrade do Instituto Histórico de Oeiras e da Academia Piauiense de Letras Dagoberto Carvalho Jr., e se tornou vitoriosa com a restauração do velho e histórico sobrado, que se transformou na bela sede da Prefeitura de Oeiras.   

Uma das mais importantes lutas encampadas pelo autor foi a sua campanha em prol da conservação e restauração do prédio da Fábrica de Laticínios de Campos, hoje Campinas do Piauí. Por décadas, desde que assumiu a Promotoria de Justiça da Comarca de Campinas do Piauí, que ele vem clamando, quase como um novo profeta a clamar no deserto das incompreensões e do descaso, e mesmo do menosprezo e do sarcasmo, para que essa antiga, imponente e bela construção não venha a cair, posto que já está quase em ruínas. Graças ao seu esforço alguns remendos e escoras foram feitos, de forma precária e provisória.

Sobre esse sonho do engenheiro Sampaio, hoje de fogo morto e quase apenas a sombra ou o escombro do que foi outrora, em minha crônica Expedição ao Sertão Colonial, publicada na internet e na Revista da Academia Piauiense de Letras (2019), tive o ensejo de dizer:

“De mulheres idosas, nas quais ainda remanesce um pouco da antiga e gloriosa beleza, dizem os ironistas e sarcastas, entre os quais não me incluo, que são uma bela ruína. Mas a fábrica de laticínios do engenheiro Sampaio, bastante deteriorada, é mesmo uma bela e imponente ruína, a um passo de se tornar escombros, quase uma imensa tapera, no meio de construções novas e de uma quadra esportiva, que lhe encobre a fachada, ainda majestosa apesar da incúria do poder público.”

O sonho de Antônio José de Sampaio foi um sonho malogrado, porque, a meu ver, ele cometeu graves erros de perspectivas financeiras, econômicas e, sobretudo, de logística, conforme explicitei no mesmo texto:

“Levar esses pesados equipamentos e peças, no final do século XIX, de Floriano até Campos (hoje Campinas do Piauí) foi um trabalho hercúleo e uma verdadeira epopeia, como bem disseram os escritores Luís Mendes Ribeiro Gonçalves e Reginaldo Miranda, ambos da Academia Piauiense de Letras. Sem dúvida, os entraves burocráticos, as dificuldades financeiras enfrentadas pelo engenheiro Sampaio, e a condução das partes desmontadas da fábrica, em longo trecho de precárias estradas carroçáveis, enfrentando atoleiros de lama e areais, atravessando rios e riachos, dariam um belo filme épico. Para que fossem vencidos esses atoleiros usavam peles bovinas, sobre as quais passavam as ringidoras rodas de madeira. Em alguns trechos teve de abrir estradas, quebrar morros e construir pontes e pontilhões. Dezenas de bois morreram, extenuados, nessa penosa jornada.

(...)

Mas, além de todos esses percalços econômicos, financeiros, de transporte, de pessoal, e burocráticos, que tiveram de ser enfrentados, como dito acima, a meu ver o maior problema foi o da logística. Ora, havia a imensidão de terra e o gado pé-duro, adaptado à criação extensiva. Mas para o leiteiro talvez houvesse a necessidade de ração, medicamentos e outros insumos, que teriam de vir de muito longe. Teria que haver consumidores para os produtos da fábrica, que não estavam na região, que então era deserta ou de desprezível densidade demográfica, como ainda hoje o é.”  

A voz de Carlos Rubem continua a reboar, clamando pela restauração do prédio da velha fábrica, cuja chaminé, que já não fumega há várias décadas, está em quase completa ruína, mas agora parece ter encontrado ressonância nos ouvidos de Valdeci Cavalcante, que promete fazer a sua restauração, desde que seja feito um simples contrato de cessão de direito real de uso em favor da Fecomércio do Estado do Piauí.

Dando por finda esta parte de meu prefácio, devo dizer que o cavaleiro andante destas garatujas e prosopopeia ainda se envolveu em várias outras escaramuças e guerrilhas culturais, de que não irei falar, entre as quais uma que tinha como meta fazer a imagem original da Senhora da Vitória, que se encontrava em poder de um cidadão, voltar a ser entronizada na Catedral oeirense de sua invocação, de onde nunca jamais deveria ter sido retirada. A luta sacra, com a ajuda de vários combatentes, foi vitoriosa, e hoje a escultura sagrada se encontra em seu altar (no Museu de Arte Sacra de Oeiras).

 

3

Ao longo dessas décadas de amizade, pude acompanhar o devotamento de Carlos Rubem às coisas de Oeiras, fossem elas do patrimônio material ou imaterial. Assim, a música, a pintura, o artesanato, o esporte, os costumes, a arquitetura, os velhos logradouros, becos, ruas e vielas tortuosas estiveram no centro de sua preocupação e defesa intransigente.

Quando em 1990 o grande poeta Nogueira Tapety completou o centenário de seu nascimento, Carlos, com seu esforço pessoal, deu ampla divulgação a essa importante efeméride literária. Conseguiu a publicação do livro Arte e Tormento e de um lindo e grande cartaz em que se encontrava estampado o sublime soneto Senhora da Bondade, que sei de cor, e que sempre me emociona e enternece. Me solicitou escrevesse um trabalho de crítica literária sobre a poesia desse notável bardo piauiense. Tive o prazer de lhe atender ao pedido, embora não me considere propriamente um crítico. Esse pequeno ensaio foi publicado em jornal de Teresina e na Revista do Instituto Histórico de Oeiras – IHO, de que me tornei mais tarde sócio correspondente, bem como do qual recebi a Medalha do Mérito Visconde da Parnaíba, outorgada pelo presidente Dagoberto e recebida no início da gestão de Antônio Reinaldo.

O cartaz com o poema Senhora da Bondade foi afixado em várias repartições públicas e casas bancárias e comerciais da cidade de Oeiras. Isso gerou um fato anedótico, porém verídico, que não resisto à tentação indiscreta de contar. Um casal, que residia há muitos anos distante de Oeiras, estava passando uns dias na velha capital.

