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Des. Magalhães da Costa |
Joseli Lima Magalhães
Professor de Direito da UFPI e Doutorando em Direito Processual PUC-MINAS
Como
transpor a barreira da saudade? Como expressar o que se sente na
mais
pura forma de gratidão? Como contemplar àquele que se foi a
um
tempo
não mais presente? Certamente não somente com palavras,
mas
forjando
e sedimentando em atitudes aquilo que a poucos custa tão
caro;
e a muitos se torna tão difícil – praticar o amor. E é
justamente
sobre o amor que pretendo falar.
Vou
começar meu discurso pelo fim. Pela morte. Afinal é ou não a
morte
o
começo do fim do começo do amor? Ou o fim do começo do começo
do
amor?
Exatamente hoje, 18 de junho de 2012, Magalhães da Costa
estaria
completando
75 anos de idade, e daqui a exatos 30 dias estaria
completando
10 anos que veio a falecer. E para celebrar sua data de
nascimento,
estranhamente tendo a morte como convidada especial, vou
ler
o conto de sua autoria “A Morte de Frente”, onde se percebe
toda
a sutileza de como brinca com a Morte, ora na narração de
um
ambiente
hostil, mas ao mesmo tempo alegre, ora ironizando a sua
presença.
Eis o conto, que como não poderia deixar de ser, com
elementos
de veracidade:
“O
velho Manezinho sacristão da igreja Matriz de Nossa Senhora do
Carmo
de Piracuruca nunca teve medo da cara feia da morte. Assim,
quando
soube que seu irmão e compadre Silvino Borges, mais conhecido
por
Silvino Coxo, estava com os cotos na beirinha da cova, pegou
a
bengala
e foi ter na casa do homem, no outro lado do rio.
Silvino,
encolhido no fundo da rede, só o bolo, o caco.
E
Manezinho, parado, de pé:
–
Boa,
compadre! Então é verdade mesmo que você está perto de
embarcar?
O
moribundo tomou aquele susto, e ele, sacristão:
–
Estive
agorinha a pouco com o Dr. João Fortes, e ele me disse que
dessa
você não escapa: é mal sem cura. Como o Pedro meu filho mandou
me
chamar na Parnaíba e, quando voltar, na certa que não encontro
mais
o
mano vivo, vim logo me despedir. – Curvou-se, pegou na mão do
outro
e
puxou: – Adeus, meu compadre, e até Dia de Juízo. – disse, –
e foi
saindo.
Parou, porém, na porta de repente, coçando a cabeça. – Ah ,
sim
– falou, – vigie!... Se encontrar a Binoca minha mulher por
lá,
diga
que mando lembrança, muitas saudades.
Conta-se
que quando Manezinho tornou da viagem, o Coxo tinha batido
o
vinte-e-um,
e o sacristão velho orou por ele, muito contrito”.
Há
75 anos nasceu. Há 14 anos tomou posse nesse mesmo lugar na
Cadeira
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da APL, que tiveram como ocupantes Anísio Brito (Patrono),
Odilon
Nunes,
o Padre Cláudio Melo (o mesmo que celebrou a missa de ação
de
graças
quando assumiu o cargo de desembargador do TJPI) e Zózimo
Tavares,
que o sucedeu. Há 13 anos lançou, aqui mesmo na APL sua
última
obra – Traquinagem. Há 10 anos foi velado também aqui na APL.
E
hoje
lança o primeiro dos dois livros que deixou inédito. Parece ou
não
parece que esses fatos ocorreram ontem? O tempo parece estreitar
o
que
se teima em esquecer. O que é mesmo o tempo, perguntaram para
Santo
Agostinho, e ele bem respondeu em suas Confissões
“Se
ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicar a quem me fizer
a
pergunta,
já não sei. (...). Dizemos tempo longo ou breve, e isto só
podemos
afirmar do futuro ou do passado. (...) Mas como pode ser breve
ou
longo o que não existe? Com efeito, o passado já não existe e
o
futuro
ainda não existe. (...). Se pudermos conceber um espaço de
tempo
que não seja susceptível de ser subdividido em tais partes,
por
mais
pequeninas que sejam, só a este podemos chamar tempo presente.
Mas
este voa tão rapidamente do futuro ao passado, que não tem
nenhuma
duração.
Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro. Logo o
tempo
presente
não tem nenhum espaço. (...) O que agora claramente
transparece
é que nem há tempos futuros nem tempos pretéritos. É
impróprio
afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e
futuro.
Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três:
presente
das coisas passadas, presente das presentes e presente das
futuras.
Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo
em
outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão
presente
das
coisas presentes e esperança presente das coisas futuras”.
