segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Antônio de Pádua e seu "cara baixa"

 

Pádua e seu jeep "cara baixa"

Recebi a fotografia acima através de WhatsApp. A postagem me foi enviada pelo contista e cronista Pádua Santos, que aparece à direção do jeep "cara baixa", de cor verde. Pádua já foi vereador, presidente da Câmara Municipal e vice-prefeito de Parnaíba.

Respondi o seguinte:

"Rapaz, um dia gostaria de dar uma voltinha nesse charmoso jeep, como carona. Kkkkk.

O bicho é muito bonito e nos leva ao passado e a Pasárgada."

Parnaíba é a minha Pasárgada, sobretudo a da segunda metade dos anos 1970. Em busca do passado, iria rever os velhos prédios, os vetustos sobrados, o Porto das Barcas e o rio Igaraçu, dos velhos porcos d'água e embarcadiços, que embarcaram, encantados, para um tempo "sem passado, sem futuro e sem presente", no destempo de um tempo que não volta mais.

############################

Após a publicação do texto acima, o amigo JOAMES, um dos maiores cordelistas do Piauí, me enviou os seguintes versos, o que muito me desvaneceu:

Eu não corro atrás de glórias
Nem para tê-las me empalho,
Mas corro atrás das histórias
Do poeta Elmar Carvalho!
(Joames).

Um amigo do alto clero e de alto coturno, brincalhão e muito inteligente, me fez a seguinte pergunta: "Parnaíba é sua Pasárgada por ser amigo do rei ou por ter a mulher que escolher? rsrs"

Respondi o seguinte: "Na verdade o é por coisas que vi e vivi, mas que hoje só existem na minha memória, que já se vai e se es-vai es...gar...çan...do."      

domingo, 29 de setembro de 2024

A MORTE DO CÃOZINHO

Fonte: Google

 

A MORTE DO CÃOZINHO


Elmar Carvalho

 

Sob a roda do carro

o cãozinho teve seu movimento

violentamente congelado

com seus dentes expostos

e seus olhos saltados

na perplexidade da morte inesperada

com sua cauda projetada

como ponto de exclamação.

Suas vísceras eram pontos de

interrogação espalhados no asfalto.

Na morte do cachorrinho

eu vi a vida esvaída

no seu gesto perdulário.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

3 Histórias de Papagaios

 




3 Histórias de Papagaios

 

Elmar Carvalho

 

1

Numa das reuniões da Academia Piauiense de Letras, o acadêmico Jesus Elias Tajra me chamou à parte e me disse haver gostado de minha crônica sobre o canto das rolinhas “fogo apagou”, e que esse texto o fez se lembrar de um papagaio, que criara em sua adolescência; me revelou um episódio comovente, que passo a contar.

Numa época em que não havia impedimentos legais à criação de animais silvestres, em sua infância e adolescência, criou, em gaiolas, algumas aves, entre as quais um papagaio, nomeado como Louro, que chamava pelo nome apenas sua avó, sua tia Olga e ele próprio, Jesus.

O papagaio lhe tinha muita afeição e uma consideração especial, como se o distinguisse das demais pessoas. Somente a ele concedia a graça de “dar o pé”, o que denota muita confiança e intimidade. Quando o jovem Jesus Tajra lhe estendia a mão direita, o Louro, muito satisfeito, se empoleirava no dedo indicador, certo de que era o seu animal predileto ou favorito.

Quando tinha em torno de 16 anos, e cursava o primeiro ou o segundo ano do antigo curso Científico, o garoto Jesus se apresentou ao Louro, trazendo um pequeno cachorro, de poucos meses de vida, e não lhe deu muita atenção, como costumava fazer.

Momentos depois, quando se dirigiu ao papagaio e lhe apresentou o indicador direito, o Louro, movido, ao que parece, por incontrolável ciúme ou despeito, aplicou-lhe forte e dolorosa bicada no polegar. O Dr. Jesus me mostrou a pequena cicatriz, que mais contribuiu para que ele nunca esquecesse esse fato e o seu desfecho dramático. 

