quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A vida longe de casa


A vida longe de casa

José Pedro Araújo
Escritor e historiador

As mães têm razão em se preocupar quando um filho ganha o mundo atrás da sua própria sorte. No geral, elas ficam imaginando que tipo de problemas vamos encontrar pela vida afora, quais os perigos que correremos, e isso faz com que se perguntem se os filhos foram realmente bem orientados e se saberão enfrentar as vicissitudes que encontrarão pelo caminho. Na maioria das vezes, não estão.  Não sabemos como reagir a determinado tipo de óbice que encontraremos pela frente. Mas, o homem foi dotado de inteligência exatamente para saber encontrar saídas para qualquer tipo de dificuldade, desde as mais simples até aquelas em que sua própria vida está em jogo. Na maioria das vezes, com alguns arranhões e uma dose excessiva de sofrimento, nos safamos com certa competência dos entraves mais difíceis que a vida se nos apresenta.

Comigo não aconteceu diferente. Quando sai de casa, contava com meus quinze anos incompletos e encontrei um mundo cheio de novidades a desafiar o meu aprendizado doméstico. Pelo jeito, ainda não parei de tentar aprender como me situar bem nesse ambiente que teima em me por à prova continuamente e, na maioria das vezes, quando isso acontece, vejo que as experiências adquiridas não foram suficientes, e ai tenho que usar da criatividade para não sucumbir ao novo desafio. Posso dizer que já vi muita coisa nesse mundo velho que eu nem de longe achava que fosse possível existir. Coisas boas, coisas ruins, outras nem tanto. Situações de extrema beleza, outras muito feias. Mas, sempre é possível nos depararmos com acontecimentos que nos causem verdadeiro estupor. O certo é que vamos vivendo e aprendendo continuamente, sempre viajando rumo ao desconhecido.

Quando atingi dezoito anos, mudei-me para Recife, para cursar Engenharia Agronômica na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Fui morar no campus da própria Universidade, lugar onde ficavam os estudantes com menor poder aquisitivo, pois os mais bem aquinhoados financeiramente se organizavam em grupos e formavam uma nova república. Quem procurava uma vaga para viver no próprio campus, sabia de antemão que teria de obedecer a regras rígidas, enquanto que os moradores das repúblicas de estudantes ditavam as suas próprias regras de convivência e, no geral, possuíam mais liberdade de ação do que os primeiros. Não foi fácil me acostumar à nova vida. Ali, no princípio, tive que organizar a minha vida sozinho: lavar a minha própria roupa, me virar para arrumar comida quando o final de semana chegava ou quando vinham os feriados prolongados; manter o quarto de dormir em perfeita ordem era basilar, e me defender, construir o meu próprio espaço em meio ao clima feroz que se instalava a todo começo de ano letivo, quando os alojamentos recebem novos moradores. A propósito disto, tive que sair às vias de fatos por duas ou três vezes, para mostrar para os colegas que a minha estada ali era definitiva, pelo menos até a conclusão do curso. Era assim na hora do jogo de futebol, na escolha do melhor local e da melhor posição no beliche e, até mesmo, na hora de assistir a TV.

Antes disso, já vinha acumulando as minhas experiências, vivendo em pensionatos dos mais diversos, onde as coisas aconteciam muito diferente do que costumávamos ter em nossos lares. Em São Luís do Maranhão tive a oportunidade de conhecer alguns dos piores pensionatos da face da terra. Geralmente ficavam localizados em algum dos prédios antigos localizados na região velha da cidade, por dois motivos: por serem sempre muito espaçosos, dando para acomodar muita gente, mas, principalmente, por serem de baixo custo os seus aluguéis. Baixo preço porque estava, a maioria, em petição de miséria, mais parecendo escombros de uma cidade abandonada. Geralmente, também, as pessoas que se dedicavam a montar um pensionato desses, faziam assim para ter alguma ocupação à total falta de outro meio de vida. Deste modo, criavam a sua própria família em meio à estudantada que ia chegando para morar com eles.

Certa vez, fui residir em um velho prédio da Rua de Santana. A república estava em formação e uma parte dos estudantes era originária da minha cidade. As acomodações eram simplicíssimas: um grande salão foi dividido por tapumes de compensado de cerca de um metro e oitenta centímetros de altura de modo que coubesse cerca de três a quatro pessoas em um espaço de cerca de nove metros quadrados. As redes se entrançavam umas nas outras e era comum acordarmos no meio da noite após tomar um chute do colega que dormia ao lado. A comida também era de qualidade no mínimo duvidosa e a quantidade também deixava a desejar, em uma época da vida em que os jovens costumam comer muito. Assim, logo que as travessas chegavam às mesas, a moçada avançava sem pena sobre elas, pois sabiam que quem ficasse por último fatalmente ficaria com pouquíssima coisa, ou nada mesmo para por no prato. A da carne, era a travessa que tinha a primazia de primeiro ser atacada. Todos entravam de garfo em punho, pois se algum incauto metesse a mão ali, corria sério risco de tê-la furada em vários lugares. Em suma: aquilo não era lugar para principiantes ou envergonhados.

Residia ali gente de todos os tipos, desde os mais experientes, até aqueles que estavam saindo de casa pela primeira vez. Até mesmo duas moças que passavam por estudantes, mas, que no fundo não passavam de garotas de programa, vieram morar conosco, para deleite da maioria.

Este pensionato era dirigido por uma senhora distinta, mas que precisava dele para sobreviver. Deste modo, procurava economizar em tudo, especialmente no tocante a aquisição de alimentos. Grande parte do que consumíamos vinha do interior, especialmente os gêneros de primeira necessidade e menos perecíveis. Assim, a fava, um cereal de que gosto muito era largamente utilizada por ser, naquela época, um produto mais barato que o feijão. Certa feita, a nossa senhoria cozinhou uma quantidade muito grande da fava que daria para a semana inteira e acomodou na geladeira para retirar, por vez, somente a porção que considerava necessária. A presença daquele cereal pré-cozido ali começou a contaminar com o seu cheiro a água que bebíamos, de modo que além de ter que comer da mesma, ainda tínhamos que bebê-la. A fava, quem já comeu sabe, é muito indigesta, e costuma provocar grande flatulência em quem a consome de forma exagerada. Deste modo, lá pelo meio da semana, já não aguentávamos mais nem sentir o cheiro da comida. Reclamamos com a nossa senhoria do uso excessivo daquele cosido. Não funcionou. Respondeu-nos que tinha cozinhado uma porção para a semana inteira, e não ia desperdiçar nada.

Convocamos a estudantada para uma tomada de posição e decidimos que seria drástica. E eu, um dos mais veteranos, me encarreguei de por em prática o audacioso plano que consistia em dar completo sumiço no que havia sobrado do cozido. Ai então, por volta de meia-noite, quando a dona da pensão dormia profundamente, chamei um ajudante e fomos até a geladeira e de lá retiramos a panela que continha a fava pré-cozida. O cheiro de azedo tomou conta do ambiente de tal maneira que ficamos preocupados que alguém viesse a acordar e nos flagrar praticando o ato irregular. Felizmente nada disso ocorreu. Rapidamente saímos do prédio e ganhamos a rua, descendo a ladeira que vai dar no Mercado Central. A noite estava tranquila e uma leve brisa varria a cidade adormecida. Ao chegarmos a um terreno baldio, no meio da ladeira, lançamos a panela com o que havia nela e retornamos para casa.