Num de seus vários passeios, adentrou uma farmácia, onde estava afixado em lugar bem visível e de fácil leitura o cartaz. A mulher, tomada de forte e perceptível emoção, o leu atentamente. Ao final, com a voz embargada e cheia de indignação, vociferou: – Mentiroso, marido mentiroso, você sempre me disse que esse poema era de sua autoria, e que você o havia feito em minha homenagem!... Agora, vejo que é do poeta Nogueira Tapety. O homem, trêmulo, amarelou, e sentindo, talvez, forte vergonha e remorso, tratou de deixar o recinto em passos apressados e sorrateiros.

Posteriormente, graças em grande parte a seu esforço, foi criada a Fundação Nogueira Tapety, que promove eventos, conserva a sede da antiga Fazenda Canela, onde nasceu, morou (em temporadas) e morreu o poeta, e que manteve um importante site cultural por muitos anos. Em 2013, essa Fundação promoveu o lançamento da belíssima 2ª Edição do livro Sonetos & Retalhos de Gerson Campos, cuja solenidade ocorreu no dia 13.09.2013, na época em que eu era o titular do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Oeiras.

Gerson, além de poeta, ator, radialista, repentista e performático, cometeu ainda a peripécia de ser um grande goleiro do Oeirense, a perpetrar defesas estilizadas e, às vezes, espetaculosas e espetaculares, à moda dos goleiros Higuita e Morcego. Ao lembrar o nome de Gerson como guarda-meta, não poderia cometer a irreverência de esquecer os nomes dos inesquecíveis goleiros Castanhola e Oscar Barros.

Em data que não sei precisar, mas igual ou anterior a 1994, compus o meu poema Noturno de Oeiras. Sei que foi nessa época, porque na primeira edição de Rosa dos Ventos Gerais se encontra o poema Noturno do Cemitério Velho de Oeiras, com a data de 13/14-10-1994, portanto há quase 26 anos. Não sei quem (não sei se Ferrer Freitas, ou eu próprio a pedido dele) encaminhou o poema Noturno de Oeiras ao oeirense Talver de Carvalho Mendes, advogado residente em Goiânia – GO.

O Dr. Talver, em agradecimento, me fez uma linda carta, em que falava, mostrando as diferenças, dos sons celestiais de bandolins e violinos. E me dizia haver sentido falta, no poema, dos bandolins de Oeiras, que tão maviosamente entoam as lindas valsas de Possidônio Queiroz. No ensejo dessa simpática instigação e cobrança escrevi o poema Noturno do Cemitério Velho de Oeiras, no qual em tons melancólicos e fantasmagóricos embuti os sons angélicos de inefáveis bandolins.

Entrei nessa digressão para dizer que desde que escrevi Noturno de Oeiras, que para honra minha caiu no gosto dos oeirenses, o Carlos Rubem se tornou um grande divulgador desse poema, nas mais diferentes ocasiões. Tratou de conseguir com o artista plástico Francisco Leandro umas belas ilustrações para ele, o que me facilitou conseguir a sua publicação em formato de álbum.

Depois, com a participação do ator Bonifácio, possibilitou que ele fosse encenado em diferentes oportunidades e locais, inclusive entre as naves severas da velha catedral de N. S. da Vitória. Graças a sua influência, a TV Cidade Verde fez um videoclipe dele, que se encontra postado no You Tube. Foi recitado por Gutemberg Rocha na 1ª Live Lítero-Musical Oeirense, da qual ele foi o apresentador, na qualidade de presidente da Fundação Nogueira Tapety.

Numa noite inesquecível, eu, o Carlos Rubem, o ator Bonifácio e uma outra pessoa, cujo nome não recordo, estivemos no alto do Morro da Cruz, de onde se vê todos os cantos e recantos de Oeiras. Então, eu sonhei que no alto daquele morro poderiam ser afixadas placas com poemas que exaltassem Oeiras, suas belezas naturais e arquitetônicas. Não sonhei só, porque o nosso autor passou a defender a realização desse sonho. Outro dia ele me disse que esse desejo continua vivo, e que ainda pode ser concretizado. Que os anjos cantores e poetas digam amém.

 

4

Já era o momento de pararmos de descrever e narrar as proezas e escaramuças do autor, senão seria um nunca acabar, pois são quase infindas, e dissertarmos agora sobre as suas belas “garatujas”, sobre a forma e conteúdo destas crônicas, escritas ao longo de algumas décadas e ao sabor de muitos acontecimentos e ensejos.

Sem preciosismos desnecessários, sua linguagem é escorreita, contudo sem excesso de zelo gramatical. Nada é redundante, pois o autor busca dizer apenas o essencial. Portanto, sua linguagem é exata, comedida, geralmente vazada em períodos curtos. Busca o autor a objetividade, a clareza e a síntese, como recomendam os melhores manuais de redação, mas sem deixar de lado a criatividade, eventuais chistes e as vivacidades da boa prosa.

Quando esposa alguma tese ou a defesa de alguma causa, sabe expor bem suas ideias, com a lógica e a razão, e, sobretudo, com forte capacidade argumentativa, talvez aperfeiçoada em sua função de Membro do Ministério Público. Entretanto, seus assuntos são sempre propícios a uma boa argumentação, porque sempre defendeu, enquanto intelectual e cidadão, as boas causas, as causas justas e de interesse da sociedade, e que, por isso mesmo, favorecem a fundamentação.  

Em muitas de suas crônicas trata de assuntos importantes da administração pública e da história de Oeiras, tendo como protagonistas ilustres figuras das letras e da política piauienses. Sem dúvida o seu foco não é propriamente a pesquisa histórica, posto que não se arvora de historiador, mas a simples e necessária divulgação de fatos e episódios importantes ou interessantes e curiosos.

Em outras, como deixei implícito ou disse às claras, discorre sobre os logradouros, prédios e ruas de Oeiras, seja para divulgá-los, enaltecê-los ou defendê-los da incúria de certos administradores públicos ou da maldade gratuita ou inconsciente dos vândalos. Seja como for, a preservação e conservação do patrimônio natural e arquitetônico oeirense é uma constante preocupação em sua vida de cidadão proativo e cultural.

