sexta-feira, 31 de julho de 2020

A Pedra sem Sal

(c) Foto de Chico Rasta


A Pedra sem Sal

Paulo de Athayde Couto 

Finalmente o “progresso" chegou com os cata ventos,
Aquela praia tão bonita onde eu fiz a minha primeira poesia,
Ficou cheia de bares, sem banheiros, sem higiene, 
Lá nas pedras somente escombros de casas de palhas,
A aldeia que um dia foi de pescadores, não sei mais de quem é, 
Talvez ainda tenha peixe para pescar, talvez ainda sobre alguma beleza,
A “pedral, a pedra e o sal" da cabeça gigante, ninguém enxerga mais,
Porque a ação devastadora do homem destruiu tudo.  

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O doce de buriti

Fonte: Google/Jardim Exótico


O doce de buriti 

Carlos Rubem

Brincadeira tem hora! Certamente, pensando assim, José Gregório, dono de um rústico engenho de cana, tornou-se inimigo de Tomás Maurício, vaqueiro. O primeiro residia na Fortaleza. O outro, em Sussuapara. Localidades do município de Oeiras. O fato jocoso envolvendo a ambos aconteceu na década de 40.

 

A feira citadina se realizava, então, somente aos sábados. Certa vez, ao entardecer, Tomás comprou no Mercado Público, um caixão de doce de buriti. Rumou viagem de regresso. Logo que atingiu o bairro Canela começou a comer a referida iguaria. Passou-a toda no papo. Quando chegou mais a frente, desceu do cavalo e foi fazer uma precisão, debaixo de um frondoso Chapada. Terminado o serviço, como o auxílio de um graveto, colocou o excremento dentro do caixote, lacrando-o. Depois deixou este presente no meio da estrada. Ora, Tomás sabia que quem iria encontrá-lo era Zé Gregório, pois o tinha visto preparando-se para voltar a sua casa. O caminho a ser percorrido era aquele.

 

Dito e feito. Não custou muito, Zé Gregório avistou logo o achado. Saltou-se do meio da carga do jumento. Apanhou o caixote, guardou-o. Satisfeito, dizia para si:

 

“Ah! Atrás deste é que eu andava”.

 

Apressou a viagem com medo do  dono do doce voltar para procurá-lo.

 

Zé Gregório chegou em casa lá pelas sete horas da noite. Mandou a sua mulher, Ana Maria, botar logo a janta. Estava cansado, faminto. Morava com o casal um neto de nome Sabino, desorientado do juízo. Vivia pelo mato, não trabalhava. Negro dos olhos amarelos e pés rachados. Sabino gostava de espiar a comida dos outros. Estava ali reparando o avô devorar o seu descomunal prato. Uma lamparina luzia vagamente aquele tosco ambiente.

 

Acabando de jantar, Zé Gregório gritou a sua mulher:

 

“Ana Maria, traga da mala um doce de  buriti que tá aí...”

 

A velha veio pressurosa. Colocou o doce em cima da mesa. Quando Zé Gregório começou a tirar a primeira tala do caixote, sentiu um mau cheiro avassalador. Pensou que tivesse sido Sabino que tinha dado um vento. Indignado, bateu a mão a cintura:

 

Espera fio duma égua, que tu vai já cagar fedorento no mato. 

 

Sabino correu de porta afora, caiu no escuro...

 

Em seguida, Zé Gregório desmiolou o doce com uma colher. Quando ia levando-a à boca cismou com os caroços de feijão no doce. Cientificou-se bem:

 

– Mas menino, que cabra sem vergonha, fio dum mil e seiscentos diachos!, bradou.

O que foi José?, indagou Ana Maria, apavorada.

 

Isto é arrumação de Tomás Maurício, eu pensava que era doce e o condenado era só bosta, respondeu.

 

Pegou o caixote, atirou-o no terreiro. Ouviram-se os estalos dos porcos que saboreavam a deliciosa fruta.

 

No dia em que eu me encontrar com Tomás eu mato ele, prometeu Zé Gregório.

 

A notícia do doce correu célere. Todos da redondeza tomaram conhecimento desta presepada. A gozação foi geral!

 

Na sexta-feira seguinte, quando vinham para a cidade, os dois voltaram a se encontrar quase no mesmo local onde o doce fora deixado, na bifurcação da estada. Tomás Maurício vendo o seu compadre foi logo se derretendo em gargalhadas. Tinha uma gaitada puxada. Zé Gregório não perdeu tempo. Partiu com um facão para cima de Tomás. Este procurou se safar. O jeito que teve foi se espreguiçar o seu cavalo.

 

O pobre brejeiro se tornou um homem enfezado para o resto da vida!  

quarta-feira, 29 de julho de 2020

ROCHA FURTADO E OS PADRES UCHOA E CIRILO

Rocha Furtado   Fonte: Google
                 

ROCHA FURTADO E OS PADRES UCHOA E CIRILO


Elmar Carvalho

 

Lendo a excelente entrevista do ex-governador Rocha Furtado, concedida ao historiador Manuel Domingos Neto, contida no seu livro “O que os netos dos vaqueiros me contaram – o domínio oligárquico no Vale do Parnaíba”, admirei-me da severidade com que o entrevistado se referiu ao monsenhor Lindolfo Uchoa (Pedro II, 1884 – Teresina, 1966), que sempre foi considerado um dos grandes beneméritos da Educação no Piauí.

 

Foi vigário de Barras nos períodos de 1925 a 1941 e 1942 a 1957. Nessa cidade, em 1954, com a ajuda de irmãs da Ordem Mercedária do Brasil, fundou a Escola São Pedro Nolasco e o Patronato Monsenhor Bozon, assim como em Floriano fundou e dirigiu o Colégio “24 de Fevereiro”.

 

Vejamos o que sobre ele diz o historiador Wilson Carvalho Gonçalves: “Nele sobressaía também o educador, e nesta qualidade criou e dirigiu, por dez anos, o Colégio “24 de Fevereiro” – famoso em Floriano, e que preparou para a vida a juventude do tempo, dando-lhe estrutura moral, religiosa e intelectual. Gratíssima à notável obra, a Princesa do Sul nunca pode esquecer o gesto de benemerência de Monsenhor Uchoa – e lhe reverencia a memória com o nome aureolado em rua, em estádio, em grêmio escolar, em biblioteca, em estabelecimento de ensino, zelando a majestade de um patrimônio inesgotável de exemplos dignificantes”.

 

Cotejemos agora o que diz Rocha Furtado, referindo-se ao monsenhor e a seu educandário de Floriano:

 

“Aquele colégio era mais um campo de concentração do que um colégio. Nunca passei tanta fome e nunca pensei que um jovem adolescente pudesse ter tanta resistência para passar um ano comendo tão miseravelmente. Forçados pela fome, arrancávamos raízes de umbu e comíamos. O padre Lindolfo Uchoa, muito injustamente, é considerado um grande educador no Piauí. Ele não tinha a mínima noção do que fosse educador! (…) Várias vezes deixei de comer porque vinha bicho no prato e quem ia ser garçom tinha o direito de comer da comida do padre. Ele tinha uma mesa separada e comia as melhores iguarias. Os que iam servir-lhe tinham esse direito”.