Na manhã seguinte, ao dar pela falta da sua panela, a mulher indagou o que havíamos feito com ela. Respondemos, obviamente, que não sabíamos de nada. Enfurecida ela nos disse que não sabia de fato quem havia dado sumiço na sua fava, se não o abusado pagaria caro pelo gesto irresponsável. Mas, pelo modo que me olhou, foi como se me acusasse sem palavras. Desde aquele dia a minha permanência naquele pardieiro ficou comprometida. Não demorou muito e tive que me mudar para outro patronato. A vida, longe de casa, nunca é fácil!  

IHO - CONVITE

 
                 INSTITUTO HISTÓRICO DE OEIRAS  IHO
                                                 
                                                       CONVITE
O Instituto Histórico de Oeiras - PI convida para o lançamento de sua Revista nº19, com apresentação de Gutemberg Cavalcante Rocha participação especial da Banda Santa Cecília Mirim e dos músicos Herberth Vinícius Virgílio de Sousa e Maurício de Sousa Damasceno.
 PROGRAMAÇÃO:
Data: 03-10-2015 (Sábado).
Horário: 20h. 

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Poesia e ruptura em Luiz Filho de Oliveira*


Poesia e ruptura em Luiz Filho de Oliveira*

 Cunha e Silva Filho

1. INTRODUÇÃO.

            Duas diferenças de construção poética saltam à vista após a leitura das duas obras do jovem poeta piauiense Luiz Filho de Oliveira; a primeira, suscitada pelo livro BardoAmar [1] me conduz como leitor diretamente ao aspecto visual; a segunda, provocada pela leitura de Ondehumano [ 2] me leva sem esforço ao universo do léxico, i. e., da palavra, tomada aqui no sentido mais despojado de poiésis, do vocábulo elevado ao estatuto mais nobre do eixo da seletividade (paradigmático) sobre o eixo da combinação (sintagmático), segundo o pensamento teórico de Jakobson sobre o que pensava da função poética. Dessa junção lúcida e lógica advêm as chamadas estranhezas do discurso poético moderno. Essa ideia do fazer poético corresponde, a meu ver, àquele conceito de “imprevisibilidade” de outra linha de pensamento crítico-teórico. Não quer isso significar que, no primeiro livro, o poeta abdique de suas preocupações com o verso enquanto discurso lírico. Longe disso, as duas diferenças são somente componentes básicos nas duas obras mencionadas.

          Neste estudo, vou-me concentrar no que os dois livros de poesia de Luiz Filho de Oliveira possam propiciar de novo ou de velho à lírica brasileira. Em carta do autor a mim endereçada, o poeta fornece alguns dados paratextuais sobre os motivos de sua experiência não só quanto ao início de seu interesse pelo gênero poético mas também como chegou a publicar seus poemas e mais outras razões que o fizeram trilhar a solitária aventura do que já se chamou a mais pura das formas literária.
Já anteriormente havia lido alguns textos em prosa do autor, os quais me provocaram uma sensação de estar diante de um escritor avesso ao conservadorismo ou à gratuidade. Sua prosa (tanto quanto com maior intensidade na poesia)), diria mais precisamente crônica ou ensaio, é vazada de estranhamentos, sobretudo no modo de colocação dos pronomes oblíquos e de outras excentricidades de usos gráficos e léxicos no corpo de discurso. Não sei se, no futuro, vai se afastar desses expedientes - o que para mim seria melhor quando se tratasse daqueles gêneros literários.
         Creio que o caminho melhor seria aquele trilhado tão bem por Ferreira de Gullar na crônica ou no ensaio (ele, que já foi tão subversivo e experimentalista na poesia). Por outro lado, no âmbito do poema, em decorrência da própria natureza intrínseca da linguagem poética, aí sim, todo esforço criativo e contra-ideológico seria válido nos estreitos limites da literariedade e com uma vantagem a mais: respeito, ousadia e dignidade intelectual.
.       O resultado da leitura dos dois livros, no geral, é promissor. Além disso, acrescentaria um pormenor curioso. Segundo o autor, Ondehumano enfeixa poemas anteriores à experiência experimentalista de BardoAmar que, de certa maneira, inverte o processo de continuidade da segunda obra.
        Ou seja, enquanto vivência poética, o segundo livro, Ondehumano, cronologicamente deveria ser virtualmente o primeiro, visto que, segundo aduz o poeta, “é um livro experimental mais sóbrio” se comparado ao primeiro. Para simplificar, do meu ângulo de leitor, Ondehumano, a despeito de incluir grande parte de poemas anteriores ao primeiro livro, é, todavia, o que, a meu juízo, servirá como coerente avanço no percurso poético de Luiz Filho ainda que seja um pouco cedo demais para um julgamento mais conclusivo das possibilidades futuras de seu estro, sem cair numa espécie de fatalidade que tem acometido poetas piauienses, os quais, depois de publicarem um número pequeno de obras, ainda dispondo de muitos anos pela frente, silenciam praticamente ante o futuro de seu projeto poético no início tão promissor. Não resta dúvida, entretanto, de que Ondehumano é, até agora, a constatação mais consistente de um talento com indicativos seguros, vias nítidas e potencial criativo aberto e pronto a desenvolver novos temas e formas elaboração no domínio do verso.
        Permito-me delimitar , porém, o alcance lírico de BardoAmar e procurar, então, sondar-lhe as especificidades de um autor que deu seus primeiros frutos no difícil e competitivo.mundo das letras.Oh! como estava longe da verdade contemporânea o historiador literário inglês John Burguess Wilson, ao vaticinar, erroneamente, como, aliás, outros, o futuro da poesia: “Não existe um poeta vivo que consiga viver de poesia. Mau sinal que talvez acene para a inexistência de um futuro para a poesia.” [ 3] campo da poesia na faixa dos vinte anos.
       Sua produção editada é diminuta se confrontada com os anos de sua convívio com a musas.. Isso, porém, não vem ao caso quando o que pesa para a literatura é a qualidade do que se escreve e, nesse particular, Luiz Filho com apenas dois livros já me permite um julgamento favorável, segundo anteriormente assinalei.