Todavia, as crônicas não discorrem apenas sobre as notáveis personalidades da história ou da arte oeirenses, mas também sobre pessoas humildes, simples, e que foram (e são) importantes na paisagem humana da velha urbe; várias ainda estão vivas na lembrança de muitos, como Tiborão, João Rapadura, Dorete, Juarez Hilarião Cunha, vulgo Bamba... Dessa forma, tem procurado preservar a biografia dessas pessoas, não só através de suas crônicas, mas de fotografias e pequenos vídeos, que difunde através das redes sociais, de sites e do You Tube.

Portanto, nelas estão presentes os músicos, os loucos, os ébrios engraçados e espirituosos, os artesãos, os poetas populares, os comediantes do cotidiano e do improviso, mas tudo sem maldade e sem menoscabo, tudo revestido de uma legítima compreensão humana, de quem verdadeiramente sabe interagir com eles. Num desses vídeos ele gravou a arte quase perdida de uma mulher idosa a confeccionar belas e trabalhosas flores de papel. Essas criaturas do povo, de muitas das quais o livro estampa as caricaturas, se sentem honradas, dignificadas e valorizadas com essas referências e citações.

Compreendi que Carlos Rubem, de forma sincera, genuína, gosta de conversar com essas pessoas humildes, quando um dia me levou a conhecer o Hermínio, em sua quinta, em cujo quintal ele tinha um verdadeiro museu de carcaças de carros velhos, e em cuja casa ele tinha quase um viveiro de esvoaçantes morcegos, como se fossem suas “aves” de estimação. Dessa inesperada e inusitada visita, registrei o seguinte:

“(...) Fiz novo périplo turístico, ciceroneado por Carlos Rubem, em que tirei muitas fotografias desses inesquecíveis logradouros, e conheci as excentricidades mansas do Hermínio, que na busca utópica e inglória de montar uma pretensa oficina, construiu um verdadeiro museu a céu aberto de velhos carros, de automóveis que marcaram época, com suas carcaças enfiadas na areia, às vezes expostas ao sol inclemente do semiárido, às vezes protegidas pelas frondosas árvores da quinta, que me fizeram retornar no tempo, como se eu tivesse entrado no túnel do tempo de antiga ficção científica, ou atravessado um “buraco de minhoca”, como se fala, de forma algo bem-humorada, com pitadas de ironia, nas especulações quânticas da mais avançada física teórica.”

Muitos dos textos do livro são narrativas, quase contos, em que o autor relata casos curiosos, interessantes, jocosos, alguns anedotas verídicas, acontecidos com pessoas da cidade ou do município. Em vários ele é protagonista, ou simples observador ou narrador. Alguns aconteceram com pessoas de sua própria família. Sempre narram fatos interessantes, inusitados ou hilários. Entretanto, muitos têm por tema costumes antigos da cidade, como os cortejos fúnebres, as rodas de conversa, as serenatas, etc.  Falou também de futebol, festas e lazer.

Portanto, seu livro é uma importante fonte de pesquisa, para os historiadores em geral, sobretudo os que buscam informações da história recente, e da história social da velha metrópole.

Por tudo o que disse e pelo que a necessidade de síntese me impediu de dizer, considero Carlos Rubem um cavaleiro andante da cultura oeirense, um paladino das boas causas, em defesa do rico patrimônio natural, artístico e arquitetônico da velha Mocha, um guardião sempre vigilante da arte e da literatura de nossa invicta Oeiras de ontem, de hoje e de sempre.  

terça-feira, 29 de setembro de 2020

ARCA DE NOÉ I

 

Fonte: Portal Costa Norte


ARCA DE NOÉ I

 

Vitor de Athayde Couto

Cronista e ensaísta

  

– Eu vim da Bahia contar… – cantava o mico-leão-da-cara-dourada-da-mata-atlântica.

  

A assembleia dos bichos da Amazônia permanecia em silêncio. Mais atrás, os barés infiltrados filmavam o mico-leão, por determinação do Ministério do Desmatamento. O silêncio só foi quebrado quando Ching, um chimpanzé manauara, perguntou:

  

– Ô parente, tu que é meu primata, veio pra cá anunciar o quê? Quem te mandou de tão longe? Quem te pagou? Tu é anjo? Trouxe banana? Cocada preta?

  

Demonstrando seriedade e preocupação, o mico parou de cantar e anunciou:

  

– Quem me mandou aqui foi Mãe Divina de Oxóssi dos Ilhéus. Ela recebeu mensagem do orixá caçador, e de Ya-cy, protetora das plantas. O fim da Amazônia se aproxima. Bolas de fogo provocarão uma sucessão de incêndios incontroláveis que podem atingir até o Pantanal. Tá escrito no Apocalipse: quando a terça parte da floresta estiver queimando, o calor será tão forte que nenhum ser vivo será capaz de suportar. A roça de Mãe Divina já foi invadida, a mando dos zebuzeiros. Eles roubaram e drogaram o rebanho. O gado foi confinado nos templos para ser vacinado contra todas as vacinas. A matriz africana periga ser exterminada pela filial americana.

  

– E agora? E agora?!!! – gritaram todos.

  

– Muita paz. Serenidade. Confiança. Mãe Divina conhece e confia no irmão Ching. Ela mandou a gente se unir a ele no Hospício de São Boaventura.

  

– No hospício? – perguntou a assembleia, com surpresa.

  

– Sim. Lá, a Marinha Imperial instalou um arsenal, com suítes confortáveis em frente à praia da baía, e sinal de wifi. Só para os oficiais e suas famílias. Prontos para a guerra.

  

– Bah! Que guerra, tchê? – perguntou o ratão do banhado, descendente de farroupilhas.

  

– Ora… aquela guerra… contra o… o…

  

– Antônio Conselheiro?

  

– Não… não… a outra…

  

– Do Paraguai?

  

– Sim, isso mesmo! Obrigado, ratão. Já não me lembrava. Vi isso no curso fundamental.

  

– Iaí? Vamos ter que invadir?

  

– Não precisa, os oficiais vão fugir primeiro, abandonar tudo. Eles sabem que não vão conseguir controlar o grande incêndio de outubro. Nós vamos só ocupar.