Em seguida, de forma algo violenta e precipitada, talvez cego de ciúme, o papagaio desferiu um veloz voo para fora da área da casa, e terminou sofrendo fatal acidente, ao se chocar contra a fiação da rede elétrica. Não vou levantar a hipótese fantasiosa de que tenha sido um quase suicídio.

Mas considero tenha sido, no mundo dos papagaios, uma verdadeira tragédia, em sua passional inocência, que muita tristeza e emoção causou ao garoto Jesus Tajra.

 

2

Aproveito o ensejo para transcrever o que já escrevi, em texto memorialístico em homenagem a minha saudosa mãe (Rosália Maria de Melo Carvalho, *1933 – +2013), sobre um casal de papagaios, que ela criou com todo zelo e desvelo:

“Décadas atrás, minha mãe  ganhou um casal de papagaios. Criou-os com muito zelo, carinho e estima. Não lhes ensinou palavrões e nem cantigas indecorosas, como as que hoje nos agridem os tímpanos e a alma em quase todo lugar. Ensinou-lhes belas e alegres canções, inclusive religiosas, conquanto não fosse carola, avessa que era a hipocrisias e falsidades farisaicas.

Graças à sua obstinada determinação nesse mister, o Louro e a Rosa aprenderam um vasto repertório de palavras, frases e cantigas. Era muito engraçado ouvir-se a algazarra festiva dos papagaios, quando eles estavam de bom-humor, pois essas aves, como os humanos, cuja voz eles imitam, parecem ter os seus caprichos, em que alternam momentos de alegre expansão com momentos de sisuda introspecção, ou mesmo de certa melancolia.

Na manhã do dia em que mamãe morreu, os papagaios começaram a cantar uma das cantigas que ela lhes ensinou. Como uma espécie de premonição, o Louro e a Rosa cantaram o seguinte trecho de hino religioso: “Mãezinha do céu, eu não sei rezar / Eu só sei dizer quero te amar”. O Solimar, um de nossos vizinhos, acrescentou que, após o cântico católico, uma das aves teria pedido: “Vovô Miguel, traz o café”, tendo a outra acrescentado que o queria com leite. Que avezinha mais exigente!...

Pouco antes da chegada do corpo de mamãe, fato ocorrido à noite, os papagaios novamente cantaram o refrão acima transcrito, e também o seguinte trecho de melancólica marchinha carnavalesca: “Oh! jardineira por que estás tão triste / Mas o que foi que te aconteceu? / Foi a camélia que caiu do galho / Deu dois suspiros e depois morreu”.

O Louro e a Rosa pareciam ter pressentido a morte de minha mãe e a prantearam a seu modo, em sua inocência animal.

 

3

Aos 17/18 anos, fiz amizade com uma senhora bem idosa, mãe de um vizinho e amigo, com a qual gostava de conversar, à boquinha da noite, à porta de sua casa.

Em certa noite ela nos contou que sua filha, adolescente e de rara beleza, criara uma curica jandaia, que, embora não sendo um papagaio, aprendera a falar algumas palavras.

A jovem, além de bela, era uma pessoa encantadora e de boa índole, alegre e prestativa. Contudo, falecera no esplendor de sua beleza e adolescência. Sua morte precoce comoveu todas as pessoas da localidade.

A curica acompanhou o cortejo fúnebre e o sepultamento. Após a cerimônia, do alto de uma faveira em que pousara, voou, no instante em que o crepúsculo ganhava o seu máximo fulgor e melancolia.

Quando se passaram três dias, reapareceu e sobrevoou a casa dos pais da jovem morta, que se chamava Iracema. Pronunciou seu nome por três vezes: – Iracema, Iracema, Iracema. Juntou-se a um bando de jandaias que passavam, e dela nunca mais se teve notícia.