     Na introdução à poesia de Luiz Filho de Oliveira, a princípio prometera, num só estudo, abordar as duas obras do poeta. No entanto, à medida em que ia desenvolvendo as ideias sobre o livro de estreia, BardoAmor, ia verificando que a análise estava crescendo além do objetivos previamente traçados. Por isso, me decidi a me ater neste trabalho somente ao primeiro livro. Vou reservar o segundo livro, Ondehumano para um outro ensaio que pretendo escrever posteriormente.
      Pela faixa etária, Luiz Filho se colocaria na geração de poetas do final dos anos oitenta aos inícios dos anos noventa. Quer dizer, geração de poetas bem atravessados pelos tempos da pós-modernidade, da experiência cibernética, de uma indústria cultural cada vez mais tentacular em razão dos avanços vertiginosos na área tecnológico-eletrônica, em tempo de economia globalizada, em tempo também de ameaça cíclica de instabilidade econômica e de hegemonia midiática, principalmente via Internet.
     O poeta viveu também na carne, posto que, pela idade, ainda imatura para a compreensão de tantas mudanças estruturais e políticas no país, os últimos anos da ditadura militar, as primeiras manifestações da redemocratização política nacional, assim como testemunhou o período pós- Guerra-Fria, a Queda do Muro de Berlim, o esfacelamento do Comunismo russo, a Guerra do Golfo Pérsico, as ditaduras na América Latina, entre outros fatos e mudanças no país e no mundo. É que n o século 20 das últimas décadas o poeta se situa como indivíduo e como jovem intelectual ansioso por expressar seu sentimento poético histórica e culturalmente contextualizado. Sua poesia não pode fugir a esses condicionamentos de uma época.
  BardoAmar, de resto, é livro premiado em 2000 num concurso realizado pela FUNDEC e se classificou em segundo lugar. Antes, fora selecionado num “Concurso de Poesia Antero de Quental,” no II Festival de Inverno de Educação de Itajubá, Minas Gerais. O concurso lhe valeu participação em antologia.
   Um dos fascínios pelos quais o texto em poesia me seduz vem a ser a imensa possibilidade de releituras de um mesmo livro graças, é claro, ao poder de síntese inerente ao gênero. Daí ser a leitura poética para o critico uma atividade muito mais concentrada, mais visceral, a que vai corresponder um mergulho mais denso e totalizante do objeto poético. Na prosa, fica mais difícil essa prospecção vantajosa à hermenêutica. Por esse motivo, no trabalho de análise de um volume de poemas, devido em geral à exiguidade do número de páginas, o instrumental crítico torna-se muito mais fácil de operacionalizar, o que nada tem a ver com as dificuldades intrínsecas também à prosa.
   Não seria gratuito ou ingênuo afirmar-se ao jovem escritor de hoje, seja na prosa, seja na poesia, que o esforço despendido na composição de uma obra literária demanda muito maior suor intelectual do que no passado, aqui entendido como um vasto e variado período abrangendo, com se sabe, vários séculos de tradição literária e especialmente quando se leva em conta as vanguardas europeias que reconfiguraram drasticamente os estilos literários a elas anteriores.
   Em outras palavras, o poeta, o ficcionista, o teatrólogo de hoje, quer desejem ou não, não podem evadir-se da contingência de ser uma simples partícula dessa considerável cadeia de estilos e linguagens literárias inserida, formando o circuito da tradição ou cânone, e, ademais, agravada por vezes pela ideia da chamada “angústia da influência” formulada por Harold Bloom, que não deixa de ser uma espécie de “pedra no meio do caminho” de novos autores na seara da poesia.
   Desta forma, Luiz Filho, por seu turno, não pode assim ser uma exceção a essa conjuntura da história da literatura universal. No movimento paradigmático das letras brasileiras, indissociável daquele circuito de tradição ocidental e divisor de águas entre o conservadorismo e a ruptura convocada pelos defensores do Modernismo de 1922 com a sua histórica e exaustivamente citada e pesquisada Semana de Arte Moderna de 22 no Teatro Municipal de São Paulo, o passado foi, na primeira fase do movimento, vigorosamente rechaçado e a literatura brasileira genuína (?) passaria a ter seu marco zero a partir daquele ano-símbolo.
    Essa atitude dos prógonos do Modernismo, sempre me pareceu algo exagerada, porquanto não é possível zerar a dimensão permanente da tradição literária. Não há presente sem a dimensão durável do passado, i.e., não se pode descartar esse legado não social, histórico, quanto sobretudo de substrato cuja moldura é sólida e não pode ser abolida por um “presente” de uma certa contemporaneidade que são as rupturas das formas estéticas, das chamadas vanguardas, por sua vez, também efêmeras.
   Contudo, a história literária do país sofreu, em linhas gerais, a partir de 1945, principalmente na poesia, uma forma de retrocesso em relação aos princípios fundamentais da nova estética impiedosamente transgressora que caracterizou os primeiros anos dos modernistas históricos, tendo à frente um Mário de Andrade, um Oswald de Andrade, entre outros.
   Já na segunda fase do Modernismo, na década de 30 do século passado, a virulência iconoclasta arrefeceu e aparou os seus iniciais ímpetos corrosivos face ao passado e iniciou uma nova postura estético-temática, procurando um equilíbrio onde nem se voltaria mais às fontes parnasianas anacrônicas nem tampouco se permaneceria irredutível nos limites estreitos dos experimentalismos e pirotecnias inócuas.
  Procurou-se, antes, uma via ou vias renovadoras que exprimissem literariamente um Brasil sintonizado com a sua cultura, suas tradições, com a sua língua e com os seus modos de tentar aproximar o mais possível do povo a realidade da nação, com seus problemas peculiares, muitas dificuldades e incertezas políticas e econômicas num país que, para dar um só exemplo significativo, viveria os embates da Revolução de 30 liderada por Getúlio Vargas e, na mesma década, sofreria um retrocesso político com o Estado Novo (1937-1945)sob novamente a tutela de Vargas com todas as sequelas de males inerentes a uma Estado ditatorial e, contraditoriamente, de conquistas no plano social, sobretudo na área dos direitos dos trabalhadores.
    Por outro lado, a questão da inserção do povo na ficção e nos principais gêneros literários brasileiros precisa de ser um tanto relativizada, visto que os movimentos literários têm caráter hierarquizante e mesmo elitista quando os entendemos como mudanças estéticas de cima para baixo, de uma elite intelectual para a qual o povo pode ser matéria de temas e de linguagens mas delas não co-participam do tripé autor+obra+ leitor, este último sendo quase sempre sujeito passivo ou externo pelas próprias condições de penúria cultural e escolaridade que o impossibilita à fruição dos bens culturais das elites intelectuais. Esse é o grande dilema entre a vida intelectual e o povo, o homem comum, o operário.
   Os escritores que, em 1945, não se afinaram com algumas conquistas estéticas de 22 e de 30, procuraram, ainda que de forma não uniforme nos seus preceitos estéticos, reagir contra as formas variadas tomadas pelo Modernismo e suas diferentes manifestações estéticas inovadoras, numa atitude estética que os levavam a uma espécie de Neo-parnasianismo, ressuscitando o uso do soneto, da métrica, da rima e das imagens plásticas, corpóreas, concretas e objetivas no que concerne aos temas e a uma linguagem refinada, aristocratizante. Entretanto, cumpre ressaltar que as “geração de 45” não desejou, entre os inúmeros adeptos de sua estética, uma mera cópia do velho Parnasianismo.
   Nem tampouco isso seria possível em termos absolutos, pois a poesia brasileira, após o vendaval modernista, jamais seria a mesma e é nesse ponto que surge um poeta que, embora se inclua na “geração de 45,” logo seguiu um caminho independente. Falo de João Cabral de Melo Neto, cuja práxis poética não confirmou a tendência geral daquela geração, preferindo, consoante pondera bem Sílvio Castro[4] deixar sua poesia permear-se de algumas influências da geração poética de 30, muito fértil também na ficção, sobretudo com os romances nordestinos de 30.
    Sendo assim, Cabral pagou tributo à poesia de Carlos Drummond de Andrade pela vertente política, à poesia de Augusto Frederico Schmidt no que concerne a uma “aparente falta de consciência formal”[5] e ainda até à poética de Murilo Mendes quanto ao aproveitamento da “informalidade compositiva dos poemas imagísticos,” não sem antes serem por João Cabral “criticados e negados”[6] Quer dizer, João Cabral, tanto quanto outros poetas da “geração de 45,” após negarem conquistas expressivas do Modernismo de 22, não deixam, entretanto, de reaproveitarem “dialeticamente” valores que provêm desse mesmo marco histórico decisivo aos futuros avanços estético-formais da poesia brasileira.