  

– E depois? Podemos morrer queimados dentro do hospício e…

  

– Não, não é bem assim. Confiem na Natureza. Isso é só briga de santo. Bilhões de mosquitos já se dirigem à capital econômica do império. Faz um século, o hospício virou Arsenal da Marinha. Agora, vai ser a nossa oficina. Mãe Divina mandou construir uma arca bem grande que flutuará no rio largo durante 40 dias e 40 noites. Sobre as águas, longe das margens, todos que embarcarem estarão a salvo do incêndio. Levem redes, iscas, anzóis e abasteçam os porões com toda a mandioca desidratada que puderem carregar. Quando a maré baixa, a água do rio fica doce. Levem cabaças, pesos e cordas de cipó para puxar água. Ao fim dos 40 dias, esperem mais 150, até subirem as águas de março, que apagarão os “raios de abril”, e outras “causas naturais”, que “explicam” os focos de incêndio, segundo o serviço de “inteligência” (sic) do governo.

  

Os barés protestaram:

  

– Não vamos cooperar porque agora não há mais o que Temer – disseram.

  

Sempre se achando, os barés acreditam que, no Arsenal da Marinha, os oficiais guardam um grande estoque de glifosato e arminhas que protegerão os humanos do grande incêndio de outubro que vem por aí. Sem mais diálogo, abandonaram a assembleia.

  

(Continua) 

Julgamentos

 

Fonte: Viagem na Itália/Google

 Julgamentos

 

Carlos Henriques Araújo

Escritor, memorialista e cronista 

 

Todos somos juízes, juízes dos outros; nunca paramos para julgar nossas ações; ninguém gosta de ser julgado, mas a todo instante estamos julgando os outros. Por que é tão difícil ser feliz ou fazer alguém feliz, e tão fácil ficarmos tristes e magoar os outros? Por que rimos da topada dos outros, e logo depois sentimos pena pela queda? Por que é tão difícil dizer: eu te amo, mesmo quando se ama? Por que ficamos calados, quando no fundo gostaríamos de ter dito tantas coisas, mas só depois nos damos conta disso? Por que é tão difícil reconhecer nossos erros mesmos sabendo que estamos errados?

 

É mais fácil ser fiel, mas preferimos nos aventurar mesmo nos arriscando; não valorizamos o amor que temos, quando o perdemos, ficamos a lamentar; enxergamos um cisco no olho do outro e não percebemos uma trave no nosso; é difícil olhar as pessoas sem estar analisando-as e julgando-as; se a vemos num carro novo, pensamos logo: melhorou de vida ou o que é pior, está roubando; no fundo, não estamos seguros se ficamos alegres ou com uma réstia de inveja; se a encontramos indo a pé para o ponto do ônibus, achamos que está arruinada, falida;

 

 Fazemos que não a vemos para não lhe causar vergonha, ou oferecemos uma carona só para humilhá-la; não paramos de julgar os outros à luz dos preconceitos: se for desquitada, é fácil; se passou dos trinta e não casou, é coroa; se costuma ir à igreja é carola; se é rico, bonito, passou dos quarenta e ainda está solteiro, é bicha; se ficou rico em pouco tempo, é porque roubou; se é casado e começa a sair sozinho, está com problema no casamento ou se separando.

 

Por que não nos colocamos no lugar do outro para sermos julgados? Por que é tão difícil pedir perdão como também perdoar? Por que é tão fácil falar e tão difícil ouvir? Por que é tão difícil ajudar ao próximo mesmo quando temos de sobra? Por que nos indignamos e nada fazemos para mudar esta realidade, mesmo sabendo que agindo assim fazemos a diferença e estamos contribuindo para melhorar este mundo?    

domingo, 27 de setembro de 2020

Seleta Piauiense - Nelson Nunes

 

Fonte: Jovem Pan News/Google

  A MISÉRIA ABUNDA

 

 Nelson Nunes (1954)

 

       Neste instante em que escrevo

sob o sol

sob a lua

no meio da rua

uma criança envelhece comigo.

    

Oh miséria fudibunda

que não tem seios belos

nem sexo forte ou frágil

que parte em mil os espelhos

que em estilhaços vasam os vasos

que não têm mais sangue

nem água

nem alguma coar.

 

        Oh abundância miserável

que a bunda de tão pouca

nem bola nem rebola

que tem o coração na boca

que faz apodrecer a fruta-pão

que frutifica metais e cristais

que não metabolizam

nem cristalizam mais.

 

        Em minha mente neste instante

sob o sol

sob a lua

no meio da rua

o intestino do tempo

desenrola

quilômetros de vísceras vazias.


Fonte: site Antonio Miranda

sábado, 26 de setembro de 2020

Dirceu Arcoverde e outros assuntos culturais





DIÁRIO

[Dirceu Arcoverde e outros assuntos culturais]

Elmar Carvalho 

26/09/2020

Após alguns dias de recolhimento, por causa da covid-19, que após vários meses ainda não tem um tratamento absolutamente eficaz e muito menos vacina, resolvi ir ao centro da cidade e ao Riverside resolver algumas pendências, inclusive saque de dinheiro.

Antes, passei na sede da Academia Piauiense de Letras, para receber minha carteira de identidade acadêmica e o livro Dirceu Arcoverde: esperança interrompida, da autoria do presidente Zózimo Tavares, que ainda não pôde exercer plenamente o seu cargo, em virtude da quarentena que a pandemia nos impôs, logo no início de seu mandato, que ele vem cumprindo bem e com zelo, apesar dessa restrição.

A carteira é muito bonita, e nela consta a informação de que a minha cadeira é a de número 10, e o nome de seu patrono, o poeta Licurgo José Henrique de Paiva, também jornalista, que levou vida um tanto atribulada, por causa das vicissitudes da política da época e de sua dipsomania, palavra que empreguei por discrição e para obrigar o leitor a ir a um dicionário, ou melhor, como mais acontece nos dias de hoje, a um site de pesquisa, quase sempre o Google.

Aproveito para informar que meus antecessores foram todos poetas: Celso Pinheiro, o maior poeta simbolista do Piauí, um dos maiores do Brasil, Antônio Monteiro de Sampaio, sacerdote católico e meu professor no curso de Administração de Empresas (UFPI) e Hindemburgo Dobal Teixeira, ou simplesmente H. Dobal.