 

Na entrevista, Rocha Furtado conta que todo mês eram abertas inscrições para quem quisesse disputar o cobiçado lugar de garçom da mesa do padre Uchoa, mas que ele e seu irmão Antônio sempre se recusaram a participar dessa disputa, que consideravam coisa de escravo. No depoimento, afirma que no ano em que foi interno desse colégio, em Floriano, só comeu bem no dia 7 de setembro de 1922, quando foi convidado a almoçar na casa do doutor Fernando Marques, uma vez que, “durante o resto do ano, passamos fome, vendo nos servir paneladas podres e as coisas mais abjetas”.

 

Entretanto, perguntado sobre se aproveitara alguma coisa no colégio do padre Uchoa, respondeu que os professores eram bons; que não tinha a menor ressalva quanto a isso; que ele e seus colegas aprenderam bastante e que foi um tempo muito útil para todos.

 

Faz elogios rasgados ao padre Cirilo Chaves, em cujo colégio estudou no ano seguinte (1923), dizendo que este era o tipo do educador, “um homem profundamente humano, democrata, agradável, honesto e sóbrio”. De quebra, ainda acrescentou que a comida do padre Cirilo, então suspenso da ordem, era bem superior à fornecida por Uchoa, e que Cirilo comia da mesma comida que era dada aos discípulos, “numa atitude democrática, de educador”.

 

Consultei o professor Roberto Freitas, nascido em 1929, e que estudou em Floriano, a respeito da comida do internato de monsenhor Uchoa, mas ele disse nada ter ouvido falar sobre o assunto, nem de bem nem de mal; aduziu apenas que o vigário foi uma figura ilustre da história da cidade, e que o colégio era respeitado e reconhecido como de boa qualidade, embora de disciplina rigorosa, como era comum na época.

 

Encerro acrescentando que a História do Piauí tem sido severa com Rocha Furtado, que foi tão implacável com o velho educador. Seu governo é sempre considerado como de poucas realizações, e como um período conturbado e intranquilo, com funcionários públicos aterrorizados com o fantasma de demissões e remoções.

 

Alega-se, em sua defesa, que ele não tinha maioria na Assembleia Legislativa, e que a oposição lhe criava dificuldades, mormente não aprovando seus projetos. Deixo a palavra final aos doutos e historiadores do Piauí.

8 de maio de 2010


terça-feira, 28 de julho de 2020

Meu padim...

Fonte: Prefeitura de Oeiras/Google

Meu padim...

Carlos Rubem

“Os teus sinos repicam festivos / Ora dobram finados e calam / Mas não há neste mundo dos vivos / Som mais doce... tens sinos que falam” é um inserto do Hino à Matriz de N. Sra. da Vitória, composto, em 1983,  ao ensejo das comemorações do 250º aniversário da ereção desse templo – marco miliário da colonização do Piauí –, letra de José Expedito Rego, musicado por Possidônio Queiroz.

É vezo se dizer que se extrai dos sinos da aludida igreja 21 ritmos sonoros que só a alma oeirense compreende: chamada da missa, dobre quaresmal, anúncio de desobrigas, solenidades pontificais, hora do ângelus, casamento, batizado, crisma e tantos outros. Tem, também, o sinal de defunto. 

Antigamente, havia o toque informando a morte de pessoa rica e pobre, isto é, quem desejasse uma execução mais elaborada, com a participação, no mínimo, de dois sineiros, o pagamento deste serviço era majorado. Ainda hei de registrar em documentário esta manifestação cultural, contando com a ajuda do Chico Rego, que tudo sabe acerca do patrimônio imaterial desta velha cidade.

Estive, hoje de manhã (28.07.2020), na casa das minhas nonagenárias tias Amália, Mirista e Alice Nogueira Campos, para espelhar na TV a transmissão, pelo aplicativo Zoom, da formatura no Curso de Direito – UNINOVAFAPI – da prima Vitória Liana. Durando o início da solenidade, as ditas senhoras até entoaram o Hino Nacional. Em dado momento, a conexão digital caiu. Sentiram-se frustradas de ver a querida sobrinha fazer o juramento de praxe e recebendo o ansiado diploma obtido com muito esforço e dedicação. Tentei, em vão, restabelecer o sinal.

Ao tempo em que se lamentava tal impedimento, ouvimos ecoar da torre da amada catedral a característica mensagem auditiva indicando a morte de alguém. Foi aí que a tia Mirista passou a cantarolar uma modinha do domínio público propagada entre gerações: “Teu padim cagou / teu padim cagou... / Teu padim cagou nas calças /  tua mãe foi alimpar / teu padim cagou / teu padim cagou / e teus pais e teu irmão também foram ajudar...”

Em criança, via demais a minha mãe Aldenora Nogueira Campos e Reis, após quebrar o jejum, ficar balançando uma colherinha dentro de uma grande xícara, imitando o conhecido repique do sino em comento, cantarolando aquela musiquinha popular. 

Mas no meu íntimo, na minha pura inocência, achava uma ofensa, gozação, aos meus padrinhos Alcides Freitas (batismo) e José Expedito Rego (crisma), a quem muito e ainda admiro.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

A legenda de um homem de bem

3 Gerações: José Athayde, o velho guerreiro, José Athayde Neto e José Ataide Filho


O "Véi" na colação de grau em Ciências Contábeis

José Ataide e sua esposa Vânia

DIÁRIO

[A legenda de um homem de bem]

Elmar Carvalho

27/07/2020

            Desde o início da semana passada que venho às voltas com um prefácio para o livro “Reminiscências de Minha Vida”, que são as memórias de José Ataide Torres Costa Filho, do qual tenho a honra de ser amigo e irmão maçônico há várias décadas. Estreitei amizade com o seu irmão Carlos Cardoso e com vários outros seus parentes, entre os quais citarei apenas o saudoso Otaviano, a Cristina do Vale e Silva, o craque futebolístico Augusto César e o escritor Francisco da Silva Cardoso. Dessa forma tomei a deliberação de tornar o referido texto preambular parte integrante deste Diário. Assim, sem necessidade de delongas, ei-lo abaixo:

A LEGENDA DE UM HOMEM DE BEM

Elmar Carvalho

Conheci José Ataide Torres Costa Filho, ou mais simplesmente Zé Ataide, em 1972, quando eu tinha 16 anos de idade, e ele um pouco mais. Eu era colega de aula e amigo do seu primo e vizinho Otaviano Furtado do Vale. Através deste fiz amizade com o seu irmão Carlos Cardoso. Nessa época passei a conhecer a professora Cristina do Vale e Silva, irmã do Tavico (acima citado com seu nome completo), e o seu falecido marido Tarcísio, um bom e cordato gigante. A Cristina tinha uma boa biblioteca, com clássicos da literatura brasileira e universal, e me emprestava famosos romances, que eu logo lia e devolvia, em busca de outros. Também, claro, conheci os pais do Zé Ataide e seus irmãos Antônio Francisco e Isabel.

