Poeta, contista, cronista, romancista, memorialista e diarista. Membro da Academia Piauiense de Letras. Juiz de Direito aposentado. *AS MATÉRIAS ASSINADAS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES, E NÃO TRADUZEM OBRIGATORIAMENTE A OPINIÃO DO TITULAR DESTE BLOG.
segunda-feira, 30 de setembro de 2024
Antônio de Pádua e seu "cara baixa"
domingo, 29 de setembro de 2024
A MORTE DO CÃOZINHO
Fonte: Google |
A MORTE DO CÃOZINHO
Elmar Carvalho
Sob a roda do carro
o cãozinho teve seu
movimento
violentamente congelado
com seus dentes expostos
e seus olhos saltados
na perplexidade da morte
inesperada
com sua cauda projetada
como ponto de exclamação.
Suas vísceras eram pontos
de
interrogação espalhados no
asfalto.
Na morte do cachorrinho
eu vi a vida esvaída
no seu gesto perdulário.
sexta-feira, 27 de setembro de 2024
3 Histórias de Papagaios
3 Histórias
de Papagaios
Elmar
Carvalho
1
Numa das reuniões da Academia Piauiense de Letras, o
acadêmico Jesus Elias Tajra me chamou à parte e me disse haver gostado de minha
crônica sobre o canto das rolinhas “fogo apagou”, e que esse texto o fez se lembrar
de um papagaio, que criara em sua adolescência; me revelou um episódio
comovente, que passo a contar.
Numa época em que não havia impedimentos legais à criação de
animais silvestres, em sua infância e adolescência, criou, em gaiolas, algumas
aves, entre as quais um papagaio, nomeado como Louro, que chamava pelo nome
apenas sua avó, sua tia Olga e ele próprio, Jesus.
O papagaio lhe tinha muita afeição e uma consideração
especial, como se o distinguisse das demais pessoas. Somente a ele concedia a
graça de “dar o pé”, o que denota muita confiança e intimidade. Quando o jovem
Jesus Tajra lhe estendia a mão direita, o Louro, muito satisfeito, se
empoleirava no dedo indicador, certo de que era o seu animal predileto ou favorito.
Quando tinha em torno de 16 anos, e cursava o primeiro ou o segundo
ano do antigo curso Científico, o garoto Jesus se apresentou ao Louro, trazendo
um pequeno cachorro, de poucos meses de vida, e não lhe deu muita atenção, como
costumava fazer.
Momentos depois, quando se dirigiu ao papagaio e lhe
apresentou o indicador direito, o Louro, movido, ao que parece, por
incontrolável ciúme ou despeito, aplicou-lhe forte e dolorosa bicada no
polegar. O Dr. Jesus me mostrou a pequena cicatriz, que mais contribuiu para
que ele nunca esquecesse esse fato e o seu desfecho dramático.
Em seguida, de forma algo violenta e precipitada, talvez cego
de ciúme, o papagaio desferiu um veloz voo para fora da área da casa, e
terminou sofrendo fatal acidente, ao se chocar contra a fiação da rede
elétrica. Não vou levantar a hipótese fantasiosa de que tenha sido um quase
suicídio.
Mas considero tenha sido, no mundo dos papagaios, uma
verdadeira tragédia, em sua passional inocência, que muita tristeza e emoção
causou ao garoto Jesus Tajra.
2
Aproveito o ensejo para transcrever o que já escrevi, em
texto memorialístico em homenagem a minha saudosa mãe (Rosália Maria de Melo
Carvalho, *1933 – +2013), sobre um casal de papagaios, que ela criou com todo
zelo e desvelo:
“Décadas atrás, minha mãe ganhou um casal de papagaios. Criou-os com
muito zelo, carinho e estima. Não lhes ensinou palavrões e nem cantigas
indecorosas, como as que hoje nos agridem os tímpanos e a alma em quase todo
lugar. Ensinou-lhes belas e alegres canções, inclusive religiosas, conquanto
não fosse carola, avessa que era a hipocrisias e falsidades farisaicas.
Graças à sua obstinada determinação nesse mister, o Louro e a
Rosa aprenderam um vasto repertório de palavras, frases e cantigas. Era muito
engraçado ouvir-se a algazarra festiva dos papagaios, quando eles estavam de
bom-humor, pois essas aves, como os humanos, cuja voz eles imitam, parecem ter
os seus caprichos, em que alternam momentos de alegre expansão com momentos de
sisuda introspecção, ou mesmo de certa melancolia.