Muitas décadas depois, ao reler Iracema, o romance indianista de José de Alencar, lavrado em belíssima prosa poética, fiquei com a leve impressão de que a minha idosa amiga fantasiara a pungente morte de sua filha com reminiscência da leitura dessa obra, como se lhe quisesse dar uma beleza quase mítica. Com o final do romance de Alencar, encerro este relato:

“A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema.

Tudo passa sobre a terra.”  

RECEBI a mensagem abaixo, do amigo Claucio Carvalho, que corresponde, na verdade, à quarta história de papagaios:

"Meu irmão Fábio, no tempo de faculdade,  namorava uma garota em Recife.  Dormia às vezes na casa dos pais dela. Havia lá  um papagaio muito afeiçoado a Denise, a então namorada do meu irmão, hoje esposa. O bicho era muito ciumento e sem vergonha. Quando Fábio ia  tirar a barba ( fazia isso todo dia, era sub tenente do exército) e esquecia a porta do banheiro aberta, o papagaio chegava de mansinho,  aplicava uma bicada bem forte no calcanhar do meu irmão e saía correndo,    desengonçado,  atrás de Denise,   gritando ui, ui, ui. Quando era realizada alguma festinha na casa, os convidados usavam o banheiro externo, localizado no terraço,  onde ficava o poleiro do papagaio. Ao perceber alguém se dirigindo ao banheiro, dava o alarme: vais cagar,  vais cagar, vais, cagar.

Claucio Carvalho"

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

ÚLTIMA CARTADA

 



O velho amigo Paulo Couto postou a charge acima no grupo de WhatsApp do Clube dos Poetas Mortais, por ele idealizado, do qual faço parte. Enviei-lhe a seguinte mensagem: "Muitas décadas atrás, escrevi o poema abaixo, que me parece se ajustar à charge acima:" [O poema se encontra abaixo.]

ÚLTIMA CARTADA

Elmar Carvalho

O homem pediu
ao pombo-correio
que partisse e lhe trouxesse
um ramo verde de esperança.
O pombo retornou
apenas cansado.
A última árvore
o homem havia cortado
para fazer o esquife
em que seria enterrado.   

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Oeiras na Alma e no Coração



Recebi do amigo José Maria Carvalho o seguinte WhatsApp, em que ele se refere a meu opúsculo Oeiras na Alma e no Coração:

"Elmar Carvalho, poeta, escritor, contista, romancista, e magistrado que conta no seu livro, Oeiras na Alma e no Coração, quando se debruça em fatos históricos e pitorescos, ocorridos na região de Oeiras, contando com riqueza de detalhes, um pouco da história, onde busca fatos da historiografia, bem como de figuras notáveis que contribuíram com cultura e o patrimônio da primeira capital do Piauí. Elmar peregrinou por muito tempo, colhendo informações históricas, até então, nunca contadas por outros escritores, que por ali tiveram em busca de fatos históricos. Conta sua história desde quando visitou pela primeira vez a bela cidade de Oeiras. Tudo isso o fez com alma e coração como se um Oeirense fosse. Uma belíssima história de um renomado escritor Piauiense, Elmar é mesmo um referencial na arte de escrever e contar fatos históricos da cultura Piauiense, ele envereda com maestria no gênero da Literatura com suas relevantes obras em todos os campos. Parabéns!"

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

A Casa que Só, Ri

Foto da autoria do autor do texto


A Casa que Só, Ri


Fabrício Carvalho Amorim Leite (*)


A imagem de um passarinho cuidando do ninho, uma lâmpada apagada, uma casa abandonada. Ela vive sem mim, carregando seus temores e ardores.

Vive sem mim, com seus tijolos derretidos, guardiões de recordações — boas, ruins, esquecidas, despedaçadas — daqueles que um dia a habitaram.