Com o Otaviano, saudoso amigo, eu e o Carlos praticávamos futebol, tomávamos as libações nos finais de semana, e íamos às festas e tertúlias, no Campo Maior Clube, no Grêmio Recreativo e em casas particulares, como era de praxe na época.

O Otaviano, que era uma espécie de líbero e faz tudo, poderia atuar em sete ou mais posições, e chegou a ser goleiro (reserva) do Comercial, em que jogava o seu irmão Augusto César, um dos melhores craques do futebol campomaiorense, em seu estilo altivo e elegante, de quem disse no meu livro O Pé e a Bola: “quarto zagueiro, bom no domínio, boa visão, inteligente (...)”. 

Circulávamos nas praças, sobretudo na Bona Primo e, às vezes, fazíamos pequenas jornadas em nossas velhas bicicletas. Mas um ou dois anos depois as famílias do Zé Ataide e do Otaviano foram morar em Fortaleza e Teresina, respectivamente, e em junho de 1975 a minha se transferiu para Parnaíba, de modo que demoramos a nos rever.

 

 

O tempo andou, virou e mexeu. Assumi, em setembro de 1975, meu emprego na ECT (Empresa de Correios e Telégrafos), me formei em Administração de Empresas (UFPI – Campus Ministro Reis Velloso – Parnaíba) e passei em concurso do DASP para fiscal da extinta SUNAB, de cujo cargo tomei posse no dia 10 de agosto de 1982, em Teresina, sede da Delegacia Regional.

Ainda em agosto ou setembro, no hotel da senhora Maru, no início da Frei Serafim, perto da igreja de São Benedito e do Convento São Francisco de Assis, recebi a visita do amigo Carlos Cardoso, que me convidou para morar numa república, da qual ele fazia parte, instalada numa casa da Avenida Jockey Club, que anos depois se transformou no Colégio Madre Savina. Foi um tempo muito bom e feliz, mas que não comporta maiores detalhes neste espaço. Meses depois o Carlos deixou o convívio republicano, por causa de seu casamento, mas continuamos a nos rever e a nos telefonar com certa frequência.

Um belo dia, no escritório de contabilidade do Carlos, o Zé Ataide, em presença de outro maçom, já falecido, me convidou a ingressar nos augustos mistérios da Maçonaria. Sem dúvida, curioso como sou, devo ter feito várias perguntas, sobretudo sobre meus deveres e responsabilidades. O certo é que passei pela “investigação” de praxe, visita de comitiva a minha mulher, e meses depois era iniciado em belo ritual maçônico. Portanto, considero que adentrei na Sublime Ordem, atendendo convite de dois irmãos sanguíneos, ambos meus amigos e velhos conhecidos.

A família do Zé Ataide e do Carlos, que já conhecia desde minha adolescência, como disse, era bem constituída e tinha fortes princípios religiosos e morais. O velho José Athayde também era maçom. Ele e sua esposa dona Maria da Conceição (Maria Cardoso, como era mais conhecida em Campo Maior) trabalhavam, ele em seu escritório de contabilidade e ela em sua casa, e acostumaram os filhos ao labor e ao senso do dever desde meninos, tendo Zé Ataide, em sua meninice, prestado pequenos serviços a uma das lojas maçônicas de Campo Maior.

De forma que os quatro filhos eram diferenciados, mais sisudos e responsáveis que o comum dos adolescentes e jovens. Logo podíamos perceber que jamais haviam sido “moleques” de rua, a fazerem peraltices, conquanto vez que outra não tenham fugido à regra das brincadeiras próprias da idade, como o autor confessa em seu livro. Mas o fato é que foram induzidos pelos pais a bem cumprirem os seus deveres escolares e laborais, desde bem jovens.

 

 

Na parte denominada Prelúdio o autor conta passagens interessantes e pitorescas da vida de seus pais, de modo a lhes traçar uma espécie de perfil biográfico, moral e de experiência de vida, quase um retrato da personalidade paterna e materna, pelo qual podemos perceber os pais amorosos, dedicados e responsáveis que eles foram.

Conta a experiência profissional de seu pai, como gerente de empresa privada, como servidor público e como proprietário de importante escritório contábil. Nesta última atividade, transmitiu seus conhecimentos aos filhos e a José Antônio da Costa Filho, seu amigo e funcionário do Banco do Brasil, que mais tarde lhe ajudou no processo de mudança para Fortaleza, onde já residia. José Antônio, pelo que pude depreender da leitura destas Reminiscências era um legítimo empreendedor, dotado de notável dinamismo, tanto que fundou a SECREL, pioneira na capital Alencarina da contabilidade informatizada.

Em 1981 essa empresa contábil se estabeleceu em Teresina, com o concurso primordial dos servidores Vicente Miranda, Carlos Cardoso e Manoel Teófilo Maia, tornando-se a pioneira em serviço contábil informatizado no Piauí. Anos depois, Vicente Miranda fundou a sua própria empresa de informática jurídica (STS – Informática Ltda.), que presta serviços de assessoria e consultoria ao serviço público, sobretudo municipal, bem como se tornou notável historiador e genealogista do Piauí e do Ceará, mormente da região da Ibiapaba e adjacências. Carlos Cardoso instituiu e ainda hoje mantém o seu próprio escritório de contabilidade, que presta serviços a várias e importantes empresas teresinenses. Manoel Teófilo se tornou proeminente professor da Universidade Federal do Piauí e do Instituto Federal do Piauí (antiga Escola Técnica Federal).

Fala também dos irmãos, dos colegas de aula e de brincadeiras, dos velhos professores, dos filhos, dos filhos e irmãos do coração, dos colegas do serviço público e dos amigos que amealhou ao longo da vida, claro que em breves palavras.

Veio a descobrir que a vida não é feita somente de luzes e cores, de festas e de flores, quando foi testemunha ocular, ainda na infância, da morte de dona Domingas Puba, uma vizinha, cujo desfecho ele narra de forma pungente, quase dramática, nestas suas confissões.

Para ser sintético e não fazer um spoiler, importa dizer que o autor relata fatos e episódios interessantes, singulares ou jocosos de sua infância, como eventuais travessuras, suas e de familiares, as brincadeiras da época, em que não havia brinquedos ou jogos eletrônicos, e a sua trajetória de vida, com vitórias, conquistas e eventuais frustrações. Contudo, farei referência, de forma concisa a alguns desses fatos e “causos”, para atrair a curiosidade do leitor, como se fora um aperitivo, e assim fazê-lo ler o livro na íntegra, em todos os seus pormenores.

Nas suas memórias vislumbramos as sonhadas e gostosas férias de julho, passadas na fazenda Palestina, situada na beira do Parnaíba, no lado maranhense, a seis léguas da cidade de Timon, onde aconteceram dois episódios engraçados, em que foram protagonistas sua prima Dulce e seu irmão Carlos.