Suas sínteses biográficas estão nos mares internéticos e em nossos principais dicionários biográficos, bem como em nossas antologias, inclusive na Antologia da Academia Piauiense de Letras, cuja segunda edição, revista e ampliada, foi publicada em 2018 pela APL, na gestão de Nelson Nery Costa, que a prefaciou e manteve o meu prefácio da edição anterior, quando eu ainda não pertencia ao sodalício.

Estavam na Academia os servidores Zilmar e Cremísia. Como eu visse a Revista da APL, edição 77, referente ao ano de 2019, e o livro Bertolínia: história, meio e homens, da lavra do ex-presidente Reginaldo Miranda, que se esmerou ao contar os principais feitos e fatos de sua terra natal, bem como a saga e realizações de seus conterrâneos, solicitei um exemplar de cada uma dessas obras.

Reginaldo já pode ser considerado um dos melhores historiadores do Piauí, não apenas na parte referente à história de nossos índios, como também pelas primorosas e alentadas biografias de nossas mais importantes figuras históricas, inclusive do período colonial, em que traz novas e substanciosas informações. E, sem dúvida, com obras notáveis sobre antigas estirpes piauienses, tornou-se um de nossos principais genealogistas.

Zózimo Tavares, após ter escrito e publicado a mais importante biografia de Alberto Silva, agora editou o livro sobre Dirceu Arcoverde, em bela impressão e com vasta memória fotográfica. Relata a curta mais gloriosa trajetória política de um dos mais importantes homens públicos de nosso estado. De certa forma, Dirceu foi ofuscado pela importância que teve e que foi dada ao primeiro governo de Alberto Silva, pelas suas grandes obras estruturantes.

Contudo, Dirceu Mendes Arcoverde, sem ser propriamente uma vocação para a política, sem ser considerado um líder carismático, sem rasgos de retumbantes e demagógicas oratórias políticas, polido, mas um tanto tímido, médico e professor universitário respeitado, foi, sem a menor dúvida, um dos melhores governadores do Piauí, pela sua probidade, por suas inúmeras realizações nos campos da Educação, da Saúde e de obras estruturantes, inclusive rodovias, saneamento, eletrificação, habitação, esporte, lazer, etc.

E o livro de Zózimo Tavares lhe traça o perfil biográfico, lhe delineia a curta, mas notável carreira política, enumerando os principais fatos e atos de sua brilhante trajetória. Como diz o autor no título, Dirceu Arcoverde foi, de fato, um esperança interrompida, porquanto, após o seu governo, faleceu logo nos primeiros dias de seu mandato de senador, quando muito ainda poderia realizar, por ser um político honesto, avesso a falsas promessas e demagogias, pela sua seriedade e dinamismo.

Quanto à Revista, importa dizer, em síntese, que ela contém discursos de recepção e de posse dos acadêmicos Felipe Mendes, José Itamar Abreu Costa, Plínio da Silva Macêdo e Valdeci Cavalcante, além de enfeixar discursos, prefácios e apresentações de vários livros editados na profícua gestão de Nelson Nery Costa, entre cujas matérias algumas de minha autoria.

Da Academia saí para cumprir outros deveres e missões, e principalmente  encadernar o livro Mergulho nas lembranças da minha “parnaibinha” – anos 40/60, da autoria de Raimundo Nonato Caldas – CAVOUR, verdadeiro álbum, pelo seu formato e pelas inúmeras fotografias, que tenho lido, relido e folheado várias vezes.

Não bastassem essas andanças e missões culturais, perto da meia-noite desse agitado dia de ontem, recebi uma mensagem de WhatsApp do amigo Carlos Henriques Araújo, escritor, memorialista e cronista, me enviando uma espécie de decálogo, que um amigo lhe encaminhara, no qual estabelecera suas metas e filosofia de vida, relativas a mudança de hábitos, de atitudes, desapegos, com o propósito de se tornar uma pessoa melhor, tudo isso ensejado por esses tempos de pandemia.

Respondi que eu, embora sem as haver fixado por escrito, procurava seguir as metas de seu amigo, com mais ou menos sucesso, mas sempre me esforçando também para me tornar um ser humano melhor. Acabei digitando e lhe enviando em adendo as seguintes reflexões, quando já passavam 13 minutos da meia-noite, que talvez sirvam como um “documento” destes reclusos tempos de pandemia:

“Cristo nos alertou para não julgarmos nosso próximo. Isso é um exercício difícil, porque quase todo tempo estamos julgando. Acho que ele falou isso para ficarmos mais leves. Quando não nos preocupamos em julgar, parece que nos sentimos mais tranquilos, mais em paz conosco.

Penso que o julgamento a que se referiu Jesus é com relação ao que vai no mais íntimo de nosso semelhante, às suas razões mais íntimas, que não temos como perscrutar, e é por isso mesmo que não devemos ficar julgando. Mas, como disse, é algo difícil, porque estamos sempre analisando, interpretando, tirando conclusões, em suma, julgando.

Agora, não julgar, não significa ser ingênuo, tolo, idiota. Talvez signifique que somos todos inocentes até prova em contrário; significa lhe dar o benefício da dúvida. São apenas reflexões simples, feitas ao sabor da digitação, sem maiores aprofundamentos. Boa noite.”

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

OS MÚSICOS DA VILA DE CAMPO MAIOR

 

Fernando Antônio de Aguiar Almendra. Foto acervo Edison Gayoso Castello Branco Barbosa. (Imagem: parentesco)

Foto meramente ilustrativa    Fonte: Labhoi


OS MÚSICOS DA VILA DE CAMPO MAIOR

 

Celson Chaves

Professor, escritor e historiador

 

Eram pouquíssimas as cidades e vilas do Piauí que possuíam um conjunto musical no século XIX. Simplício Dias da Silva, um dos homens mais ricos da província, criou no início do século XIX, a primeira banda de música do Piauí na vila da Parnaíba, composta somente por escravos, instruídos em Lisboa e Rio de Janeiro. Simplício era um homem viajado, de visão cosmopolita, adquiriu o gosto pela boa música em suas andanças pela Europa e Ásia.

 

Oeiras, a capital da província, também não tardou em encontrar a sua melodia nos bandolins da alma feminina. Enquanto Teresina, em 1863, segundo o historiador Monsenhor Chaves, já possuía “duas bandas de músicas, a dos educandos e a do corpo de guarnição”.


Guerra, política e músicos.