Na manhã do dia em que mamãe morreu, os papagaios começaram a
cantar uma das cantigas que ela lhes ensinou. Como uma espécie de premonição, o
Louro e a Rosa cantaram o seguinte trecho de hino religioso: “Mãezinha do céu,
eu não sei rezar / Eu só sei dizer quero te amar”. O Solimar, um de nossos
vizinhos, acrescentou que, após o cântico católico, uma das aves teria pedido:
“Vovô Miguel, traz o café”, tendo a outra acrescentado que o queria com leite.
Que avezinha mais exigente!...
Pouco antes da chegada do corpo de mamãe, fato ocorrido à
noite, os papagaios novamente cantaram o refrão acima transcrito, e também o
seguinte trecho de melancólica marchinha carnavalesca: “Oh! jardineira por que
estás tão triste / Mas o que foi que te aconteceu? / Foi a camélia que caiu do
galho / Deu dois suspiros e depois morreu”.
O Louro e a Rosa pareciam ter pressentido a morte de minha
mãe e a prantearam a seu modo, em sua inocência animal.
3
Aos 17/18 anos, fiz amizade com uma senhora bem idosa, mãe de
um vizinho e amigo, com a qual gostava de conversar, à boquinha da noite, à
porta de sua casa.
Em certa noite ela nos contou que sua filha, adolescente e de
rara beleza, criara uma curica jandaia, que, embora não sendo um papagaio,
aprendera a falar algumas palavras.
A jovem, além de bela, era uma pessoa encantadora e de boa
índole, alegre e prestativa. Contudo, falecera no esplendor de sua beleza e
adolescência. Sua morte precoce comoveu todas as pessoas da localidade.
A curica acompanhou o cortejo fúnebre e o sepultamento. Após
a cerimônia, do alto de uma faveira em que pousara, voou, no instante em que o
crepúsculo ganhava o seu máximo fulgor e melancolia.
Quando se passaram três dias, reapareceu e sobrevoou a casa
dos pais da jovem morta, que se chamava Iracema. Pronunciou seu nome por três
vezes: – Iracema, Iracema, Iracema. Juntou-se a um bando de jandaias que
passavam, e dela nunca mais se teve notícia.
Muitas décadas depois, ao reler Iracema, o romance indianista
de José de Alencar, lavrado em belíssima prosa poética, fiquei com a leve
impressão de que a minha idosa amiga fantasiara a pungente morte de sua filha
com reminiscência da leitura dessa obra, como se lhe quisesse dar uma beleza
quase mítica. Com o final do romance de Alencar, encerro este relato:
“A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia
já o mavioso nome de Iracema.
Tudo passa sobre a terra.”
RECEBI a mensagem abaixo, do amigo Claucio Carvalho, que corresponde, na verdade, à quarta história de papagaios:
"Meu irmão Fábio, no tempo de faculdade, namorava uma garota em Recife. Dormia às vezes na casa dos pais dela. Havia lá um papagaio muito afeiçoado a Denise, a então namorada do meu irmão, hoje esposa. O bicho era muito ciumento e sem vergonha. Quando Fábio ia tirar a barba ( fazia isso todo dia, era sub tenente do exército) e esquecia a porta do banheiro aberta, o papagaio chegava de mansinho, aplicava uma bicada bem forte no calcanhar do meu irmão e saía correndo, desengonçado, atrás de Denise, gritando ui, ui, ui. Quando era realizada alguma festinha na casa, os convidados usavam o banheiro externo, localizado no terraço, onde ficava o poleiro do papagaio. Ao perceber alguém se dirigindo ao banheiro, dava o alarme: vais cagar, vais cagar, vais, cagar.