Basta que se veja o índice e se leiam alguns desses fatos e “causos”, para que tenhamos uma ideia dos costumes de uma cidade interiorana como Campo Maior, nos anos 60 e 70, quando o extrativismo econômico já se encontrava no final de sua amarga derrocada, quando os velhos e pitorescos cabarés, como o Isabelão (ou Zabelona) e os da Rua Santa Antônio, outrora bela e poeticamente denominados “Zona Planetária”, já marchavam para o seu melancólico crepúsculo.

Anfion percorre os sulcos

dos discos das vitrolas e as

emoções são alinhadas pedra a pedra.

Apolo é qualquer moço feio

que nos vitrais Narciso se julga.

De repente, Átropos corta o fio da vida

que era tecido pelas Parcas lentamente

pelos golpes de facas, adagas ou estiletes

nas mãos de um velho Pã embriagado.

(...)

Através de suas páginas recordamos os encantados circos de nossa infância, por natureza nômades, e a maioria mambembe, com seus malabaristas e trapezistas e os engraçados palhaços, de espalhafatosos adereços e roupas. Faz referência à antiga “procissão na carreira”, hoje extinta, que percorria várias ruas no entorno da Matriz, por ocasião da abertura das festividades. Lembramos os festejos de Santo Antônio, com suas barracas de palha de carnaúba, a bandinha do Antônio Músico, os leilões gritados por Bilé Carvalho, os foguetes e rojões, e as deslumbrantes estrelas da pirotécnica.

As novenas do padroeiro são realizadas na imponente catedral, construída por iniciativa do pároco Pe. Mateus Cortez Rufino, no lugar da vetusta igreja colonial, demolida em 1944, cuja origem remonta ao mestre de campo Bernardo de Carvalho, fundador de várias cidades e igrejas no Piauí e no Maranhão, que construiu a primeira igreja de Santo Antônio do Surubim em 1711, a pedido de seu parente, o Pe. Tomé de Carvalho, vigário da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória, que então se estendia de Oeiras a Campo Maior.

Perlongando as páginas de seu livro, notamos que o autor, ao contar a sua história ou o romance de sua vida, colheu o ensejo para relatar um pouco da rica e antiga história de Campo Maior, bem como para falar, em momentos apropriados, da antiga arquitetura de sua terra natal, dando ao leitor uma ideia de alguns dos seus principais edifícios públicos, de suas praças, logradouros e dos vetustos sobrados e casarões solarengos. Assim, discorreu sobre o histórico de algumas dessas construções ou sobre as pessoas que lhe deram o nome, entre as quais podemos citar o Estádio Deusdete Melo, o Patronato, o Grupo Escolar Briolanja Oliveira, as praças Bona Primo e Rui Barbosa, o Cine Nazaré, etc. Sobre este último tive ocasião de dizer:

“O Cine Nazaré, pertencente ao Sr. Zacarias Gondim Lins, ficava ao lado da matriz, hoje Catedral de Santo Antônio do Surubim, entre as praças Bona Primo e Rui Barbosa. Fui a algumas sessões levado por meu pai (que também me levou a partidas de futebol e a espetáculos circenses), quando ainda menino, e sozinho em minha adolescência.

Havia um grande anteparo com espelho, que separava o hall de entrada da sala de exibição propriamente dita. As cadeiras eram de madeira, e a parte para sentar era móvel, de forma que poderia ficar na vertical, quando desocupada. Parecia nele ter cadeira cativa a negra Dodó, esguia e um tanto espigada, descendente de escravos, trazida de Colinas (MA), segundo consta, pelo padre Benedito Portela; morava ela na Praça Bona Prima ou em seu entorno.

Como um Cérbero do bem, guardava-lhe a porta de entrada o senhor Estácio, pai do historiador padre Cláudio Melo. Só que, enquanto Cérbero era guardião de Hades, deus do reino das sombras subterrâneas, o velho Estácio vigiava a portaria de um paraíso, um Éden cinematográfico; ao passo que o monstruoso cão infernal fazia festas aos que entravam e impedia ferozmente a saída, o segundo exigia o bilhete de entrada e franqueava, com a maior prodigalidade, a saída.”

Deu um bom destaque ao nosso belo e pequenino Açude Grande, que deslumbra os turistas e todos os campomaiorenses, sobretudo os nostálgicos, que residem em plagas distantes. Eu, que em sua orla joguei futebol e em suas águas plúmbeas tomei banho, em minha adolescência, já tive o ensejo de o cantar em verso e prosa, pelo que peço licença para fazer duas breves transcrições de minha autoria:

"Açude Grande

apenas no nome, mas pequeno

na paisagem ampla dos descampados.

Tuas águas cinzentas

azularam-se em minha saudade.

Tuas águas barrentas

são tingidas de azul pelo

azul do céu que se espelha

em tuas águas de chumbo."


“O açude era o meu imenso mar-oceano.

O mar mesmo eu só conhecia na prosa poética de Iracema, a linda índia de Alencar, de longos e escorridos cabelos negros, mais negros que a asa da graúna: “verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba”...

As carnaúbas, com sua beleza esbelta, com suas palmas farfalhando ao vento, com seus quebros e requebros de moça faceira e dengosa, ornavam a orla sinuosa do açude.

O movimento do mar eu só conhecia através da tela panorâmica e technicolor do velho Cine Nazaré, do senhor Zacarias, em filmes de pirata, com sua perna de pau, caolho, braço de gancho, a carregar no ombro o indefectível papagaio, tal como no rótulo do Ron Montilla, ou em filmes épicos de heróis ou deuses da velha Grécia, com suas ilhas paradisíacas.”

 

 

Já me alongando além do que deveria, partirei agora para um conciso arremate. 

Além de suas memórias, de uma árvore genealógica, da memória fotográfica e do Diário, feito por sua mãe, sobre o seu primeiro ano de vida, o autor ainda dá uma significativa contribuição à historiografia genealógica do Piauí, ao se reportar às estirpes Costa, a que pertence, e Veloso, de que faz parte Vânia, sua esposa.

Retornando ao Piauí, já formado em engenharia agronômica, nos idos de janeiro de 1978, Zé Ataide foi trabalhar na CIDAPI – Companhia de Desenvolvimento Agropecuário do Piauí, empresa de economia mista, na qual exerceu cargo de chefia de departamento, até a sua extinção, quando foi trabalhar na Secretaria de Agricultura, em que se aposentou, sem nunca receber qualquer tipo de punição, de modo que pode ser considerado um legítimo ficha limpa.

Porém, como se tudo isso não fora o bastante, em 2011, já aposentado, ainda cometeu a proeza de ingressar no curso de Ciências Contábeis, concluindo-o em fevereiro de 2015. Na sua turma era chamado carinhosamente pelos seus jovens colegas de Véi, que certamente lhe admiravam a garra e a força de vontade, que lhes serviam de estímulo e exemplo.

Ingressou na maçonaria, em oficina obreira vinculada à Grande Loja do Piauí. Em virtude de fatos e atos administrativos dos quais discordava, que no livro ele relata em detalhes, desligou-se da Potência a que pertencia,  e foi admitido no Grande Oriente do Brasil/Piauí. Juntamente com alguns companheiros, entre os quais eu, fundou a Augusta e Respeitável Loja Hiram Abib, que funciona no prédio da Caridade II, loja mãe da maçonaria piauiense. Sentou no trono de Salomão (exerceu o cargo de Venerável) e hoje preside a Assembleia Legislativa Maçônica. Em resumo, é um maçom paradigmático, que se iniciou nos augustos mistérios não para ser servido, antes para servir e prestar bons serviços à sublime Ordem.