2. DA GEOMETRIA DA CAPA ÀS DESARTICULAÇÕES SILÁBICO-SEMÂNTICAS.

     No início deste estudo da poesia de Luiz Filho tinha chamado a atenção do leitor para um aspecto dominante de BardoAmar: o campo pictórico. Só para alertar, lembro a circunstância de que neste livro o elemento visual se enlaça umbilicalmente em toda a extensão do volume, o que é facilitado por ser o autor quem preparou as ilustrações do livro. Ou seja, é intencional a fusão aqui da palavra poética com a arte visual, remetendo logo ao velho preceito horaciano do ut pictura poesis. Exteriormente, torna-se palpável o largo uso de natureza icônica entre as linhas do desenho e a palavra conotada.
   Veja-se o anverso da capa do volume onde se harmonizam intimamente o título do livro e os elementos pictórico-geométricos, já entremostrando, então, rupturas sintagmáticas, recurso amplamente empregado pelo autor.Em BardoAmar, o verbo em forma nominal reduzida do infinitivo se aglutina a uma anacrônica e solene designação da palavra “poeta”, além de que essa mesma aglutinação cria certa ambiguidade – recurso igualmente encontradiço neste poeta - despertando associações, por exemplo, com variadas estruturas possivelmente desdobráveis: “amar um bardo,” “o amor de um bardo” ou até mesmo uma associação virtualmente possível e de valor morfológico, atribuindo a “bardo,” por derivação imprópria, um valor adjetivo.
     A par disso, anda no espaço do mencionado anverso da capa, há um significativo desenho de uma caravela que, por sinal, se repete três vezes mais no corpo do livro. Cabe, neste sentido, uma observação. Na chamada advertência, ou prólogo do livro, Luiz Filho, à semelhança de antigos poetas românticos, à frente Gonçalves de Magalhães, nosso introdutor do Romantismo brasileiro, com os seus Suspiros poéticos e saudades (1836 ), reporta-se a uma viagem, ideia reiterada pelo habilidoso pastiche dessacralizante e oswaldiano do terceiro verso do Canto I, Proposição do clássico épico Os lusíadas: “.. bares & mares muito gigantes navegados.”
       Aliás, , este tipo de procedimento técnico do autor, ao longo do livro, se vai novamente insinuar junto a leitor. Quero antecipar que as alusões, tão poderosas hoje na poesia contemporânea e que há tempos já fora prenunciada pelo critico inglês I. A Richards,[7] em BardoAmar se fazem igualmente presentes, em que o antigo, i.e., o passado, em termos de estilos literários, esteticamente deliberado aqui e ali, se mostra fértil, provavelmente naquela mesma linha de pensamento da poesia de Manuel Bandeira (O itinerário de Pasárgada) segundo a qual o poeta apenas desejou prestar homenagem ao legado de ancestralidade lírica.
    O texto “Advertência” (p.10), finalmente, embute as pressuposições estéticas e escolhas do autor que, em lentes ampliadas, indiciam uma proposta de poema na qual podem conviver estilos e tempos diferentes (traços de pós-modernidade da lírica contemporânea) de linguagens em diálogo sincrônico ou contemporâneo com as matrizes da nossa formação estético-literária, num amálgama tenso ou irônico-humorístico em construções ousadas que, ao longo do texto, se desconstelam pelas possibilidades fônicas, rítmicas, léxicas e sintáticas, as quais me lembram um dado linguístico de capital importância – a funcionalidade do fonema na formação da palavra, onde a troca de um fonema por outro (paronomásia) resulta noutro vocábulo ou num todo sem sentido na horizontalidade ou transversalidade do ato da leitura. O resultado, além disso, muitas vezes possibilita um inteligente, criativo e lúcido jogo semântico . Esta é uma das chaves de leitura que o texto poético de Luiz Filho parece propor ao leitor de poesia atento.
     A distribuição dos poemas no espaço do livro merece ainda um comentário. BardoAmor se divide em três partes, sendo que o primeiro vocábulo “parte” sofre desarticulação gráfica de duas maneiras: a) o poeta primeiro o grafa “PART...TE” e, em seguida, o escreve “PAR-TE”. Ora, tanto numa forma anti-convencional da grafia normativa portuguesa quanto noutra, as duas novas formas remetem, enquanto significantes, para novos sentidos.

3. BARDOAMAR: TEMAS, LINGUAGEM/NS E FORMA/S

   A profusão grafemática que se espraia por toda a extensão da 1ª parte, incluindo poemas de diferentes extensão, que vão de 15 versos até poema de um só verso, reforça e reafirma as intenções do autor para a importância atribuída à visualização, à maneira do Concretismo de 56, com seus correspondentes recursos verbovocovisuais e bem assim a outros recurso trazidos pelas vanguardas brasileiras (Poema-Processo, Poesia Práxis, Neoconcretismo).
     Só que em Luiz Filho há um passo dado a mais,: o recurso de desenhos de figuras e de objetos, ou partes do corpo humano não-figurativos, como no enigmático poema “cama suma” (p.21) introduzido por traços geométricos (um retângulo encimado por linhas geométricas figurando uma cabeça humana usando óculos e exibindo uma forma de boca. Sobre a cabeça (masculina? feminina?), os cabelos (?) semelham raios elétricos O retângulo inclui formas de ângulos, num dos quais existe um par da letra “y” (?) simetricamente colocados um do lado do outro. O poema a que corresponde àquele geometrismo vale mais pelo seu ângulo semiológico do que pela sua apreensão lógico-analítica, onde a palavra poética fala mais de si do que pela captação da mensagem decodificada. Seria antes um mero jogo abstracionista pela sua irredutibilidade cognitiva.
    Na 1ª parte, ao todo composta de 28 poemas, há que se notar, inicialmente, a forma gráfica da escrita manual impressa. Nesta antessala do conjunto de poemas se estabelece o mood em que formas de linguagens vão delimitar a fronteira dos dois temas dominantes desses versos: a viagem e o amor que simultaneamente lhes vão insuflar vida como criação poética.
    Entretanto, - convém acentuar bem - aqueles temas não são convocados arbitrariamente. Cumpre desentranhar-lhe - e aqui estou me reportando ao poema de abertura, “BardoAmar” ( p. 18) que dá título ao livro -, o alcance: a viagem e o amor de que se cogita falar aqui não é a real, a empreendida em confortável embarcação. De resto, o índice icônico – a ilustração de uma caravela – bem reforça os meus objetivos de entendimento do poema, consoante, mais adiante, comentarei. Antes é uma viagem pelas palavras, ou seja, pela poesia, com todas as suas reverberações.
    A viagem seria, para completar, a do encontro do amor, liame indissociável entre Arte e Sentimento. Sob um pano de fundo histórico, remetendo às conquistas portuguesas ultramarinas, na melhor hipótese à tona vem a epopeia lusíada. O poema é constelado de lexemas alusivos àquela viagem: “cenas líquidas”, “caminho”, “tormentas”, “amarras”, em fusão com “velozes”, “velas”, “a mar”, expressão esta última que também remete ao verbo “amar,” caso houvesse a aglutinação dos vocábulos, expediente gráfico muito comum em Luiz Filho.
    Deste primeiro poema para os seguintes, a inflexão se dirige mais fortemente para o terreno do sentimento amoroso, a começar do sugestivo poema “faróis” (p. 18). O “eu-lírico” desse poemito de três versos neste ponto divisa um lugar procurado e seguro. Já a esta altura, se constata um tipo especial de construção sintático-poética que, no mínimo, me dá a sensação de emprego latinizante, aquela construção na qual a ordem dos termos oracionais se faz entendida pela subordinação às flexões das declinações.
    Em outras palavras, a combinação dos termos oracionais rompe drasticamente a estrutura plausível de um verso tradicional, dir-se-ia de dicção romântica, parnasiana, simbolista ou mesmo moderna. E isso não é de modo algum motivado por figuras de construção – tropos - violentamente transgressoras da ordem direta do discurso referencial, como hipérbatos, anástrofes e sínquíses, empregadas, sobretudo, na poesia clássica e no Barroco. O estranhamento da construção em alguns poemas de Luiz Filho se situa mais no terreno do mimetismo rítmico-melódico da sintaxe poética. Talvez seu propósito seja mesmo o de propiciar o choque, o estranhamento, a desautomatização, a desestabilização nos hábitos usuais do leitor de poesia de corte conservador para adequar-se ao mood do poema à maneira de José Albano, Manuel Bandeira ou Da Costa e Silva, por exemplo, com seus conhecidos poemas trecentistas (Bandeira), os Vilancetes e Palimpsestos (Da Costa a e Silva) e os sonetos de sabor camonianos (José Albano).
   Vê-se que se tem diante de nossos olhos um artista do verso sintaticamente hermético, criando opacidades em todos os sentidos e estratos da linguagem. Este experimentalismo arrojado, a meu ver, só possui uma única vantagem: transformar a dicção poética por meio dos sentidos, pelas sensações rítmicas, melódicas, pictóricas, causadas no leitor, lembrando de perto por vezes alguns preceitos dos simbolistas buscados em Verlaine: “De la musique avant toute chose.”
   O segundo poema, “Poesia na morada do aluno” (p.19), pela desarticulação de sílabas e pela rearticulação e ressignificação daquelas resulta numa curiosa e original paródia do conhecido e antológico poema de Oswald de Andrade: “Amor/humor”, isto é, aquele poema no qual, abaixo do título (“Amor”) se segue um único verso-poema. Não é gratuito o título do poema de Luiz Filho, que parece inspirado no título da obra de Oswald de Andrade Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade (1927), do qual consta o poema “Amor”
   Na reinvenção de Luiz Filho, o humor já presente em Oswald de Andrade, ainda se radicaliza mais e cria novos sentidos e possibilidades conceituais via humor, além de ser acrescido dos próprios reforços metalinguísticos (sobretudo os utilizados na publicidade como fazem sugerir as letras em maiúsculas) e poéticos. As alterações morfológicas, as justaposições, os sinais de pontuação ( reticências, ponto de exclamação, bem como ainda o início de cada linha poética em letra minúscula que, pela primeira vez, encontrei no excelente poeta português Vasco Graça Moura (1942-2014) a disposição espacial deslocada dos vocábulos “amor” e “humor” não simétrica e com o primeiro verso oswaldiano partido, demonstram a perícia da apropriação para outras mudanças compositivas a partir de um poema-fonte.
   A dupla leitura que o poema parodizado, no contexto fonológico, poderia assumir caso se pensasse da perspectiva co-particpante e lúdica do leitor ao trocar o fonema vibrante alveolar em maiúscula (“R”) pela lateral alveolar, redundaria num vocábulo que, subtextualmente,, nos salta à vista: “amolação,” numa permuta de fonema bem afim com o sentido geral humorístico-parodístico do 3 º verso do poema. Veja-se o poema na sua inteireza:

a-MOR
HUMmm...
a MOR ação!

   Em outras palavras, o terceiro verso adquire o duplo sentido pela injeção de novo semantema e de nova desarticulação silábica entre o primeiro e o terceiro versos. Finalmente, o próprio título pode ainda ser lido no seu duplo sentido se porventura o leitor co-participante deseje justapor os elementos morfológicos do sintagma “na morada”: “namorada’, criando, destarte, mais um terceiro novo sentido: “ poesia, a namorada do aluno, que dá pano para muitas mangas interpretativas cujo epicentro é a arte poética em si.
   O que se segue a estes dois poemas é uma continuidade transgressora da estrutura sintática de versos, aliada a outras invenções de desarticulação silábicas, de inserções de desenhos esquemáticos, habilmente ilustrados pelo autor. Tudo isso reitera um elemento diferenciador da poesia do autor e que serve de sustentação aos procedimentos compositivos de seu verso: a capacidade de produzir novos sentidos e de revesti-los de uma sintaxe que lembra a construção latina, segundo já mencionei.
  O fato mais inusitado do aspecto de estranhamento do verso de Luiz Filho é cantar o amor carnal tendo o cuidado de não chocar nunca o leitor nos seus melindres moralistas, contudo produzir erotismo em meio a rupturas de malabarismos de imagens que mais prevalentemente se pressentem do que gratuitamente se apresentam ao leitor. De resto, o poema de Luiz Filho, antes de tudo, e já o frisei, solicita a participação do leitor, constituindo, muitas vezes, um esforço de co-autoria diante das direções apontadas no corpo do poema, segundo se pode ver igualmente no seu segundo livro, Ondehumano.
   Um bom exemplo é o poema “conjogal”(p.27), no qual o poema visualmente representa a forma de um jogo da velha.É bem inventivo e constitui um do que maior exige a habilidade participativa do leitor. Naturalmente, esse tipo de poema visual, assim como outros na extensão do livro, amealha o que de bom se legou das vanguardas europeias e das suas derivações no Brasil: os grafemas, a espacialidade horizontal, diagonal e vertical, a circularidade, o lado ideogramático que remonta à Antiguidade e, no Simbolismo brasileiro, encontrou diversos cultures, inclusive Da Costa e Silva e Elmar Carvalho, entre outros autores piauienses.
   O mesmo poder-se-ia afirmar do poema “misteros” (p.25).. Nele também o grafismo que, no caso, é uma imagem preta, ou melhor, um desenho, nos conduz visualmente para aquele conhecida figura da “Wife or mother-in-law” que W.E. Hill insere no American Journal of Psychology e que está reproduzida por Antônio Gomes Penna[8] na obra Percepção e aprendizagem. Se olho para esta figura de um ângulo dado, percebo, no desenho que introduz o poema, uma figura de um objeto em forma fálica e meio em curva, com uma extremidade lembrando uma cobra. Se, por outro lado, observo de outro prisma o desenho escuro, vejo um perfil humano em branco e com sua sombra escura ampliada.
   O título, vocábulo criado artificialmente por aglutinação, provavelmente formado de “mistério” + “eros.” aponta para o tema da iniciação sexual. A ambivalência, um das constantes da poesia de Luiz Filho, é a espinha dorsal de inúmeras formas lexicais ou fônico–estilísticas. Os quatro versos que constituem o poema se revestem, na sua disposição sintática, de um caráter de descoberta (da poesia?) ou do dionisíaco prazer do sexo.
  Não poderia deixar de comentar o último poema desta 1ª Parte, o da páginas 30-32, sob o título “Amarração.” Formado de 12 estrofes trissilábicas, me parece o mais belo poema desta parte. Leio-o em voz alta, como o faria com um poema de Poe ( conselho que me dera um professor americano de literatura do meu tempo de graduação ), e percebo seu ritmo, sua melodia, sua musicalidade e, por acima disso, um misterioso halo notálgico-amoroso. Poema feito de muitas camadas superpostas. Poema-síntese servindo a muitas chaves de leituras.
   No campo semântico, no atrevimento de formas verbais irradiando células semânticas, no tema do amor liricamente bem urdido, nas camadas fônicas (aliterações), nas alusões intertextuais exógenas e endógenas, tendo como ponto referencial o poema épico camoniano, a mitologia desconstruída pelos novos tempos pós-modernos, a referência direta ao título do segundo livro do autor (dado intratextual), conforme se vê no 3ªº verso da 9ª estrofe Poema pleno de alusões diretas, indiretas e desconstruídas nos sentidos, e nas formas lexicais, operando ressignificações originais e inesperadas. “Amarração” reúne três temas: o amor, a linguagem e a poesia. Sua leitura é pluridimensional e, como todo poema bem realizado, não se exaure aos caprichos do leitor ou do critico.
   A poesia de Luiz Filho - já se pode até aqui tentar extrair uma conclusão provisória em suas linhas gerais -, é a de um artista do verso ao qual o leitor deve estar continuamente alerta, particularmente do ponto de vista intelectual, dado que sua dicção encerra pelo menos dois traços constantes: a surpresa e a duplicidade ou multiplicidade semântica, compreendidas nas ousadias sintáticas do discurso lírico, gerando sentimentos díspares e forte humor e/ou ironia no seu universo poético, num vigoroso e original ludismo fonético, fonológico, visual, espacial e, acima de tudo, numa predisposição infensa às decifrações explícitas e lineares ao se tornarem objeto de exegeses do seu espaço interno de expressão significativa (mensagem, conteúdo, ideologia e cosmovisão) e sua exterioridade significante esteticamente formalizada (retórica e todos os elementos constitutivos do verso, do poema ( estrofe, aliteração, cadência, ambiguidades, mood, ritmo, métrica (se houver), gênero poético, tropos, estrutura, entre outros artifícios da arte versificatória, considerado esta na sua acepção temporal mais ampla possível). A poesia de Luiz Filho tende, no geral, a oferecer resistências e obscuridades inquietantes.
   A 2ª parte, se o leitor bem notar, a maneira de subtítulo, retoma invertidamente os três últimos vocábulos do verso final da “I PARTE”: “em mar fragil mar”. Nesta parte, o tipo de escritor muda para um outro tipo impresso, não o manual impresso da primeira parte.
    Os poemas da segunda parte reunidos em número de 27, aceleram ainda mais as estratégias de desconstrução e, desta maneira, se vão impondo aos olhos do leitor com toda a riqueza provinda do lirismo amoroso, ainda que continuadamente de natureza carnal, transfundido em inovadoras formas de elaboração poemática, em ousadias metalingüísticas, metapoéticas, aliando beleza de sentimentos a beleza de linguagem
   O caráter de rupturas poéticas em Luiz Filho é traço diferencial entre ele e outros poetas de sua geração. Todas essas subversões no verso operacionalizadas pelo seu estro são na realidade modos de cultivar poemas medularmente modernos mas não radicalmente destituídos daquilo que a grande herança da poesia antiga lhe ensinaram e foi antropofagicamente por ele assimiladas, sendo para mim este o grande caminho que poetas que se querem modernos deveriam buscar. Não ler e aprender com o passado me parece uma atitude leviana e contraditória a um só tempo.
     No verso de Luiz Filho pressente-se o quanto sua natureza poética aqui e ali, dialoga com a tradição, seja com a Antiguidade, grega ou latina, seja com a poesia provençal, com o quinhentismo camoniano, com o Arcadismo, com Oswald de Andrade – presença nele forte -, com Carlos Drummond de Andrade, entre outras vozes da lírica brasileira e universal. O  Poeta ubíquo, nas fontes do dialogismo atemporal nem por isso deixa de ser uma artista do verso bebido nos tempestuosos e voláteis tempos pós-modernos, antenando-se ciberneticamente e pondo no seu verso a experiência e o contato dos meios eletrônicos cada vez mais sofisticados e em constante mutações plurifuncionais
Inserido de corpo e alma na pós-modernidade, a poesia de Luiz Filho planta-se no tempo presente, numa atitude que poderia repetir a natureza orgânica do poeta Drummond como o mais representativo artista do verso que tomou para si o presente, na poesia e na prosa, como matéria primacial de sua poética. Instalando-se no tempo presente, o poeta Luiz Filho se deixa impregnar do “aqui e agora,” primado do instante, no afã de se afirmar e firmar o seu objeto poético feito da matéria humana e dos produtos e conquistas do nosso tempo desagregador
   Na 2ª Parte,tudo se torna possível em termos de experimentalismos, nos quais as palavras como que assumem o controle de si mesmas, espécie de silêncio do verbum, onde as palavras são capazes de criar e recriar sentidos insuspeitos em códigos cifrados. Instaura-se, agora, o reino dos hermetismos e dos malabarismos obscuros à Mallarmé, combinando, segundo já ressaltei, características simbolistas com ludismo, ironia, humor e subtextos indevassáveis a olho nu.
Nesta instauração de avanços ousadíssimos do discurso poético, Luiz Filho se torna um virtuoso.                Entretanto, a persistir nestas estratégias de virar pelo avesso a função poético-comunicativa, ele se arrisca a perder-se no puro hermetismo indesejável ( e aqui estou com José Guilherme Merquior ao falar da poesia humilde de Bandeira) a um poeta que aspira ao entendimento sem abrir mão da qualidade e originalidade dos versos.
    Não lhe posso sonegar a invejável tendência à inventividade, à disponibilidade para novas formas de diálogo com o leitor, com a poesia e consigo mesmo. Não é possível não se comover com os versos do poema “amamos” (p. 40):