Claucio Carvalho"
quarta-feira, 25 de setembro de 2024
ÚLTIMA CARTADA
terça-feira, 24 de setembro de 2024
Oeiras na Alma e no Coração
Recebi do amigo José Maria Carvalho o seguinte WhatsApp, em que ele se refere a meu opúsculo Oeiras na Alma e no Coração:
"Elmar Carvalho, poeta, escritor, contista, romancista, e magistrado que conta no seu livro, Oeiras na Alma e no Coração, quando se debruça em fatos históricos e pitorescos, ocorridos na região de Oeiras, contando com riqueza de detalhes, um pouco da história, onde busca fatos da historiografia, bem como de figuras notáveis que contribuíram com cultura e o patrimônio da primeira capital do Piauí. Elmar peregrinou por muito tempo, colhendo informações históricas, até então, nunca contadas por outros escritores, que por ali tiveram em busca de fatos históricos. Conta sua história desde quando visitou pela primeira vez a bela cidade de Oeiras. Tudo isso o fez com alma e coração como se um Oeirense fosse. Uma belíssima história de um renomado escritor Piauiense, Elmar é mesmo um referencial na arte de escrever e contar fatos históricos da cultura Piauiense, ele envereda com maestria no gênero da Literatura com suas relevantes obras em todos os campos. Parabéns!"
segunda-feira, 23 de setembro de 2024
A Casa que Só, Ri
Foto da autoria do autor do texto |
A Casa que Só, Ri
Fabrício
Carvalho Amorim Leite (*)
A
imagem de um passarinho cuidando do ninho, uma lâmpada apagada, uma casa
abandonada. Ela vive sem mim, carregando seus temores e ardores.
Vive
sem mim, com seus tijolos derretidos, guardiões de recordações — boas, ruins,
esquecidas, despedaçadas — daqueles que um dia a habitaram.
A
velha casa abriga ninhos de certos ratos, serpentes, baratas, morcegos e
formigas que se nutrem sem medo.... Assim como as minhas memórias, que ali
ainda se mexem e dormem no escuro.
O
chão, corroído por cupins embriagados, azulejos manchados pelos cuspes de
bebidas amargas, feridas fétidas e nunca cicatrizadas, testemunha de brigas
desalmadas e o eco da solidão de uma família desfeita.
O
cheiro de velho, de museu esquecido, daquilo que um dia foi útil e agora jaz em
escombros, pairava pelos cômodos como um mau assombro. O Tempo, devorava
tudo de dentro para fora, em sua lenta e inevitável transformação.
Mas,
numa noite qualquer, a casa, antes morta, voltou a sorrir. Tanto que as telhas,
antes deitadas, caíram de pé ao chão como lágrimas de alívio: do ovo do
passarinho, nasceu um filhote. A luz se acendeu.
A
Casa, Só, Ri, (s)em mim.
(*) contista e cronista.
domingo, 22 de setembro de 2024
LAGOA DO PORTINHO
Fonte: Google |
LAGOA DO PORTINHO
Elmar Carvalho
As dunas de alva areia
parecem um encantamento
onde encantada sereia
viesse seu (en)canto
soltar.
Na beira da lagoa
uma trigueira Iara
no espelho de água clara
fica a se pentear,
desfiando longa mágoa
de rainha e de mãe d’água.
O sol joalheiro arranca
das filigranas da água
cintilações de jóias e de
estrelas nas noitescuras
sem lua lua luar,
enquanto em canto
a brisa dedilha
na lira lírica
das palmas dos coqueirais
músicas de (a)mar e
(sonh)ar.
Veleiros de velas aladas
deflagradas
hibridoanfibiamente passam
em elegante navevoar.
A lagoa e as dunas de areia
têm curvas caprichosas
como a geografia das lindas
mulheres fatais.
Meu
sonho/nave navega
nave na vaga do vento
no descaminho
do alumbramento
e da magia da
Lagoa do Portinho.
sexta-feira, 20 de setembro de 2024
OS BICHANOS
Fonte: Google |
OS BICHANOS
Elmar Carvalho
Dias atrás, a Francisca Maria
descobriu três gatinhos, que o dono abandonou, covarde e sorrateiramente, na
frente de minha casa. Os meninos do colégio defronte, principalmente as
garotas, olhavam os bichanos com simpatia, mas ninguém se dispunha a levá-los
para criar. Mas terminaram sendo acolhidos, um a um, através de incentivos
recíprocos de colegiais.
Isso me fez lembrar a grande
quantidade de gatos abandonados, que vagam por entre os túmulos e alamedas do
cemitério São José, uma das mais antigas construções de Teresina. Não sei de
que sobrevivem os bichanos do campo santo. Por associação de ideias, recordei-me
de uma reportagem televisiva, que narrava o episódio de um gato extremamente
apegado ao dono; quando este faleceu, o bichano passou a residir em seu
mausoléu.