A velha casa abriga ninhos de certos ratos, serpentes, baratas, morcegos e formigas que se nutrem sem medo.... Assim como as minhas memórias, que ali ainda se mexem e dormem no escuro.

O chão, corroído por cupins embriagados, azulejos manchados pelos cuspes de bebidas amargas, feridas fétidas e nunca cicatrizadas, testemunha de brigas desalmadas e o eco da solidão de uma família desfeita.

O cheiro de velho, de museu esquecido, daquilo que um dia foi útil e agora jaz em escombros, pairava pelos cômodos como um mau assombro. O Tempo, devorava tudo de dentro para fora, em sua lenta e inevitável transformação.

Mas, numa noite qualquer, a casa, antes morta, voltou a sorrir. Tanto que as telhas, antes deitadas, caíram de pé ao chão como lágrimas de alívio: do ovo do passarinho, nasceu um filhote. A luz se acendeu.

A Casa, Só, Ri, (s)em mim.

 (*) contista e cronista.

domingo, 22 de setembro de 2024

LAGOA DO PORTINHO

Fonte: Google

 

LAGOA DO PORTINHO


Elmar Carvalho

 

As dunas de alva areia

parecem um encantamento

onde encantada sereia

viesse seu (en)canto soltar.

Na beira da lagoa

uma trigueira Iara

no espelho de água clara

fica a se pentear,

desfiando longa mágoa

de rainha e de mãe d’água.

O sol joalheiro arranca

das filigranas da água

cintilações de jóias e de

estrelas nas noitescuras

sem lua lua luar,

enquanto em canto

a brisa dedilha

na lira lírica

das palmas dos coqueirais

músicas de (a)mar e (sonh)ar.

Veleiros de velas aladas deflagradas

hibridoanfibiamente passam

em elegante navevoar.

A lagoa e as dunas de areia

têm curvas caprichosas

como a geografia das lindas mulheres fatais.

                        Meu

            sonho/nave navega

                        nave na vaga do vento

            no descaminho

                                do alumbramento

                        e da magia da

Lagoa do Portinho.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

OS BICHANOS

Fonte: Google

              

OS BICHANOS


Elmar Carvalho                   

 

Dias atrás, a Francisca Maria descobriu três gatinhos, que o dono abandonou, covarde e sorrateiramente, na frente de minha casa. Os meninos do colégio defronte, principalmente as garotas, olhavam os bichanos com simpatia, mas ninguém se dispunha a levá-los para criar. Mas terminaram sendo acolhidos, um a um, através de incentivos recíprocos de colegiais.

 

Isso me fez lembrar a grande quantidade de gatos abandonados, que vagam por entre os túmulos e alamedas do cemitério São José, uma das mais antigas construções de Teresina. Não sei de que sobrevivem os bichanos do campo santo. Por associação de ideias, recordei-me de uma reportagem televisiva, que narrava o episódio de um gato extremamente apegado ao dono; quando este faleceu, o bichano passou a residir em seu mausoléu.

 

Não se sabe como, entre as centenas de sepulturas da imensa necrópole, o animal conseguiu localizar a de seu dono. Entre as hipóteses aventadas, falou-se de que o gato se guiara pelo olfato, através do qual rastreara o cheiro do falecido. De minha parte, não descarto a possibilidade de que esse animal possa ter outros sentidos, que desconhecemos, algo como uma intuição afinada, uma espécie de sintonia fina ou mesmo um sexto ou sétimo sentido. Sempre se falou que gatos são meios misteriosos e que teriam sete vidas.

 

Soube, tempos atrás, que um fato interessante aconteceu no velório de um primo de meu pai, chamado Gonçalo Furtado de Carvalho. Esse parente nascera em Piripiri, mas se radicara em Esperantina, onde se tornara uma pessoa estimada, graças ao seu bom caráter e serviços prestados. Deixou um livro de poemas.