É difícil precisar quando surgiu a primeira banda de música de Campo Maior. Contudo, as primeiras pistas apresentam-se para o final da Guerra do Paraguai, quando o recrutamento militar forçado ainda causava pânico nos jovens campo-maiorenses. Entre 1864 e 1870, por conta da Guerra do Paraguai, houve alistamento militar em todo território piauiense para formação de “corpos de voluntários patrióticos”. Recrutadores, a serviço do governo provincial, saiam de vila em vila, arregimentando jovens para serem enviados aos campos de guerra.

 

O coronel Lívio Lopes Castelo Branco e Silva foi o militar responsável pelo recrutamento de voluntários em boa parte das vilas do norte do Piauí. Muitos campo-maiorenses compuseram as fileiras dos “corpos de voluntários patrióticos” montados pelo governo imperial no Piauí e enviados as frentes de batalhas. Historiadores calculam em 94 soldados. O capitão Canuto José da Paz foi um dos soldados campo-maiorenses morto na Guerra do Paraguai. O coronel Lívio teve um sobrinho também abatido no conflito.

   

Por época do final da Guerra do Paraguai, músicos campo-maiorenses foram ameaçados de recrutamento militar forçado caso tocassem em uma reunião política do partido Conservador, regrada a muita bebida e comida.  Mesmo com término da Guerra, o medo do alistamento militar forçado estava forte no imaginário da população, principalmente nos jovens pobres, os mais requisitados.

 

Naquele período, o partido Conservador de Campo Maior estava sofrendo um racha político por conta da troca de comando. O partido estava há décadas nas mãos de membros da família Almendra, parte deles residindo em Teresina e outra em José de Freitas. O coronel Antônio da Costa Araújo, de família tradicional de Campo Maior, deu início a um golpe interno pelo comando do partido na vila. Nesse clima tenso, partiu-se inúmeras acusações contra o coronel Costa Araújo, uma delas de ter ameaçado com recrutamento militar os jovens músicos caso fossem tocar no evento partidário organizado pelo seu rival político, o tenente-coronel Fernando Antônio Aguiar Almendra, em 1871. Ao perder espaço no partido conservador, Fernando Almendra, em 27 de maio de 1871, transfere-se junto com seu grupo de apoiadores de Campo Maior para o partido liberal.

 

O coronel Costa Araújo defendeu-se ao “Dizer-se que os moços que fazem parte da banda de música desta vila foram por mim ameaçados com recrutamento para não tocaram na reunião do sr. Fernando Almendra, e esquece que todo homem deve convencer algum brio e não facilitar ao gênio as concepções de mau  gosto! […]”. É possível que os músicos fossem vinculados ao partido conservador ou ao próprio Costa Araújo para que o mesmo ousasse intervir de modo autoritário, impedindo-os de tocarem no evento político da ala oposicionista do partido?   

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

TRÊS POEMAS DE WALTER LIMA

Fonte: Exame/Google

 

2109.1


Walter Lima

 

Tudo parte do princípio

                    Do dependendo.

 

Desde o princípio

Adam precisou  de sua Madam

E criação dependeu

Um dia atrás do outro...

 

Continuou dependência

Olhos dependendo do colírio

A coceira de alguém para coçar

A pulga dependendo do cadelo

Dinamite em função do pavio

Bicho dependendo da goiaba

. . .

 

E nós vivendo hoje

Dependendo do amanhã.

 

Eu preciso e concluo

Tudo parte no final

                     Do  dependendo...

 

 W.Lima_.

21/09/2020.   


1109.1

 

"A

A única

A única forma

A única forma de

A única forma de chegar

A única forma de chegar ao impossível,

É

É acreditar

É acreditar que

 É acreditar que é possível".

 

A única forma:

Passível de possível. Possível. Possível...

 

W.Lima_.

11/09/2014.

(*Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas.)


1710.1

 

Como no romance de V. Nabokov (Lolita)

No meu conto real uma Annabel

De meus dias descrevo:

As testemunhas caminhões e veículos

Menores daquele posto Shell

De beira de estrada...

 

Ah Anabell, aquele momento

Poderia ser semelhante a Nobokov...

Seria tão perfeito, não fosse

Teus joelhos pernas pés trêmulos

E a boca muda e gelada, olhos inquietos

Como se eu estivesse tocando

Literalmente uma joia in natura...

 

Ah Anabell, aquelas testemunhas ao longe,

Simplesmente foram as únicas

Do único – primeiro momento de Annabell...

 

Virei a partir dali

Misto-mistura de Nabokov

Que nunca esqueceu a Annabel

Daquele episódio inesquecível.

 

 V_Lima.

17/10/2019.

A propósito ou despropósito de seios



DIÁRIO 

[A propósito ou despropósito de seios]

Elmar Carvalho

24/09/2020

Na segunda-feira, num dos grupos de WhatsApp de que faço parte, um grande amigo do peito postou uma fotografia de um belo par de formosos, volumosos e harmoniosos peitos femininos, sob o argumento de que agora as coisas estavam voltando à normalidade, evidentemente em alusão a estes tempos de pandemia, que estariam, talvez, em sua ótica, começando a chegar ao fim.

Não consegui me conter, e postei o seguinte comentário: “Mas será se é mesmo o chamado normal normal, ou será se é um normal turbinado a silicone?” Eu me referia, em meu gracejo, aos esplêndidos e fartos seios. Contudo, por precaução e senso de justiça, acrescentei: “De uma forma ou de outra, são formosos.”

Um outro amigo, de olho na forma dos belos seios ou tendo em vista apenas o seu volume avantajado, observou, como se fora um experimentado perito em seu mister: “Exageraram na calibragem. A indicação era de 28 libras e colocaram 38 libras”. Ante sua cirúrgica ou milimétrica (ou mililítrica) precisão, me senti no dever de fazer o seguinte adendo: “Mesmo assim, em não tendo estourado a boca do balão, digo, seios, o resultado ficou esplêndido.”

Dei o caso por encerrado. Mas eis que senão quando outro amigo, com enfática e exclamativa admiração, cravou o seguinte e sapiente comentário: “No meu entendimento, são lindos. Deitar a  cabeça em cima de dois peitos desses é algo extraordinário! Inesquecível !!!” Diante de tanto entusiasmo, numa blague em que desejei parafrasear, com certa dose de ironia, o soneto famoso de Coelho Neto titulado Ser Mãe, respondi: “Aí já não seria deitar; seria levitar no paraíso.”