Amamos

quando não se-sentem
passado & presente
o verbo nos-arremessa ao mágico

neutralizando nosso espaço de sujeitos
ao acaso & próximo... só
o advérbio mente ao tempo

Ou não se divertir com o poema “Caro Prato” (p.43):

Caro Prato


Sem nenhuma etti ..........................Queta

O amor fugiu do card......................Ápio

E quem pagou o p.............................Ato?

Ou essoutro com ressonâncias oswaldianas (p. 35):

Voz nua à lua nativa

contrassopram em mim
lembrançass de ti
a selvar-me salvagem

como tupis amórfagos
ritos em vocação nova:
Catiti!

* O ensaio acima é uma reprodução, revisada, corrigida e melhorada das quatro séries que já foram postadas neste Blog. Dei-lhe, agora, uma feição mais acadêmica.

NOTAS:

[1] OLIVEIRA, Luiz Filho de. BardoAmar. Teresina: Edição do Autor, 2003.
[2]Idem.. Ondehumano. Teresina: Nova Aliança, 2009.
[3] BURGUESS WILSON, John. English literature: a survey for students. 9th impression. London: Longman, 1970., p. 11.
[4] CASTRO, Sílvio. História da literatura brasileira. Vol. 3. Lisboa: publicações Alfa, 1999, p. 256.
[5] Idem , ibidem.
[6] CASTRO, Sílvio. Op. cit., p.256-257.
[7] RICHARDS, I. A. Princípios de crítica literária. Trad. Rosana Eichenberg, Flávio Oliveira e Paulo Roberto do Carmo. Porto Alegre: Globo/Universidade de São Paulo, 1967, p. 181-185.

[8] Apud GOMES PENNA, Antônio. Percepção e aprendizagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1968, p.14.

domingo, 27 de setembro de 2015

Bernardo de Carvalho - 2ª edição digital

       
Foi publicada a segunda edição digital de Bernardo de Carvalho, o Fundador de Bitorocara, no site da amazon.com.br.

O terceiro capítulo sobre - A localização da Fazenda Bitorocara - foi substancialmente aumentado, com novos argumentos e transcrição de prova documental sobre sua localização, além de reforço aos argumentos já anteriormente elaborados.

EGOCENTRISMO


EGOCENTRISMO

Elmar Carvalho

     espirrei
na réstia de luz
da janela do meu quarto
e fiz surgir um
                  arco-íris
                  arco-do-triunfo
sob o qual
napoleonicamente passei
sobre o qual caminhei
em busca do
                        velocino de ouro
coroado com o
                        l’ouro
de minha própria
      alquimia    

sábado, 26 de setembro de 2015

Oh terrinha maravilhosa e tórrida!


Oh terrinha maravilhosa e tórrida!

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com
   
         O calorão de Teresina, nesta época de br-ó-bró, desperta humor e piadas até de cariocas, acostumados a verões insuportáveis, mas festejados nas praias.