Flertou, paquerou, namorou, mas cedo se fixou em Vânia, com quem construiu uma bem estruturada família, como a que seus pais haviam constituído décadas atrás. O casal teve os filhos Olívia, médica, Larissa e Liana, advogadas, e o caçula José Athayde Neto, formado em Ciência da Computação. 

Portanto, como engenheiro agrônomo plantou várias árvores, que deram inúmeros frutos; como pai de família, teve bons filhos, que também tiveram seus filhos. E agora escreveu este livro, que é, como eu disse, a história ou o romance de sua vida. Assim, cumpriu o que o adágio recomenda: plantou uma árvore, teve filhos e escreveu um livro.

Uma vida sem drama e sem tragédia, principalmente grega, mas uma bela vida, de um homem digno, de um homem bom, de um homem que se consagrou ao bem.

Batendo, por três vezes, o martelo, posso dizer que Zé Ataide amou e buscou o belo, o bom e o bem.

O belo ele encontrou na beleza de sua família, o bom ele sempre o teve na bondade de seu coração, e o bem lhe foi inerente, através do bem que espargiu em sua vida digna e honrada.   

domingo, 26 de julho de 2020

Seleta Piauiense - Jorge Carvalho

Fonte: Google



Salve São João!

Jorge Carvalho (1951)

Salve São João!
Anjo da Salvação
Salve São João!
João são e salvo
Salvação do anjo João
Decapitado sem capitular
Sem perder a cabeça
Berço de cada coração
Sobe em cada balão
Embalando nossa visão
Em direção ao céu
Lar do anjo João
Batista cristão
Batizou Jesus
Da luz divina
De luz junina

Salve São João!
João anjo, anjo João
Anjo do rio Jordão
Salve São João!
Dos festejos juninos
Do arraial de matutos
Das quadrilhas dos forrós
Das quadrilhas e fanfarras
Das farras de bate-bate
Bolo de milho e aluá
Cocadas e canjicas
Pamonhas e manuês
Pé-de-moleque
Moleque de pés
Descalços ao pé da fogueira
Descalços no pau de sebo
Dançando “cirandas”
Pulando fogueiras
Comendo roletes de cana
Vendo a roleta girar
Girando na roda gigante
Na canoinha e no carrossel
Salve São João!
Dos folguedos juninos
Dos fogos de artifício
Das artimanhas e malazartes
Cabra cego e prisão
Bandeirinhas e balão
Novenas e quermesses
Da Praça da Santa Casa
Dos bingos e do leilão
Fundos para procissão
Das madrinhas de fogueira
Promessas e adivinhação
Do “boi” e tambor de crioula
Do coco e do “caroço”
Salve São João!
Saudades da Parnaíba.

(Extraído de A poesia Parnaibana, 2001)   

sábado, 25 de julho de 2020

Ruas de Campo Maior

Fonte: blog Bitorocara/Google


Ruas de Campo Maior

Celson Chaves
Professor e historiador

                             Fonte do texto e das fotos: Portal de Olho

As ruas de Campo Maior no século XIX eram poucas. Elas interligavam-se a becos e vielas, que partiam em direção à “baixa” do Cariri e Califórnia (1876), principais subúrbios da vila. Lá residia parte dos escravos. A sede da vila também possuía a rua e a igreja dos Negros. A taberna da prostituta Quitéria ficava na via mais afastada. As famílias abastadas moravam no Largo da Matriz, onde fluía parte das pessoas.


Beco do “Paixão”, um dos quatro becos interligados à Avenida Vicente Pacheco. Mesmo vago, o Beco do “Paixão” é citado na literatura de memória por alguns autores. O historiador Marcus Paixão (2016) defende a tese de que o beco recebeu esta denominação popular em virtude de um parente seu, um cearense caixeiro viajante de sobrenome “Alves Paixão” que se hospedara numa das casas do referido beco, nos tempos em que os cearenses vinham à cavalos (tropas de mulas) negociar nas vilas do Piauí e do Maranhão. Campo Maior, era um dos entrepostos comerciais entre o Ceará e Maranhão, parada obrigatória para muitos comerciantes ambulantes. Apesar do nome ser antigo e reconhecido pela força da tradição, o Beco do “Paixão” nunca foi reconhecido em Lei pela Câmara e continua no mapa da cidade como uma das muitas ruas sem nome em Campo Maior.



As vias da vila eram um encanto, mesmo desprovida de qualquer saneamento. Os escravos circulavam livremente, os comboios das mulas dos tropeiros, carros de boi, jumentos e cavalos tumultuavam o trânsito durante o dia. À noite, as ruas ficavam desertas. A escuridão reinava. Os poucos lampiões ficavam acesos até o horário estabelecido. Eles iluminavam apenas o Largo ou Praça da Matriz. A Cadeia Velha tinha seus próprios lampiões. Extrapolava-se o horário do funcionamento dos lampiões nos dias de festas cívicas e nos festejos de Santo Antônio. “Em noites de lua” apagavam-se para economizar o azeite.


A vida fluía lentamente na vila. O primeiro Mercado Público situava-se no Largo da Palma. A Câmara e o Tribunal do Júri na rua do Nincho, instalados no charmoso sobradinho, cedido gratuitamente pelo coronel e vereador Jacob Manoel de Almendra, o homem mais rico da povoação. As vias surgiam espontaneamente. Muitas tinham nomes sugestivos e não eram reconhecidas em lei pelo poder público. Não havia essa preocupação.

A rua das Flores cruzava com a rua do Sol. A rua do Norte atravessava a rua das Quintas. As linhas sinuosas da rua Bandolim desaguavam na rua da Lagoa (rua dos Negros). A travessa do Curral da Câmara, do Rosário… Na rua da Botica, residia um dos curandeiros da vila: João Joaquim Mendes da Rocha ou João Antônio Pacheco, avô do senador Sigefredo Pacheco, nosso maior expoente na política até hoje. Mesmo a vila sendo pequena havia segregação urbana, como a rua dos Artistas, onde residiam os sapateiros, pedreiros, alfaiates, marceneiros…

Rua da Lagoa (rua dos Negros), atual Maranhão. O escritor Marcos Vasconcelos fez um amplo roteiro histórico-sentimental da rua da Lagoa no livro Raízes de Pedra (2006).

Os antigos nomes das ruas de Campo Maior do período Imperial, batizadas pelos populares, começavam a serem oficializadas pela Câmara com outros nomes, de personalidade e acontecimentos que marcaram o Brasil no século XIX: a Independência, Guerra do Paraguai e Proclamação da República. Assim trocam-se os nomes da rua do Sol, do Norte, das Flores, do Negros, da Botica, …. por José Bonifácio, General Câmara, Riachuelo, Benjamim Constante, Quintino Bocaiuva, 15 de Novembro…

O sentimento bairrista também florescia no coração e na ideologia política da época. Com isso, surgem as primeiras ruas batizadas com nomes de campo-maiorenses: rua coronel Antônio Maria Eulálio, major Honório Bona, padre Fábio Costa…


 
Rua Santo Antônio: famosa Rua dos Cabarés no século XX.