 

Tinha ele um gato, de raça afamada pela beleza. O bichano lhe tinha verdadeira veneração, e era correspondido na mesma intensidade. Quando Gonçalo faleceu, o bichano como que participou do velório. De tardezinha, na hora da saída do cortejo fúnebre, o gato inesperadamente saltou para cima da urna funerária, e começou a beijar com sofreguidão o tórax de Gonçalo, como se estivesse se despedindo. Ou como se pretendesse acordá-lo.

 

Parecia saber que não mais o veria, e quisesse, dessa maneira, externar, da forma mais carinhosa e sentida que podia, a sua homenagem, gratidão e amor. Creio que quem mereceu tão enfática e comovente homenagem de um ser, que muitos chamam de bruto, só pode ter sido um homem verdadeiramente bom.

1º de setembro de 2010

terça-feira, 17 de setembro de 2024

O céu, o rio e o mar

Fonte: Google

 

O céu, o rio e o mar


Frederico A. Rebelo Torres

Poeta e escritor

 

Tempo, correnteza que leva consigo,

 No seu caminho eterno o que se ama

 As alegrias, a força, o encanto, os risos,

Limiar, derradeiro portal que se alarga.

 

A Vida: uma busca por sentido e abrigo,

Cujo percurso é onde o destino nos testa.

O amor, a esperança, o sonho, os amigos,

 São luzes no escuro que a vida nos oferta.

 

E nos tornamos nosso próprio engenho,

A remoer suas lembranças no crepúsculo,

Onde nosso passado revisita suas sombras.

 

Por fim, todos encontraremos nossa foz,

E mergulharemos sem peso, sem desalento,

Pois a vida é rio que ao mar se entrega.

domingo, 15 de setembro de 2024

AMARANTE

 

Fonte: Google

AMARANTE


Elmar Carvalho

 

doce amaro

         pródigo

         avaro amarante

         ante-amar-te

         anti-amar-te

antes sempre após

agora

sem agouro sem demora

sem pressa e sem presságio

        pé ante pé

        perante tuas casas sonolentas

diante das fráguas das serras

que descerras em cortinas de azuis

                        descortinas neblinas

na paisagem – plumagem/brumagem fixada

na retina retentiva redentora do poeta

                        amarante

                        amaranto de

memórias atávicas de catimbós

murmúrios ancestrais de urucongos

requebros lascivos de velhos congos

resquícios longínquos de quilombos

encravados em abissais cafundós

dos antepassados cativos altivos dos mimbós

            perante ti

            amarante

a água escorre lacrimal

pela sinuosidade do morro da saudade

deságua na desembargador amaral

            e de val em val

               de sal em sal

boceja nas bocas de lobo dos esgotos

gargareja nas gargantas gosmentas dos gargalos

            mergulha e deriva singular

nas águas plurais do parnaíba

            amarante

            perante ti

            imperante

o vento verdeja agreste nos ciprestes

rumoreja aguado nos aguapés

sacoleja sem leste oeste

a copa fagueira das faveiras

            tuas tardes tardas dolentes amaras

                        abres das janelas

                        debruçadas em melancolias

            e alicias e (re)velas

as moças nas modorras mormacentas macilentas

em que delicias cilicias e acalentas ...

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

O GRITO

Fonte: Google

                    

O GRITO


Elmar Carvalho

 

Atravessamos dias difíceis, conturbados, em que o egoísmo impera desabrido. Já tive ocasião de dizer que o egoísmo em excesso é o pai de todos os vícios, é a matriz de todos os pecados, é o estopim de crimes hediondos. Esse sentimento pode levar o indivíduo a cometer assalto, estupro e latrocínio. Por quê? Porque se o indivíduo não tiver outros sentimentos e virtudes, que freiem o seu egoísmo e egolatria, poderá cometer esses crimes e pecados, porquanto o que lhe interessa é a satisfação de seu desejo, de sua vontade.