É que o seio, além de sua beleza plástica, sensual, além de representar a essência da feminilidade, pode também ser o símbolo máximo do que a mulher tem de mais sublime: a maternidade, que representa doçura, entrega, doação, cuidado, amor puro e sem jaça, sem egoísmo, sem exigência, o amor que é o dom supremo, tal como expresso por São Paulo, na epístola aos Coríntios I, cap. 13; vers. 1 a 13.

Assim, o seio da mulher pode ser o símbolo máximo da beleza e da graça feminina, e do amor mais puro e mais sublime que um ser amor humano poderia ter, o amor que é o dom supremo ou o que mais se aproxima do amor de que nos falou São Paulo.

SOBRE COTAS? CHEGA DE DEMAGOGIA!

Fonte: Google/Nova Escola


SOBRE COTAS? CHEGA DE DEMAGOGIA!


Antônio Francisco Sousa – Auditor Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)

 

Ora, se já são mais pardos e negros na população brasileira, nas universidades estatais e, certamente, também dentre os inscritos para concursos públicos visando o preenchimento de vagas a cargos no serviço público, destinar-lhes uma cota de vinte e cinco por cento – que alguém gostaria de que fosse trinta e três, pois queria para eles uma em até três vagas ofertadas – parece desproporcional, levando-se em conta que a disputa já começa desigual, quantitativamente, sem entrar no mérito da qualidade cultural ou de conhecimento, e desconsiderando essa demagógica lorota de o estado (o cidadão) precisar pagar uma dívida histórica a brasileiros pardos e/ou pretos. Imaginem se judeus e ciganos fossem cobrar dívidas históricas da Alemanha por conta dos genocídios que contra eles cometeu no século XX. Como o branco, amarelo, enfim, não preto nem pardo, mas pobre ou desempregado, que, semelhantemente, busca uma ocupação que lhe permita sonhar com a potencial condição econômica e social do pretenso aquinhoado com o privilégio da cota, pode ser tomado por devedor de um cotista?

 

 Se mais de determinada categoria racial, como no caso de pardos e pretos por aqui, concorrem a um mesmo número de vagas, teórica e, provavelmente, mais daqueles ficarão com mais cargos. Somente ocorreria diferentemente se preconceituosamente, pensássemos ou concluíssemos que, apesar de em menor número, os outros concorrentes brancos, amarelos, enfim, não pardos ou pretos, seriam ou estariam mais bem preparados, intelectualmente. A cota para pardos/pretos, no tocante ao concurso público, é um privilégio contestável, porque, além de racial e de funcionar como substituta do conhecimento para os mesmos, havidos por credores vitalícios, ad aeternum de brasileiros de outras cores, é mantenedora de injustiça, ao não devolver à concorrência geral – brancos, pretos, amarelos mais bem classificados -, as vagas conquistadas meritoriamente, isto é, sem usufruto das cotas, por pretos e/ou pardos.

 

Dar ou direcionar cotas por conta de dívidas raciais históricas – penalizando quem não as fez com o castigo de não usufruírem dos benefícios atribuídos aos que as recebem -, seria o mesmo que pensar ou concluir, até do ponto de vista antropológico, que os beneficiados pertenceriam a raças diferentes; e não são, até porque, aqui, é demagogicamente legal, podermos declarar qual nossa cor. Por outro lado, ao se fazer isso, ou seja, informar-se ou se declarar de cor diferente da própria epiderme, estar-se-ia corroborando a ideia de que cor é o que menos importa, que todos fazemos parte de uma mesma raça, a brasileira; o que já seria outra tolice, haja vista todos pertencermos a uma única raça: a humana.

 

Estranhas, estapafúrdias ou contraditórias são conclusões a que, facilmente, se chega examinando determinados números ou índices estatísticos colocados à disposição de todos. Senão, vejamos: afirma-se que a política de cotas foi revolucionária no país, pois em menos de duas décadas quadruplicou o ingresso de negros na universidade; ou seja, provocou mudanças reais naquela comunidade; entretanto, soa dicotômica a conclusão que a afirmação acima permite, quando dizem que, apesar de representar mais da metade dos estudantes do ensino superior, a população de cor preta ainda estaria sub-representada porque monta ela em cinquenta e cinco por cento da brasileira. Quer dizer, justiça histórica com essa parcela majoritária de brasileiros, somente haveria se todos os habilitados estivessem cursando universidades? Ou se brasileiros brancos e de outras cores de pele, pobres ou não, não contassem com cotas raciais para ingresso no ensino superior?

 

Segundo a UNICEF, o número de negros reprovados nas escolas brasileiras é o dobro do de brancos; logo, logo, perceberão ser necessário adicionar novas cotas raciais ou mecanismos educacionais aos ensinos fundamental e médio, de modo a evitar esse enorme percentual de reprovação e, claro, de abandono escolar. Lá na frente, os que estiverem aptos a ingressar no curso superior, caso prefiram, ou já estejam cansados delas, poderão dispensar cotas que estarão à sua disposição; como também no momento de buscarem o emprego, caso optem pelo concurso público.

 

Fechando o arrazoado: e se, talvez, um dos motivos que levam a população negra/parda a ter problemas que culminam por fazê-los ser mais reprovados do que os brancos na escola brasileira fosse o fato de consumirem menos frutas e hortaliças que a população “branca”, segundo Ministério da Saúde? Bolsa Família, Tarifa Social de Energia Elétrica, Minha Casa Minha Vida, Bolsa Verde, Benefício de Prestação Continuada, Auxílio Emergencial, são benesses do governo federal a brasileiros de todas as cores, que, podendo, participem do cadastro único dos programas sociais. Não venham os malucos por cotas tentar criar uma para frutas e hortaliças, destinada a brasileiros de cor preta e/ou parda em idade escolar.     

domingo, 20 de setembro de 2020

Seleta Piauiense - Rubervam Du Nascimento

 

Fonte: Google/Despachadas

 

20

 

Rubervam Du Nascimento (1954)

 

na rua aberta do mundo

correm carros selvagens

 

faz barulho o operário morto

 

comércio amplia o movimento

 

passa troco

passa nota

 

passa restaurante

passa fio de cabelo na sopa

 

passa-montanhas nos rostos

 

passa bananeira

 

assustado espião na janela

 

Observação: no link https://www.youtube.com/watch?v=nyWyCVVOk3o&t=3087s comentei o poema acima, de Rubervam Du Nascimento, sem pretensão de esgotá-lo, em Leituras Compartilhadas do Blog Musa Esquecida.