Segundo
Schopenhauer, na sua tese de doutorado entitulada “A Quádrupla
raiz
do princípio da razão suficiente” , o espaço e o tempo são
as
intuições
formais que se formam antes, correspondendo ao princípio de
razão
suficiente do ser. O espaço e o tempo são puras intuições,
não
empíricas.
Para Shopenhauer a mais simples e primitiva das formas
de
representação,
o tempo, nos revela o caráter puramente relativo do
fenôneno.
Ou como diz Marie Jospe Pernin, o tempo não é nada mais do
que
sucesso. Passado e futuro não existem. O primeiro não existe
mais,
o
segundo ainda não existe. Cada instante só existe ao aniquilar
o
precedente,
para ser aniquilado pelo seguinte (...) Como pura relação,
o
tempo é vão ou nulo. Ele imprime no coração dos fenômenos um
caráter
onírico,
uma marca de irrealidade” .
Para
Schopenhauer “graças ao tempo, conseguimos pois conhecer o
nosso
caráter,
com um conhecimento fragmentário, afetado por um coeficiente
de
dispersão, porduzida por esse estranho órgão. Na hora da
morte,
nossa
memória e nossa reflexão – verdadeiro ´espelho cônico´
-
reconstituirão
essa unidade dispersa, para nos mostrar a nossa
identidade,
o sentido do nosso destino .
Certamente
daqui a alguns anos, ou até mesmo amanhã, o que não se
espera,
alguns de nós já morreu. E o que deixamos para gerações
futuras?
O que contribuímos para o engrandecimento de nossa família,
de
nosso Estado, de nosso país? Qual a dimensão exata que temos e
que
vamos
ter a respeito do tempo. Qual o tempo de cada um de nós
presentes
nessa Assembléia? O tempo de vida, o tempo de morte, o tempo
de
vida dentro da morte?
Magalhães
da Costa era mais escritor do que jurista, dedicava-se mais
à
literatura do que propriamente à ciência jurídica. Certamente um
dos
momentos
mais felizes evidenciado em seu rosto foi quando tomou posse
como
membro da Academia Piauiense de Letras, comparando-se com à posse
de
desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí. Muitos de
seus
contos
foram forjados pelas andanças em cidades do interior do Estado
do
Piauí, como magistrado, e na infância que passou na cidade
de
Piracuruca,
norte do Estado.
Os
contos selecionados para esta obra foram elaborados, a maioria
deles,
depois da edição de seu último livro – Traquinagem –, em
1999,
tendo
sido publicados no Jornal Meio Norte e na Revista De Repente,
ambos
de Teresina, mas, de qualquer forma, considerados inéditos em
forma
de livro.
Por
uma questão didática, até para situar o leitor em uma
melhor
compreensão
da obra, os organizadores resolveram dividi-la em três
partes:
i) a primeira delas designada Contos Urbanos reúne contos onde
se
observa a predominância do cotidiano da vida urbana ou de tipos
a
ela
relacionada, ainda que os diálogos ou as histórias tenham
ocorrido
em
cidades do interior; ii) a segunda parte, Contos Eróticos, é
formada
por apenas quatro contos, havendo forte predominância ao
apelo
sexual,
estando também a sensualidade presente em traços marcantes;
iii)
por fim, Contos Regionais, no sentido de estórias
regionalistas
mesmo,
inerentes ao interior do Estado do Piauí, principalmente na
região
de Sete Cidades, Piracuruca e Piripiri, em que o tipo
caboclo
predomina,
com diálogos inocentes e sarcásticos, irônicos e
despretensiosos.
Esse perfil de narrativa, se é que assim se pode
caracterizar,
foi marca predominante de Magalhães da Costa, havendo
constante
resgate do modo de viver, pensar, agir e se comportar
daquele
tipo de gente simples que habita não somente o norte do Estado
do
Piauí, mas o nordeste do Brasil, como um todo, cada vez menos
comum,
ainda, em razão dos influxos que a pós-modernidade tem
imprimido
à sociedade atualmente.
É
esse um dos grandes dilemas de quem escreve ficção, querer ao
máximo
tornar
realidade o que se encontra como ficção. Até que ponto o
mundo
ficto
e real se encontram separados, e até que ponto o mundo ficto e
real
se encontram entrelaçados. O real imita o imaginário; o
imaginário
imita o real.
Habermas,
certamente um dos filósofos e sociólogos mais festejados
da
atualidade,
ao comentar o que Ítalo Calvino, premiado escritor cubano
do
século XX, e que cedo foi morar na Itália, pensa a respeito
da
relação
entre ficção e realidade, entre o que escreve o autor e o
que
realmente
ocorre, indaga se “um texto poderia ser reflexivo ao ponto
de
superar até o desnível em termos de realidade que existe entre
ele,
enquanto
corpus de sinais, e as circunstâncias empíricas de seu
ambiente,
ou seja, absorvendo em si tudo o que é real? Em caso
afirmativo,
ele ampliar-se-ia, assumindo a forma de uma
totalidade
instransponível.