Não se sabe como, entre as
centenas de sepulturas da imensa necrópole, o animal conseguiu localizar a de
seu dono. Entre as hipóteses aventadas, falou-se de que o gato se guiara pelo
olfato, através do qual rastreara o cheiro do falecido. De minha parte, não
descarto a possibilidade de que esse animal possa ter outros sentidos, que
desconhecemos, algo como uma intuição afinada, uma espécie de sintonia fina ou
mesmo um sexto ou sétimo sentido. Sempre se falou que gatos são meios
misteriosos e que teriam sete vidas.
Soube, tempos atrás, que um fato
interessante aconteceu no velório de um primo de meu pai, chamado Gonçalo
Furtado de Carvalho. Esse parente nascera em Piripiri, mas se radicara em
Esperantina, onde se tornara uma pessoa estimada, graças ao seu bom caráter e
serviços prestados. Deixou um livro de poemas.
Tinha ele um gato, de raça
afamada pela beleza. O bichano lhe tinha verdadeira veneração, e era
correspondido na mesma intensidade. Quando Gonçalo faleceu, o bichano como que
participou do velório. De tardezinha, na hora da saída do cortejo fúnebre, o gato
inesperadamente saltou para cima da urna funerária, e começou a beijar com
sofreguidão o tórax de Gonçalo, como se estivesse se despedindo. Ou como se
pretendesse acordá-lo.
Parecia saber que não mais o
veria, e quisesse, dessa maneira, externar, da forma mais carinhosa e sentida
que podia, a sua homenagem, gratidão e amor. Creio que quem mereceu tão
enfática e comovente homenagem de um ser, que muitos chamam de bruto, só pode
ter sido um homem verdadeiramente bom.
1º de setembro de 2010
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
terça-feira, 17 de setembro de 2024
O céu, o rio e o mar
Fonte: Google |
O céu, o rio e o mar
Frederico A. Rebelo Torres
Poeta e escritor
Tempo, correnteza que leva consigo,
No seu caminho eterno
o que se ama
As alegrias, a força,
o encanto, os risos,
Limiar, derradeiro portal que se alarga.
A Vida: uma busca por sentido e abrigo,
Cujo percurso é onde o destino nos testa.
O amor, a esperança, o sonho, os amigos,
São luzes no escuro
que a vida nos oferta.
E nos tornamos nosso próprio engenho,
A remoer suas lembranças no crepúsculo,
Onde nosso passado revisita suas sombras.
Por fim, todos encontraremos nossa foz,
E mergulharemos sem peso, sem desalento,
Pois a vida é rio que ao mar se entrega.
domingo, 15 de setembro de 2024
AMARANTE
Fonte: Google |
AMARANTE
Elmar Carvalho
doce amaro
pródigo
avaro
amarante
ante-amar-te
anti-amar-te
antes sempre após
agora
sem agouro sem demora
sem pressa e sem presságio
pé ante pé
perante tuas casas sonolentas
diante das fráguas das
serras
que descerras em cortinas
de azuis
descortinas neblinas
na paisagem –
plumagem/brumagem fixada
na retina retentiva
redentora do poeta
amarante
amaranto de
memórias atávicas de
catimbós
murmúrios ancestrais de
urucongos
requebros lascivos de
velhos congos
resquícios longínquos de
quilombos
encravados em abissais
cafundós
dos antepassados cativos
altivos dos mimbós
perante ti
amarante
a água escorre lacrimal
pela sinuosidade do morro
da saudade
deságua na desembargador
amaral
e de val em val
de sal em sal
boceja nas bocas de lobo
dos esgotos
gargareja nas gargantas
gosmentas dos gargalos
mergulha e deriva singular
nas águas plurais do
parnaíba
amarante
perante ti
imperante
o vento verdeja agreste nos
ciprestes
rumoreja aguado nos aguapés
sacoleja sem leste oeste
a copa fagueira das
faveiras
tuas tardes tardas dolentes amaras
abres das janelas
debruçadas em melancolias
e alicias e (re)velas
as moças nas modorras
mormacentas macilentas
em que delicias cilicias e
acalentas ...