 A rua Santo Antônio poderia ter sido mais uma simples via pública de uma cidadezinha qualquer do Nordeste, de pessoas pacatas e  ordeiras, caso não sofresse a função urbana de logradouro residencial para a maior zona de prostituição do Piauí no século XX, instada em casario imperial. Centralizada e bem localizada, a rua desenvolveu o comércio do sexo entre o velho e o novo centro comercial da cidade. A prostituição na rua Santo Antônio, imortalizada no poema épico de Elmar Carvalho, prosperou graças ao bom momento econômico de Campo Maior, oriundo da cera de carnaúba.



A rua Senador José Eusébio era a rua “rua dos fotógrafos” ao concentrar, entre o trecho da praça Rui Barbosa à rua Siqueira Campos, os ateliês dos fotógrafos Agenor Azevedo, Joaquim Gomes e o Braga Primo (para destacar os fotógrafos mais famosos).

Rua coronel Antônio Maria Eulálio (1913) [antiga Barão de Uruçuí (1898)]. A foto registra a carreta em comemoração ao Dia do Motorista (1962). Fotógrafo Raimundo Holanda.

A literatura tem mantido um diálogo com a cidade através de obras que revelam aspectos de algumas ruas em Campo Maior. Um roteiro histórico-sentimental-literário. O poeta Elmar Carvalho imortalizou a rua Santo Antônio, mesclando a mitologia greco-romana, a astronomia e a sociologia dos cabarés. Por sua vez, o escritor Marcos Vasconcelos em seu livro Raízes de Pedra fala sobre a degradação ambiental da Lagoa que deu nome a rua.

As ruas da periferia, tão decantadas em versos e prosas pelos escritores, quanto a assediada praça Bona Primo, local de discursos e narrativas, é um exemplo da formidável criatividade entre autores e suas origens. O cordelista altoense, Zé da Prata de visita na casa do amigo Odilon, saiu à noite para fazer necessidades fisiológicas, quando retornou viu que os calçados estavam cagados. E assim emendou uma quadrinha:

“Vesti o meu terno branco,

Calcei sapato marrom

Vim cantar na Rua da Merda

Na casa do Odilon”

(Carlos Dias, 2008)

Existe outra versão do poeta altoense, exposto na pesquisa de Carlos Dias, sobre esse episódio:

“Terno de brim H.J

Sapato de cor marrom.

Estou indo a uma festa             

E uma samba muito bom,

Ali no Canto da Bosta

Na casa do Odilon”

(Carlos Dias, 2008)

 Cada escritor traça algum aspecto da cidade. Joaquim Oliveira releva sua primeira impressão assim que chegou a Campo Maior, quando menino matuto do interior: “a cidade era uma rua de terra com lama e poças d´agua ladeada por casas e mais coladas umas às outras, até finar-se em tabuleiros e carnaubais sem fim. Minha primeira impressão de cidade era apenas uma ponta de rua de Campo Maior, naqueles longe tempos de não sei quando (Joaquim Pereira de Oliveira,1997)”.

O campo-maiorense desconhece o nome que homenageia sua rua. Poucos sabem sobre a origem do bairro em que nasceram e cresceram. Aquela pracinha da infância abandonada há anos pela prefeitura… O nosso percurso diário são marcados por significados, subjetividades e afetividades. Porém, muitos não conseguem enxergar por está imersos na rotina sufocante, que nos consome, naturaliza gestos e estreita a percepção. A relação com a cidade pode revelar muito sobre nós. As ruas são locais de memória e sociabilidade e não são apenas concreto, pedras, traçados e trajetos.

Referências Bibliográficas

Elmar Carvalho. Rosa dos ventos Gerais. Teresina-PI: SEGRAJUS- Serviços Gráficos do Tribunal de Justiça do Piauí, 2002.

OLIVEIRA, Joaquim Pereira de. Estrela no Chão: Memórias. Brasília-DF: André Quicé Editor, 1997.

DIAS, Carlos Alberto. Prata da Lei. Altos-PI: edição do autor.

VASCONCELOS, Marcos. Raízes de Pedra. Fortaleza – CE: Premius, 2006.

CELSON, Chaves. A Urbanização em Campo Maior (1930-1970). Campo Maior: edição do autor, 2007.

CELSON, Chaves. Rua Santo Antônio: a prostituição feminina em Campo Maior (1940-1975). Campo Maior: edição do autor, 2007.

PAIXÃO, Marcus. Ensaios do Norte. Campo Maior: edição do autor, 2016.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

O cavador de buracos




O cavador de buracos

Pádua Marques
Romancista, cronista e contista

Foi chegar naquela manhã pra mais um dia de trabalho e encontrar a rua toda cheia de buracos e os trabalhadores jogando a areia na calçada de sua sapataria na rua Duque de Caxias. Seu Mário saiu apressado pela calçada, entrou na rua do Rosário em direção da praça da igreja e em lá chegando viu aquele desmantelo todo. Desde a madrugada que a Parnaíba estava de cabeça pra baixo com as ruas sendo calçadas por ordem do prefeito Ademar Neves.

Puxou conversa com um sujeito, que pelo visto seria o mestre ali próximo e ouviu dele que a Parnaíba estava em obras. O dono da Sapataria Estrela voltou de cabeça baixa, segurando o molhe de chaves e pelo caminho curto foi procurando outros comerciantes pra somar as queixas com aquela anarquia que estava nas portas de seus estabelecimentos. Veio chegando mais gente e mais gente e o ajudante de balcão Pompílio, dito Carvalhinho, e se juntou aos que ficaram admirados com tudo aquilo. Conversa pra um dia inteiro!

Era um dia perdido pra seu estabelecimento e os de seus colegas na região do Hotel Carneiro e o Hotel Parnaíba, lugares onde se hospedavam os caixeiros viajantes vindo de Tutóia e São Luís no Maranhão e isso fora os homens de dinheiro no bolso de Parnaíba, industriais, corretores de cera de carnaúba, de jornalistas, médicos e advogados que viajavam pra outros centros e andavam ali pela mercearia do Bembém e nos cafés da praça da matriz com seus sapatos lustrados e de boa qualidade.

Mário de Lima Passos, o dono da sapataria mais procurada da Duque de Caxias em Parnaíba naquele ano de 1934, herdou o negócio do pai, Honório de Lima Passos e vivia tocando a sapataria na esperança de um dia mais lá pra frente entregar pra o filho único, Edgar, menino, quase rapazinho de seus quinze anos, mas que pouco mostrava interesse pelo comércio. Vivia debaixo da saia da mãe, dona Olívia, que fazia todos os gostos dele e escondendo suas peraltices.