Não aceitamos qualquer manifestação de censura ou piada, quando os termômetros passam dos 35 graus. Analogias que beiram o ridículo e mau gosto. Quer receber meia volta? Menospreze o caliente br-ó-bró. Quanto mais quente Teresina, mais elevada a autoestima. A eletrizante música de Erasmo Carlos serve-nos de refrão: “Pode vir quente que estou fervendo”.

Apareceu uma foto sarcástica, no face, ironizando o calor da capital: um ovo estalado, estralado, estrelado, em pleno asfalto, às quatro da tarde. Explico a etimologia: durante a fervura, estalado, que estala; estralado, variante para estralos; estrelado, lembra estrela, romântica e sonhadora, adequa-se à paixão dos teresinenses, que reagiram à infame fotografia: ‘Montagem paia!’. ‘Que povo observador, meu Deus!’ ‘Assim também é no Rio’. ‘Também não é assim, gente!’ Sinto muito, mas se foi piada, não teve graça’. ‘É quente, mas eu amo o Piauí’. ‘Piauiense até a morte’. ‘Uma grande mentira’. ‘Orgulho de ser daqui’. ‘Desculpe...sem graça’. ‘Ô terrinha boa demais da conta!’. Até a TV Globo se divertiu com a foto da gozação.

No regresso de Fortaleza a Teresina, de avião, 4 da tarde, ouvi sonoro e amável recado do comandante: “Senhores passageiros, dentro de alguns instantes, pousaremos em Teresina, que apresenta bela tarde de 37 graus”. Quem ouviu gostou do refrigério servido de suco. E é o que não falta, nesta época de calorão, caju, manga, de derreter baiano, cantando saborosa cajuína.

Por que desqualificar nosso clima, se o calor só incomoda no segundo semestre? Mesmo assim, amanhecer na capital, os termômetros ainda cochilam em 24 graus e se divertem nos 30, até às 11, que não nos incomodam, acostumados ao braseiro da tarde.

Futebol feminino pelo campeonato brasileiro, às 3 da tarde de br-ó-bró, em pleno Albertão?! Só pode partir de dirigentes da CBF,  cabeças quentes de denúncias de corrupção. Tadinhas das jogadoras do Viana de São Luís! Entraram em campo e emborcaram, desidratadas. Dez foram hospitalizadas com dez goals, e zero pro Tiradentes, que não protestou.

         Incomodam-nos 37 ou 40 graus? Não importam, Teresina aprendeu a conviver com o calorão br-ó-bró, mais no passado que no presente. Cercada por florestas, quintais sombreados de fruteiras, dava gosto curtir soneca depois do almoço. Ademais, construíam-se residências de teto elevado, avarandadas, janelas avantajadas, tablado suspenso, por baixo livre para circulação de ar, que entrava ou saía por fendas na parede próximas ao chão. À noite, a família sentava-se nas calçadas, conversa fora, aguardando bendita brisa depois das 9. Sem televisão, ser ar condicionado, sem notícias desagradáveis de violência e insegurança. Hoje, conseguem-se momentos assim na Zona Rural, ainda verdejante e de prazerosos momentos de lazer.

         Desculpem, tenho de ir. Penca de bananas, porção de mangas, cajus e acerolas esperam meus filhos. Estou com água na boca nos ficos colhidos há pouco. Br-ó-bró tem dessas delícias. Servido?  

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

MINHA AVÓ

               
               MINHA  AVÓ
    
                            Alcenor Candeira Filho

               de  repente  em  madrugada
               camoniana  de  domingo
               triste  e  leda  madrugada
               cheia  de  saudade  e  de  piedade

               madrugada  alegre  e  triste
               e  amena  e  marchetada
               do  dia  quinze  do  mês  dois
               do  ano  de  dois  mil  e  quinze

               veio-me inesperadamente
               à  memória  minha  avó
               Gracita  Rodrigues  Candeira
 
               que  velhinha  octogenária
               resignada  me  dizia
               e  ao  me  dizer  me  comovia:

                                - "quem eu fui
                                ainda  me  lembro,
                                quem  eu  sou
                                nunca  pensei,
                                quem  serei
                                não sei."    

ANIVERSÁRIO DE UM AMOR ETERNO

ANIVERSÁRIO DE UM AMOR ETERNO
(95 ANOS DE HISTÓRIA EXPRESSIVA)

Luís Alberto Soares (Bebeto)

          Existem momentos em nossas vidas que jamais poderiam ser resumidos com simples palavras. Dia 20 de setembro é uma data muito significativa para mim. Trata-se do aniversário de minha mãe, LUISA SANTOS SOUSA, 95 anos de idade e de história expressiva. Atualmente, ela se encontra com saúde fragilizada na sua velha residência, casarão das Ruas Da Costa e Silva e Luiz Puça, - Centro de Amarante.

         Ao longo desses anos, convivo com essa grande mulher, com essa excelente mãe que sempre me despertou para melhores dias; a que me fez acreditar mais e mais no verdadeiro respeito e amor; a que mais me aconselhou para uma vida melhor; a que mais soube das dificuldades e das alegrias que tive. Agradeço a DEUS por ela ter participado intensamente da minha trajetória de vida, ajudando-me muito a enfrentar momentos difíceis, aconselhando-me, orientando-me para uma vida digna.

            Quem a conhece sabe, minha mãe fez história em Amarante com muita disposição de trabalho e larga criatividade. Trabalhou por muito tempo no grande comércio de seu pai adotivo, Ciro Sousa. Em seguida, instalou junto com seu marido, meu pai, Joaquim Soares de Sousa (falecido), uma casa comercial, na época, a maior do município. Luisa Soares, como é mais conhecida, possui pouco estudo escolar, mas, sempre teve o hábito de ler e de escrever; um dom em redação. Narrou por escrito, fatos históricos de pessoas famosas e talentosas de Amarante, inclusive, de seus familiares. Portadora de um vasto material que dá um grande livro. Encrespava cabelos; considerada uma das maiores que Amarante já teve na criação e confecção de roupas, especialmente as infantis.

            Que Deus lhe dê uma bênção tão grande quanto a que sempre deu aos seus onze filhos, Luís Alberto (eu), Roberto, Joaquim Filho, Leila, George, Marcílio, Josélia e Fernando. Rosália, Antonio Luís e Rosita (adotivos).   

PADRE MIGUEL DE CARVALHO E SUA ASCENDÊNCIA


PADRE MIGUEL DE CARVALHO E SUA ASCENDÊNCIA

Valdemir de Castro Miranda
Historiador, genealogista e escritor

Descoberto documento na Torre do Tombo, que menciona a origem e ascendência do primeiro cronista da terra piauiense, Padre Miguel de Carvalho, em processo da Santa Inquisição de Lisboa de acusação de usurpação de funções.

MIGUEL DE CARVALHO, ou Miguel do Couto por erro de tradução da abreviatura do sobrenome Carvalho, ou local de sua origem, de fato se chamava, MIGUEL DE CARVALHO E ALMEIDA, n. em Portugal em 1634, natural do Conselho de Ribeira de Pena, arcebispado de Braga e f. provavelmente em Lisboa. Sacerdote do hábito de São Pedro, vigário da Vara e cura da freguesia de Rodelas no Sertão de Rio de São Francisco, bispado de Pernambuco. Irmão do Pe. Inocêncio Carvalho de Almeida, do Pe. Thomé de Carvalho e Silva, dos militares Manoel e Antônio Carvalho de Almeida, Domingos Carvalho de Almeida e Mariana de Almeida, esta última casada com João de Miranda, pais do Cel. José de Miranda. Filhos de Miguel de Carvalho e Almeida e Helena Gonçalves de Matos (PORTUGAL – ARQUIVO DA TORRE DO TOMBO - PT/TT/TSO-IL/028/10016).