sexta-feira, 13 de setembro de 2024
O GRITO
O GRITO
Elmar Carvalho
Atravessamos dias difíceis,
conturbados, em que o egoísmo impera desabrido. Já tive ocasião de dizer que o
egoísmo em excesso é o pai de todos os vícios, é a matriz de todos os pecados,
é o estopim de crimes hediondos. Esse sentimento pode levar o indivíduo a
cometer assalto, estupro e latrocínio. Por quê? Porque se o indivíduo não tiver
outros sentimentos e virtudes, que freiem o seu egoísmo e egolatria, poderá
cometer esses crimes e pecados, porquanto o que lhe interessa é a satisfação de
seu desejo, de sua vontade.
Deseja ter uma mulher? A terá,
ainda que para isso tenha que estuprá-la. Deseja ter dinheiro? Obtê-lo-á, ainda
que para tal fim tenha que assaltar alguém ou tenha que matar o seu semelhante.
Estamos numa época de muito hedonismo, em que o que interessa é o prazer, ainda
que a altos custos, como o uso de drogas ou a agressão à suscetibilidade do
outro.
Vemos a cada passo os
intolerantes, os que não aceitam limites, nem mesmo de um simples semáforo ou o
limite de velocidade ou regras de trânsito. São os que têm de passar de
qualquer maneira, mesmo arriscando sua própria vida ou, o que é pior, pondo em
risco a vida dos outros. Muitos começam dentro de casa, quando forçam seus pais
a lhes dar sempre mais, quando ficam a exigir cada vez mais supostos direitos,
sem dar a mínima atenção aos seus deveres, mesmo os mais primários.
Começam, muitas vezes, com
pecadilhos que vão crescendo, que vão aumentando até que se tornam uma montanha
de pecados cabeludos, que não raras vezes constituem crimes hediondos. Falei
tudo isso como um prelúdio estridente para contar o que se segue.
Faz poucos dias minha mulher viu
uma cena, quase diria dantesca, no estacionamento de um dos shoppings da
capital. Um jovem, já adulto, insistia de forma intransigente para que sua mãe
lhe fosse comprar um objeto, que ele dizia ser barato, posto que custava R$
60,00. A mulher se recusava a ir, dizendo não ter dinheiro disponível.
Mas ele não aceitava um não como
resposta, e continuava a insistir para que sua mãe fosse comprar o objeto de
seu desejo consumista, sempre martelando na tecla de que era um produto barato,
uma vez que custava “apenas” a bagatela de R$ 60,00, como se ele, ao considerar
arbitrária e unilateralmente um objeto barato, passasse a ter automaticamente o
direito de possuí-lo, ainda mais às expensas de sua mãe.
A senhora, já começando a gritar,
disse-lhe que iria gritar. E como ele continuasse a persistir, a mulher,
transtornada, completamente fora de controle, emitiu um grito agudo,
estridente, um grito de desespero, de desamparo, um grito de socorro, um grito
de dor espiritual e de revolta, que ecoou pelo estacionamento, que atroou pelos
ares em busca de anjos e santos. Creio que o grito foi semelhante ao que o
pintor Edvard Munch tentou expressar no quadro que leva esse título.
Ou seria mais semelhante ao que o
sublime poeta Rainer Maria Rilke imaginou, quando disse na primeira das Elegias
de Duíno: “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?”
Suponho que algum anjo deve ter acolhido o grito dessa mãe desesperada, dessa
mãe impotente ante a incompreensão do filho, que na verdade era o seu algoz.
31 de agosto de 2010
quarta-feira, 4 de setembro de 2024
A MORTE DA BARATA
A MORTE DA BARATA
Elmar Carvalho
Ontem uma barata, por várias
vezes, tentou tocar-me os pés. Eu os batia, enxotando-a, mas logo ela investia
novamente. A insistência desse inseto, pavor das mulheres em geral, acabou por
me torrar a paciência. Devo dizer que faz alguns anos não gosto de eliminar
nenhum tipo de ser vivo, nem mesmo baratas, moscas e grilos.
Aliás, já fiz uma crônica em que
tratei de um grilo. Godofredo Rangel, antes de mim, escreveu um texto sobre o
caso de um grilo, em que ele, para dar liberdade a esse impertinente e
enfadonho cantor, o conduziu para o quintal. Seu gesto caridoso, porém, foi
fatal ao inseto, porquanto ele terminou indo parar no papo de uma faminta e
gulosa galinha.