O dono da sapataria queria porque queria que o filho se formasse contabilista, mas o menino, assim feito outros filhos de endinheirados da Parnaíba, não queria nada na vida. Vivia enfurnado no quarto escrevendo e desenhando esquisitices e a conversa era de que mais tarde iria levar pra seu Bembém, comerciante influente e que publicava uma revista, o Almanaque da Parnaíba. Vez em quando Edgar passava na loja, mas pra varrer as moedas das gavetas do apurado e depois seguia pra o cinema dos carcamanos.

O dono da sapataria que calçava os ricos, os caixeiros, os políticos, o prefeito Ademar Neves e até os pedantes e as mulheres elegantes, vivia zangado e queixoso da vida do filho. E de tanto viver gastando o que tirava da gaveta da loja o menino acabou dando pra beber e a fumar. Arranjou uma namorada e era de passar o dia inteiro na porta da casa dela prometendo mundos e fundos. Dona Olívia já nem metia a cara na porta da rua, de tanta vergonha.

Mas agora o dono da sapataria estava contrariado com Ademar Neves, a quem dava os piores nomes feios. Também pudera! Do dia pra noite a rua da sapataria ficou toda revirada! Duque de Caxias, 28 de Julho, rua do Miranda, travessa da Glória, rua do Braga, a Souza Martins, Riachuelo, Pires Ferreira, praça Jonas Correia e Marquês do Herval. E naquela revolta de quem estava sendo contrariado e prejudicado foi pra porta da loja tentando montar uma vingança.

Lá na ponta da rua Duque de Caxias apareceu o negro Simão Pedro, velho mestre de pedreiro e metido a letrado, a jornalista político. Vinha das bandas do porto. Quando não estava nalguma obra em cima de andaimes, dando ordens, era de passar na mercearia de seu Bembém pra tomar uma aguardente, um conhaque e ler algum jornal deixado à revelia. Gostava de falar mal de Getúlio Vargas e de birra dos intendentes passados e agora do prefeito Ademar Neves, a quem atribuía de ser gastador do dinheiro da prefeitura com coisas desnecessárias. Coisa sem fundamento.

Era naquela mercearia por onde passava toda a gente mais importante da Parnaíba e ele queria ser parte dela. Em lá instalado ia à procura de alguma coisa pra ler depois de sentado num tamborete perto da entrada da porta. Homem de boa estatura, negro retinto, rosto redondo, mais de sessenta anos, uns cacos de dentes na boca, os caroços dos olhos amarelos, sempre cheirando a aguardente e a fumo, vestia terno já encardido na gola de linho branco, gravata preta e andava calçado de tamancos.

Simão Pedro tinha as palmas das mãos grossas e encardidas, mas escondia uma coisa, uma arte nunca ali vista e se vista pouco entendida e acreditada na Parnaíba. Escrevia textos e versos na língua de Shakespeare. Seu pai, um irmão e seus tios trabalharam a vida inteira no porto Salgado pra o pessoal da Casa Inglesa e aprenderam a falar e a escrever alguma coisa. Mário vendo o negro mestre de pedreiro se adiantando na sua direção foi logo contando o ocorrido. Ele ficou ali ouvindo as queixas do comerciante e na cabeça formando alguma tirada pra por certo escrever depois.

Acertaram que Simão Pedro sabendo falar e escrever em inglês e sendo jornalista e metido no meio daquele pessoal bem que poderia escrever um artigo reclamando e falando dos prejuízos que as obras da prefeitura estavam causando aos comerciantes da região do centro de Parnaíba. Em troca ganharia um par de sapatos, novinho, da melhor marca e que muita haveria de servir pra quando fosse à missa na igreja dos pretos. Negócio fechado. O par de sapatos já saiu dentro de uma caixa e debaixo do braço do negro.

O mestre de pedreiro, como fazia de costume, foi sair da sapataria Estrela e mais um pouco estava dentro da mercearia de seu Bembém tomando seu conhaque. De lá foi ao Mercado Central e já bem pesado pela bebida tomou o rumo dos botecos imundos dos Tucuns. E foi lá que perdeu ou que lhe roubaram a caixa de sapatos. Dias passados e sem ter como dar satisfação pelo que havia tratado, desapareceu. Passou um mês, dois e três. Simão Pedro um belo dia foi visto calçado com os inseparáveis tamancos de cajueiro. Não teve diabo que fizesse se acostumar com aquela coisa nos pés.   