Rubervam Du Nascimento,

Em Marco Lusbel Desce ao Inferno,

1º Lugar no 1º Concurso Blocos de Poesia

Rio de Janeiro, RJ (1998)

Fonte: blog Musa Esquecida

sábado, 19 de setembro de 2020

A morte da vaca


 

A morte da vaca


Pádua Marques

Escritor, cronista e contista

 

Foi num dia de vinda que o trem pegou uma vaca do doutor Pedro Ribeiro, advogado famoso e dono de um armazém de vender milho na Parnaíba. A quase uma légua descendo do Deserto, o visto foi de dois meninos e irmãos, José e Chiquinho, filhos de dona Chica e de seu Quincas Medeira, que andavam atrás de matar passarinhos entre os capinzais e a beira dos trilhos, quando deram pelo acontecido. A vaca ainda estava se bulindo, se batendo quando eles chegaram.

Pelo que os dois meninos contaram assim que chegou mais gente, eram umas doze pra treze entre vacas e novilhas pé duro, todas de bom tamanho, embora de pouco peso e de dar pouco leite. Mas a uma altura daquelas uma vaca morrer no meio daquele fim de mundo deu movimento em toda a região no caminho da Parnaíba. Pelo visto a vaca se atrasou das outras do bando na hora de atravessar a linha de ferro quando o trem já estava em cima. Foi uma pancada certeira e em cheio na altura dos quartos do animal. Ficou ali mesmo revirando os olhos!

Um dos meninos correu na redondeza avisando de casa em casa de que uma vaca de seu Pedro Ribeiro havia sido morta pelo trem que ia pra Parnaíba. Foi o bastante pra que dentro de pouco tempo, assim num esfregar de olho, a linha se enchesse de gente. Os homens vinham de faca e facões na cintura. Os homens foram chegando e já sangrando a vaca. Outros vieram com sacos de estopa, as mulheres com bacias e panelas, outros meninos chegavam com cordas, facas de cozinha, paneiros e jacás. Tudo que pudesse ser vasilha pra levar a carne.

Veio seu Neco, seu Zeca Isidório, João Canário e seu filho Anacleto. Correram na mata da beira da linha, todos armados de facões atrás de cortar pés de sabiá pra fazerem varas compridas que seriam usadas pra esticar o couro da vaca. Nessa hora pouco se queria saber de quem era o animal e quem era ali no Deserto o vaqueiro de doutor Pedro Ribeiro. Os homens acostumados a tratar de gado faziam seu serviço e as mulheres ali perto esperando a hora de que se abrisse o bucho da vaca.

E foi chegando dona Celestina com as duas filhas, Lurdes e Socorro, dona Dalva, mulher de seu Batista. As mulheres traziam bacias e pratos de tudo que era tamanho, prontas pra que logo que o fato fosse tirado elas repartissem umas pras outras. A vaca até que era de bom tamanho e de peso, coisa de umas quinze arrobas. Mas naquela euforia toda ninguém queria saber dessas coisas. E ia chegando gente e mais gente. Os homens mais afoitos iam cortando a carne e aquele sangue escorrendo pelos cotovelos.

E os meninos iam e vinham, corriam tangendo com tiros de baladeiras os urubus que estavam em cima dos mourões das cercas e nos galhos dos pés de pau. Uns homens pediam água pra beber porque o sol estava queimando as costas e a sede ia aumentando naquele que fazer danado. Naquela conversaria toda em que pouco se entendia quem estava dizendo alguma coisa, ninguém se dava conta de que estava quase dentro dos trilhos e correndo perigo se outro trem aparecesse. Aos poucos a carne ia sendo distribuída, o fato sendo tirado e o couro limpo.

Seu Zeca Isidório e Anacleto fincaram duas estacas no chão e fizeram uma trave pra que as duas bandas da vaca ficassem dependuradas e eles pudessem agora fazer os cortes. E as mulheres ali encostando, desconfiadas, pidonas e com a mão na boca. Outras vinham achando graça, falando intimidades e na certeza de ganho de um bom pedaço da carne da vaca. Outras mulheres chegavam atrasadas e puxando meninos pelo braço. Outras mais adiante contando fatos passados, mangando umas das outras.

E ali naquele descampado e na beira da linha de ferro, indo pra Parnaíba, no meio daquela fartura instantânea, aquela gente ia deixando de lado três pedaços da vaca: o rabo, a cabeça e os pés. Pouco haveria de encontrar algum interessado por eles. Quem era que iria querer levar pra casa aquilo, um rabo, a cabeça e os pés? Até que a cabeça e os pés eram coisa de se aproveitar. A vassoura do rabo era coisa de que ninguém haveria de querer! Quem tinha coragem de levar pra dentro de casa uma vassoura de rabo de vaca?

 E ficou ali no meio do tempo a cabeça da vaca, com aqueles olhos tristes de quem sabia que um dia iria morrer disso ou daquilo, uma mordida de cobra, empanzinada ou de prenha, talvez um engasgo com um nó de cana, uma pancada do vaqueiro. Mas até que bem tratada, descarnada, haveria de dar mais ou menos um quilo de carne. Os pés, bem lavados em água quente e bem limpos, dariam depois de retiradas os cascos das unhas, uma boa panelada, juntando com algum pedaço de tripa ou de bucho.

Mas decerto que alguém que chegasse atrasado naquela fartura de carne e não tendo mais nada pra levar e botar no fogo na hora do almoço levaria a cabeça e os pés! Quanto ao destino do rabo, no mínimo serviria por um tempo pra brincadeira de menino ou como diziam os mais velhos, pra assustar assombração. E depois que todo mundo saísse levando seu melhor pedaço, os urubus iriam tomar de conta do resto.