As cigarras foram cantadas em
verso e prosa; em fábulas, e em sonetos de Olegário Mariano. Um dos personagens
de Kafka, como é sabido por todos, acabou por se metamorfosear num inseto.
Tornou-se página antológica, recolhida em muitas seletas, o capítulo XXXI de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual a personagem ficou incomodada com a
presença de uma grande borboleta, pelo simples fato de ela ser negra. Um golpe
de toalha encerrou sua vida. A personagem, em irônica autocomplacência, ainda
se perguntou, como atenuante, por que não era ela azul.
Recentemente, ao vivo e em cores,
como se dizia outrora, ou em tempo real, como se fala agora, viu-se o
presidente Barack Obama, em piparote certeiro e fulminante, abater uma mosca
que lhe importunava durante uma filmagem de televisão.
Mas, como eu dizia, faz muitos
anos que não gosto de tirar a vida de nenhum ser, por menor que ele seja, mesmo
nocivo, como aranhas e caranguejeiras. Não me sinto bem em fazê-lo. Contudo,
como a personagem machadiana, terminei ficando aborrecido com a insistência da
barata em querer lamber-me os pés. Resolvi fulminá-la com leve golpe de chinela
japonesa. Brandi a arma sem raiva e a contragosto, sem muita vontade de
eliminá-la. O inseto ficou completamente imóvel, de forma que o dei como morto.
Em seguida, o afastei para um canto do compartimento, onde ficou de patas e
papo para o ar.
Para minha surpresa, hoje à
tarde, não mais vi o menor vestígio dele. Dizem que é um dos animais mais
resistentes, e talvez seja o único espécime que sobreviveria à radiação de uma
guerra nuclear. Sendo assim, é bem possível que tenha mesmo resistido ao golpe
de minha alpargata. Melhor assim. Mas se assim não foi, que descanse em
paz.
25 de agosto de 2010
O professor Antônio José Melo dos Santos me mandou o seguinte comentário, por WhatsApp:
"Bom dia, caríssimo.
Li sua crônica.
Vc soube equilibrar muiito bem a sensação grotesca q um barata comumente nos faz sentir, combinado a um passeio literário deste e doutros insetos na literatura universal.
Não lembro o autor (poeta ou escritor) q ao sentar para escrever, veio-lhe o parovoso branco e nada conseguia redigir, até q apareceu uma simples formiga e aquilo foi produto de sua criação.
Parabéns por mostrar mais uma vez q a singularidade das coisas em estar em ser singular.
Despois desta, não verei mais os insetos como inoportunos, mas possíveis de criação literária.
Satisfação.
Antonio JMS"
Professor,
Acho que essa barata era o próprio Kafka.
Era uma barata cara; pelo menos não era barata.
domingo, 1 de setembro de 2024
BARRAS DAS SETE BARRAS
Foto: Elmar Carvalho |
BARRAS DAS SETE BARRAS
Elmar Carvalho
Ao historiador e amigo Dr. Wilson Carvalho Gonçalves
Barras ...
Barras do Marataoan ...
Dos cânticos de pássaros
e cântaros e címbalos de
águas
em cantatas e cascatas
no rocio róseo-violáceo da
manhã.
Barras das sete barras
– candelabro de sete braços
de prata
líquida a escorregar macia
no dorso duro das pedras.
Barras do Longá
alongando-se
e se estilhaçando em rondas
de lãs
em rendas de espumas
nos bilros das pedras
tecelãs.
Terra dos Governadores,
do desgoverno das dores
das ciliciadas paixões
deliciadas na Ilha dos
Amores.
Terra de uns olhos fluidos,
feitos de mágoas, magia e
garridice,
embebidos na ciganice das
águas.
Terra dos milagres da Alda,
a que morreu virgem,
na vertigem de um sonho
que num átimo se fez e
desfez.
Barras da barragem
– miragem verdoenga
de minha origem/aragem
avoenga.
Barras de risos e de ais
de sempre e de
jamais.
Barras das sete barras
Barras dos sete punhais
de rios que se tecem pavios
e desvarios de réquiens
e exaltações, lembranças
e exalações ...