 

Deseja ter uma mulher? A terá, ainda que para isso tenha que estuprá-la. Deseja ter dinheiro? Obtê-lo-á, ainda que para tal fim tenha que assaltar alguém ou tenha que matar o seu semelhante. Estamos numa época de muito hedonismo, em que o que interessa é o prazer, ainda que a altos custos, como o uso de drogas ou a agressão à suscetibilidade do outro.

 

Vemos a cada passo os intolerantes, os que não aceitam limites, nem mesmo de um simples semáforo ou o limite de velocidade ou regras de trânsito. São os que têm de passar de qualquer maneira, mesmo arriscando sua própria vida ou, o que é pior, pondo em risco a vida dos outros. Muitos começam dentro de casa, quando forçam seus pais a lhes dar sempre mais, quando ficam a exigir cada vez mais supostos direitos, sem dar a mínima atenção aos seus deveres, mesmo os mais primários.

 

Começam, muitas vezes, com pecadilhos que vão crescendo, que vão aumentando até que se tornam uma montanha de pecados cabeludos, que não raras vezes constituem crimes hediondos. Falei tudo isso como um prelúdio estridente para contar o que se segue.

 

Faz poucos dias minha mulher viu uma cena, quase diria dantesca, no estacionamento de um dos shoppings da capital. Um jovem, já adulto, insistia de forma intransigente para que sua mãe lhe fosse comprar um objeto, que ele dizia ser barato, posto que custava R$ 60,00. A mulher se recusava a ir, dizendo não ter dinheiro disponível.

 

Mas ele não aceitava um não como resposta, e continuava a insistir para que sua mãe fosse comprar o objeto de seu desejo consumista, sempre martelando na tecla de que era um produto barato, uma vez que custava “apenas” a bagatela de R$ 60,00, como se ele, ao considerar arbitrária e unilateralmente um objeto barato, passasse a ter automaticamente o direito de possuí-lo, ainda mais às expensas de sua mãe.

 

A senhora, já começando a gritar, disse-lhe que iria gritar. E como ele continuasse a persistir, a mulher, transtornada, completamente fora de controle, emitiu um grito agudo, estridente, um grito de desespero, de desamparo, um grito de socorro, um grito de dor espiritual e de revolta, que ecoou pelo estacionamento, que atroou pelos ares em busca de anjos e santos. Creio que o grito foi semelhante ao que o pintor Edvard Munch tentou expressar no quadro que leva esse título.

 

Ou seria mais semelhante ao que o sublime poeta Rainer Maria Rilke imaginou, quando disse na primeira das Elegias de Duíno: “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?” Suponho que algum anjo deve ter acolhido o grito dessa mãe desesperada, dessa mãe impotente ante a incompreensão do filho, que na verdade era o seu algoz.

31 de agosto de 2010

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

A MORTE DA BARATA


                    

A MORTE DA BARATA


Elmar Carvalho

 

Ontem uma barata, por várias vezes, tentou tocar-me os pés. Eu os batia, enxotando-a, mas logo ela investia novamente. A insistência desse inseto, pavor das mulheres em geral, acabou por me torrar a paciência. Devo dizer que faz alguns anos não gosto de eliminar nenhum tipo de ser vivo, nem mesmo baratas, moscas e grilos.

 

Aliás, já fiz uma crônica em que tratei de um grilo. Godofredo Rangel, antes de mim, escreveu um texto sobre o caso de um grilo, em que ele, para dar liberdade a esse impertinente e enfadonho cantor, o conduziu para o quintal. Seu gesto caridoso, porém, foi fatal ao inseto, porquanto ele terminou indo parar no papo de uma faminta e gulosa galinha.