 Como vigário da Vara da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Cabrobó de Olinda em Pernambuco e Padre Visitador fez sua primeira incursão ao território piauiense em 1694 na companhia do Pe. Felipe Bourel, da Companhia de Jesus (CARVALHO, 2009, p. 44).  Escreveu o primeiro documento sobre o Piauí, “Descrição do Sertão do Piauí”, em 1696.

A mando do bispo diocesano da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Cabrobó, Bispado de Pernambuco, Dom Francisco de Lima, Miguel de Carvalho, adentrou nos sertões de Rodelas, região imensa, quase desconhecida (CHAVES, 1998 p. 418). Da primeira viagem que fez, sugeriu ao bispo a criação de duas novas freguesias no território. Sugestão esta dirigida a Roque Monteiro Paim, Secretário do Conselho Ultramarino, pelo bispo Dom Francisco de Lima, para a criação da Freguesia de São Francisco, no sertão de Rodelas, e a de Nossa Senhora da Vitória, no sertão do Piaguí. Autorizada a criação das duas novas freguesias, o Bispo delegou poderes ao Pe. Miguel de Carvalho, para sua instalação.

Para cumprir sua missão, fez ele penosa e perigosa viagem percorrendo todas as fazendas existentes, no sertão do Piauí, na companhia de seus irmãos, os Padres Tomé de Carvalho e Silva e Inocêncio Carvalho de Almeida, resguardo por seu tio Sargento Bernardo de Carvalho e Aguiar, que originou o primeiro documento histórico sobre o Piauí. E provavelmente outro relatório sobre o território dos Rodelas, para a instalação da Freguesia de São Francisco da Barra do Rio Grande, hoje cidade da Bahia.

O relatório dos sertões do Piaguí, conhecido como “Descrição do Sertão do Piauí” foi para o Conselho Ultramarino, resgatado por Ernesto Ennes em 1938 no seu trabalho A Guerra dos Palmares, doc. 65, p. 370-384. (PORTUGAL – AHU – Piauí, cx. 1, doc. 2, 3, 4 – AHU_CU_O16, Cx. 1 D 2; anexos 08 documentos). Nela o Padre enumerou 129 fazendas, com 605 cristãos, dos quais 164 moravam num arraial denominado “dos Paulistas”, bem como 36 tribos de tapuias bravios. As fazendas eram habitadas por 153 posseiros, ligados aos sesmeiros da Casa da Torres, todas as terras pertenciam a Domingos Afonso Mafrense e a Leonor Pereira Marinho. Sendo que nenhum posseiro era dono da terra, mas arrendatário que pagava aos proprietários 10 réis de foro por sítio (CARVALHO, 2009, p. 22)

Aos 33 anos, em 1699, foi acusado de crime de usurpação de funções, pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa (proc. 10016), por prender em nome da Inquisição o padre Isidoro de Castro e abandonar seu posto, como vigário do Curato dos Rodelas, sertão de São Francisco do Bispado de Pernambuco, indo para a corte, sendo como réu advertido em Mesa a 11.02.1699.    

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

HISTÓRIAS DO IRMÃO JOSUÉ

Foto meramente ilustrativa

24 de setembro   Diário Incontínuo

HISTÓRIAS DO IRMÃO JOSUÉ

Elmar Carvalho

Vez ou outra, na caminhada da Raul Lopes, encontro o irmão Josué Bonfim. Fui-lhe apresentado pelo colega e amigo Raimundo Lima, juiz aposentado. Ele é proprietário da Loja Hollywood, tradicional empresa de materiais e equipamentos fotográficos de Teresina. Nos tempos das câmeras que usavam filmes (e não cartões de memória) fui seu cliente. Numa dessas caminhadas o irmão contou-me várias histórias anedóticas. Algumas foram protagonizadas por pessoas de sua afinidade familiar, cujos nomes acho prudente não declinar.

Em certa cidade havia um homem que quase sempre trocava a ordem das palavras de suas frases ou narrativas, chegando a provocar engraçadas inversões, embora fosse uma pessoa esclarecida, já que era uma das lideranças políticas de sua comunidade. Em determinada ocasião, às cinco horas da manhã, seguia ele apressado, quando foi abordado por um conhecido, que lhe perguntou sobre “como estavam as coisas”, tendo ele respondido, estugando os passos, que “tá ruim, tá ruim”, ao que o outro lhe inquiriu o motivo dessa ruindade e o local para onde ele se dirigia.

Respondeu, já quase gritando, que estava “indo ao remédio comprar a farmácia”, uma vez que sua mulher havia “comido congestão e estava dando carne de porco”. Na verdade, traduzindo, ele queria dizer que ia à farmácia comprar remédio, porque sua mulher havia comido carne de porco e estava dando congestão. Segundo Josué, ele, amiúde, cometia esse tipo de atos falhos. Exemplificou com outros fatos quejandos.

Outro personagem folclórico tinha umas “crises”, nas quais protagonizava episódios inusitados e jocosos. Numas dessas vezes o nosso herói trepou num coqueiro, de onde, com sua força extraordinária, arrancava os cocos e os jogava perto dos transeuntes, o que provocou receio nos moradores da cidadezinha. (Ao fazer a revisão, pelo computador, este me sugeriu substituísse “trepou” por “teve relações sexuais”. Acho que nem mesmo o Super-Homem conseguiria a insólita proeza de fazer essa atividade com um coqueiro.)

Quando desceu da palmeira, foi se postar numa esquina próxima. Duas jovens lhe pediram que as escoltassem, porquanto estavam com medo de um louco, que estava jogando cocos nos passantes. Ele não se fez de rogado; pediu que as moças subissem na garupa e no varão de sua bicicleta, e as levou sãs e salvas. Só algum tempo depois as garotas souberam que o herói que as conduzira era o próprio atleta do arremesso de cocos.

Em outro evento, essa figura quase mitológica resolveu comprar um caminhão pequeno, do tipo 3/4. Após a pechincha de praxe, efetuou o pagamento com uma grande quantidade de cédulas, que retirou de uma velha sacola. O dono da loja lhe perguntou se ele não tivera medo de ser assaltado, tendo ele respondido:
- Ora, o senhor acha mesmo que alguém iria assaltar uma pessoa trajando uma velha roupa, calçando uma chinela japonesa, e conduzindo uma sacola rasgada das Lojas Pernambucanas?

Após fechar o negócio, ele se deslocou com sua mulher para o centro de Teresina. Como fosse hora de almoçar, adentrou um restaurante que havia na Avenida Barão de Gurgueia, no qual um prato feito custava cinco cruzeiros e uma refeição completa, oito. Pediu que o atendente lhe trouxesse um prato feito e duas colheres, uma para ele, outra para sua esposa. Não sei se ainda ficou com fome, mas o certo é que fez uma considerável economia.

Econômico e cioso de seu dinheiro, foi perguntar ao caixa o saldo de sua poupança, tendo o empregado lhe respondido que consistia em 30 mil cruzados. Pediu a retirada dessa vultosa importância. Devoto de são Tomé, que só acreditava no que via, contou-a meticulosamente, cédula por cédula, e depois pediu fosse ela mais uma vez depositada em sua conta. Ante a perplexidade do bancário, disse queria ter certeza de que o dinheiro existia de fato, e não apenas no extrato.


O irmão Josué, após narrar essas e outras peripécias dessa figura notável, acrescentou que ainda tinha no repertório vários outros “causos” semelhantes. Fiquei com a certeza de que esse personagem, com os casos engraçados, anedóticos, folclóricos, de que fora protagonista, bem poderia ser objeto de um livro ou mocinho de uma comédia televisiva ou cinematográfica.