(...) Para poder totalizar desta maneira o mundo
fictício,
o texto precisa recuperar inicialmente, e de modo reflexivo,
três
referências com o mundo, nas quais ele mesmo está inserido:
a
referência
com o mundo no qual o autor vive e escreveu o texto; a
seguir,
a relação entre ficção e realidade em geral; finalmente,
a
referência
à realidade visada na narrativa, que precisa ter ao menos
a
aparência
de real” .
Abre
o livro, o “Poema Testamentário (feito de lugares
comuns)”,
espécie
de autobiografia do autor, que no dizer de seu amigo, o
escritor
e advogado Ozildo Batista de Barros, consistia num prenúncio
de
sua própria existência/morte.
Gostaria
de agradecer a todos aqui presentes, e também àqueles que
não
puderam,
por um motivo ou por outro comparecer a esse evento. Agradeço
aos
Acadêmicos da Academia Piauiense de Letras, em especial ao
Herculano
Morais, incentivador da concretização da obra HISTÓRIAS COM
PÉ
E CABEÇA..., a seu amigo, Professor Edvaldo Moura, que na
condição
de
Presidente do Tribunal de Justiça do Piauí
contribuiu
significativamente
para ceder o parque gráfico do Tribunal de Justiça,
ainda
que de forma paga, como não poderia ser diferente, e,
assim,
diminuir
os custos da edição da obra, à minha mãe e a meu irmão que
foram
compreensíveis pela demora que levei em organizar o livro,
não
justificável.
E principalmente às palavras amigas do Acadêmico Oton
Lustosa,
que como ele mesmo disse em texto cujo título é “Magalhães
da
Costa:
um nome da literatura e da magistratura piauienses”, publicado
logo
depois de sua morte, se conheceram em um dia qualquer de julho
de
1995.
Eu, Acadêmico Oton Lustosa, recordo perfeitamente desse dia e
desse
encontro que ocorreu na Colônia de Férias da Magistratura, na
nossa
linda e sempre querida Luis Correia, e como você mesmo disse,
pouco
falaram sobre processo, leis ou códigos, mas sim sobre
literatura,
principalmente o gênero contos.
Gostaria
de parar por aqui os agradecimentos, pois posso deixar de
citar
alguém que certamente contribuiu para a publicação desse livro.
Só
não poderia deixar de agradecer, mesmo e estranhamente, o autor
do
livro,
o que faço lendo uma música, “Casa Caiada”, de autoria
do
cantor
Diomedes, por mim ficado na lembrança por várias vezes ouvida
por
meu pai, principalmente quando era magistrado em Piripiri (1974
a
1978)
e em Parnaíba (1978-1983), certamente uma das músicas que ele
mais
gostava e que bem reflete sua preocupação com o estado dantesco
da
existência humana, e elementos plausíveis para superá-lo:
Quanta
esperança guardada nascida do nada
Quanta
vontade de ser o que não pode ser
Quanta
maldade escondida nas lágrimas falsas
Quantos
na beira da estrada e não sabem por quê
Quantos
na vida se jogam por longas jornadas
Quantos
na vida que vivem a se comprometer
Quantos
que pensam estar certos e não sabem de nada
Quantos
na vida que vivem e só sabem sofrer
Quantas
crianças na porta da casa caiada
Quantos
que vivem lá dentro tentando viver
Quantos
que são prejuízo na certa pros outros
Quantos
que estão só na vida e não sabem por quê
Você
que é meu bom amigo e meu confidente
Sempre
nas horas difíceis sou seu protetor
Esqueça
um pouco a tristeza e se console comigo
Preste
atenção no conselho que agora eu lhe dou
Meu
amigo procure não sofrer
Esquisito
como é que pode ser.
No
começo do discurso disse que ia falar sobre o amor. Ledo engano.
O
amor
não precisa ser falado. Engana-se quem pensa que o tempo faz
passar
o amor; só o amor faz passar o amor.
Com
a publicação póstuma de História sem Pé e Cabeça espera-se que
a
memória
de Magalhães da Costa esteja cada vez mais presente na mente
da
nova geração de pessoas que cultivam o gênero contos, e que
também
não
se disperse perante aqueles que já conhecem sua obra. Repito,
agora,
o que disse, por ocasião do Panegírico realizado pelo Tribunal
de
Justiça do Piauí, em 2002: “os discursos longos tendem a
não
exprimir
a verdade dos fatos e dos sentimentos; os curtos, ao menos,
tendem
a ser ouvidos e são verdadeiros.
Obrigado.
(*) Proferido por Joseli Magalhães na APL, em 18 de junho de 2012, na solenidade de lançamento do livro HISTÓRIAS COM PÉ E CABEÇA...