 

As cigarras foram cantadas em verso e prosa; em fábulas, e em sonetos de Olegário Mariano. Um dos personagens de Kafka, como é sabido por todos, acabou por se metamorfosear num inseto. Tornou-se página antológica, recolhida em muitas seletas, o capítulo XXXI de Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual a personagem ficou incomodada com a presença de uma grande borboleta, pelo simples fato de ela ser negra. Um golpe de toalha encerrou sua vida. A personagem, em irônica autocomplacência, ainda se perguntou, como atenuante, por que não era ela azul.

 

Recentemente, ao vivo e em cores, como se dizia outrora, ou em tempo real, como se fala agora, viu-se o presidente Barack Obama, em piparote certeiro e fulminante, abater uma mosca que lhe importunava durante uma filmagem de televisão.

 

Mas, como eu dizia, faz muitos anos que não gosto de tirar a vida de nenhum ser, por menor que ele seja, mesmo nocivo, como aranhas e caranguejeiras. Não me sinto bem em fazê-lo. Contudo, como a personagem machadiana, terminei ficando aborrecido com a insistência da barata em querer lamber-me os pés. Resolvi fulminá-la com leve golpe de chinela japonesa. Brandi a arma sem raiva e a contragosto, sem muita vontade de eliminá-la. O inseto ficou completamente imóvel, de forma que o dei como morto. Em seguida, o afastei para um canto do compartimento, onde ficou de patas e papo para o ar.

 

Para minha surpresa, hoje à tarde, não mais vi o menor vestígio dele. Dizem que é um dos animais mais resistentes, e talvez seja o único espécime que sobreviveria à radiação de uma guerra nuclear. Sendo assim, é bem possível que tenha mesmo resistido ao golpe de minha alpargata. Melhor assim. Mas se assim não foi, que descanse em paz.  

25 de agosto de 2010

O professor Antônio José Melo dos Santos me mandou o seguinte comentário, por WhatsApp:

"Bom dia, caríssimo.


Li sua crônica.


Vc soube equilibrar muiito bem a sensação grotesca q um barata comumente nos faz sentir, combinado a um passeio literário deste e doutros insetos na literatura universal.


Não lembro o autor (poeta ou escritor) q ao sentar para escrever, veio-lhe o parovoso branco e nada conseguia redigir, até q apareceu uma simples formiga e aquilo foi produto de sua criação.


Parabéns por mostrar mais uma vez q a singularidade das coisas em estar em ser singular.


Despois desta, não verei mais os insetos como inoportunos, mas possíveis de criação literária.


Satisfação.


Antonio JMS"

Professor,

Acho que essa barata era o próprio Kafka.

Era uma barata cara; pelo menos não era barata.

domingo, 1 de setembro de 2024

BARRAS DAS SETE BARRAS

Foto: Elmar Carvalho


BARRAS DAS SETE BARRAS


Elmar Carvalho

 

          Ao historiador e amigo Dr. Wilson Carvalho Gonçalves

 

Barras ...

Barras do Marataoan ...

Dos cânticos de pássaros

e cântaros e címbalos de águas

em cantatas e cascatas

no rocio róseo-violáceo da manhã.

Barras das sete barras

– candelabro de sete braços de prata

líquida a escorregar macia

no dorso duro das pedras.

Barras do Longá alongando-se

e se estilhaçando em rondas de lãs

                                em rendas de espumas

nos bilros das pedras tecelãs.

Terra dos Governadores,

            do desgoverno das dores

das ciliciadas paixões

deliciadas na Ilha dos Amores.

Terra de uns olhos fluidos,

feitos de mágoas, magia e garridice,

embebidos na ciganice das águas.

Terra dos milagres da Alda,

a que morreu virgem,

na vertigem de um sonho

que num átimo se fez e desfez.

Barras da barragem

– miragem verdoenga

de minha origem/aragem avoenga.

Barras de risos e de ais

             de sempre e de jamais.

Barras das sete barras

Barras dos sete punhais

 de rios que se tecem pavios

e desvarios de réquiens

e exaltações, lembranças

e exalações ...