Live Lítero-Musical Oeirense


Eis o link da live: https://youtu.be/A9t9FFVunrg

JOSÉ DE LIMA COUTO

Escola em homenagem ao Prof. José de Lima Couto

JOSÉ DE LIMA COUTO

Vitor de Athayde Couto
Prof. Dr. e escritor

Ler o “Romance d’a Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, fez-me lembrar meu pai, José de Lima Couto, o Professor Lima Couto, ou, simplesmente, Zezico. Não pelo conteúdo daquela obra que é referência de brasilidade, mas, ouso dizer, pela precisão do poeta Carlos Drummond de Andrade, que declarou, referindo-se ao romance e seu autor:
“Não é qualquer vida que gera obra desse calibre”.
Bem na veia! Por essa mesma razão, tomo emprestadas as palavras do poeta, e afirmo sem hesitar:
“Lima Couto não é qualquer vida”.
A sua obra? Numa só palavra: Educação... no sentido totalizante, mais completo do termo. Calibre forjado em mais de meio século dedicado ao ensino de jovens que até hoje ocupam os mais diversos postos de trabalho, em todas as regiões do Brasil, alguns até no exterior. Dedicou-se, também, à formação de professoras, cuja atividade prática já começava no estágio de aplicação, curso criado especialmente para o tirocínio docente.
Por ter atuado publicamente contra o nazi-fascismo[1], acolheu missões de cooperação aliada, principalmente no imediato pós-guerra. Fluente em inglês, compreendeu e logo aderiu às primeiras propostas do children’s garden early education, ou kinden garden, mais tarde conhecido como jardim de infância – algo que, no Brasil, só se praticava artesanalmente em algumas pequenas colônias dos Estados do Sul, sob a influência de imigrantes europeus, e, mais tarde, japoneses.
Lima Couto perseguia uma meta:
“A criança entra na escola aos cinco anos de idade, e sai formada professora, aos 17 anos”, assim resumia o ciclo completo da Educação, implantado definitivamente quando da separação física da Escola Normal Francisco Correia, que se tornou autônoma em relação ao Colégio Estadual Lima Rebelo, antigo Ginásio Parnaibano.
Em 1961, quando ouvi essa frase, eu tinha 13 anos de idade. Mas, conforme encontrei anotado no seu currículo, Lima Couto e sua equipe já tinham criado o Curso de Aplicação, desde 1950! Claro que ele não fez nada disso sozinho. Quando me refiro à equipe, destaco a sua capacidade de liderar pessoas e de incentivar o trabalho de grupo, em cooperação – uma das coisas mais difíceis de se fazer. Todavia, posso imaginar como dava gosto trabalhar ao lado de outros educadores do mesmo calibre, com o mesmo nível ético e compromisso social. Os parnaibanos conhecem essa geração de idealistas, portanto, é desnecessário citar nomes, até porque são tantos e eu vou acabar esquecendo alguns. Apenas permito-me registrar um dos nomes mais importantes, e muitas vezes esquecido, talvez por ela ser mulher, quem sabe, por ser negra. Mas asseguro que, sem ela, o modelo nunca teria sido montado. Trata-se da ilustre Professora Maria Celeste de Jesus, uma das pessoas mais cultas e bem educadas que conheci. Dona Maria Celeste, a “Dedé”, braço direito de Lima Couto, tanto no Ginásio Parnaibano, quanto na Escola Normal. Na sua escola uniclasse, a Escola “Santo Antônio”, de agradável lembrança, Dedé educou várias gerações, tendo ali completado a minha alfabetização, iniciada precocemente com ajuda de minha mãe.
Voltando no tempo, imagino-me uma criança que começa a ler fora de hora... Como qualquer criança, quer ler tudo que encontra pela frente. Certa vez, eu estava na Farmácia Iracema, comecei a ler tudo que via e perguntava a meu pai, bem alto, para que ele pudesse ouvir:
“Papai, o que é Modess?” Coitado do professor! Da minha pequenez, deu para perceber esse raro momento em que ele ficou sem jeito, diante do numeroso grupo de fregueses. Dava pena ouvi-lo falar baixinho, procurando desviar a minha atenção, mas eu atacava novamente, e mais alto ainda:
“E pra que serve Água Inglesa, Saúde da Mulher...?”
Assim, percebe-se logo que Dedé era uma peça fundamental na educação das meninas, futuras normalistas-professoras, futuras mães e mestras. Isso porque meninas ficam menstruadas, apaixonam-se, e namoram – desde que não fiquem de farda pelos bancos das praças Santo Antônio e da Graça. Ainda bem que existia Dedé para orientar aquelas meninas misteriosas. Desde o curso ginasial, elas viviam acoitadas por trás de um muro alto que separava a nossa área de recreação. Terminadas as aulas:
“Direto para casa”, Dedé costumava recomendar, com elegância.
Candinho, um aluno muito moleque, retrucou:
“Fessora, isso é impossível!”
“E por quê, posso saber?”
“Porque... porque preu chegar em casa, não posso ir direto, tem que drobá beco”.
Nunca esqueci a infinita paciência de Dedé. Senti que, naquele momento, ela teve vontade de reativar a velha palmatória pendurada na parede, mas era apenas uma peça de museu. Em vez de palmadas, ela sorriu e começou a conjugar, tão escorreitamente quanto exigia o momento, o verbo dobrar, como se dobrou a sala inteira, diante de tanta altivez. Pacificamente, Dedé pairava, como pairam os espíritos superiores. Bastava um olhar e... pronto! Mas não era qualquer olhar. Tratava-se de um olhar de onde emanava uma energia cuja fonte era a sua prática de vida, a sua ética.
Foi essa repetida prática didática que forjou o conceito de Educação que Lima Couto repetia sempre:
“Educar é saber até onde vai o limite da paciência”.
Paciência... paz e ciência, afinal, ninguém é santo. Nem Lima Couto, graças a Deus. Como todo mundo, ele também perdia a paciência, mas só eventualmente. O perigo está em fazer da impaciência uma prática didática cotidiana.
No Ginásio Parnaibano encontrei professores que praticavam impaciência em tempo integral. Raríssimos, ainda bem. Eram os tais “explicadores” a que meu pai sempre se referia. Ele fazia questão de distinguir o explicador do educador, este, mais próximo da noção de Professor (com pê maiúsculo), passagem obrigatória dos seus discursos cheios de civismo:
“O Professor, quando professora, perde a sua individualidade. Não é ele quem fala, é a Pátria.”
Voltando às meninas, o fato é que algumas até ficavam grávidas. “Fugiam”, como se dizia na época, e eram praticamente obrigadas a abandonar os estudos para casar e constituir família. Todavia, esses casos precoces eram muito raros, graças à sólida formação que Dedé conseguia passar para aquele bando de adolescentes, hormônios à flor da pele, espinhas idem, vindas de tudo quanto era lugar do Estado do Piauí e de outros Estados vizinhos.
Para que esse modelo funcionasse em um único campus, outro curso ginasial teve de ser criado, completando o ciclo da Escola Normal Francisco Correia:
Jardim de infância > primário > ginasial > normal.
Dos cinco aos 17 anos! Era uma verdadeira “linha de montagem”, de tipo fordista, que acabava refletindo a admiração de Lima Couto pelo Henry:
“Ford dizia que os melhores operários para contar parafusos são os deficientes visuais”, porque prestam mais atenção, completava, comentando com mais detalhes as leituras que fazia diretamente de documentos estratégicos, todos em língua inglesa. É que o seu posto de encarregado da Defesa Pacífica Antiaérea dava-lhe o direito de receber, diretamente dos países aliados, particularmente Estados Unidos e Inglaterra, revistas com instruções que visavam à organização da defesa civil. Para o público brasileiro e hispano-americano, havia revistas escritas em português e espanhol. Ainda menino recém-alfabetizado, alcancei e cheguei a folhear vários números da famosa revista Em Guarda, destinada a informar os povos da América sobre os programas de defesa nacional e continental. Impressionavam-me as fotografias dos materiais de guerra, e, principalmente, dos incontáveis pára-quedistas que mais pareciam pontinhos no céu.
As revistas ensinavam como escolher abrigos antiaéreos seguros, como fazer suprimento de água e comida, dentre outras providências. Ao soar o alarme, deve-se desligar imediatamente a energia elétrica da usina, em caso de ataque aéreo noturno – é que, nas cidades, o clarão permanece durante algum tempo, mesmo depois de apagadas as luzes. Em Parnaíba havia muitas casas sólidas, com porões, algumas delas já mapeadas, e seus proprietários já estavam cientes quanto aos procedimentos a serem adotados. Os maiores porões localizavam-se em prédios públicos, particularmente estabelecimentos de ensino, a exemplo do Ginásio Parnaibano – principal local de treinamento dos grupos de apoio que eram constituídos, na maioria, por estudantes. Depois vim saber que foi a pressão dos estudantes brasileiros que levou Getúlio Vargas a se afastar do eixo e a ter coragem de aderir à luta pela liberdade, ao lado dos países aliados. Em Parnaíba, os estudantes chegaram a apedrejar o Vice-Consulado alemão. Essas palavras “eixo” e “aliados” sempre fizeram parte do meu vocabulário de menino. O velho e potente rádio Zenith que, durante a guerra, ficava eternamente ligado, prosseguiu ativo durante os anos dourados da minha infância. As notícias da reconstrução do pós-guerra eram entremeadas por marchas belíssimas, compostas por John Philip Sousa, um americano filho de português. Ainda bem que era tudo instrumental, sem aquelas letras horríveis de hinos que incitam à matança, como o hino da França (gosto da Marselhesa, desde que sem letra). Até hoje encantam-me os clássicos instrumentais de Sousa, como Stars and Stripes Forever, e o Hino da Marinha.
Dizem que o torpedeamento de navios na costa brasileira foi fundamental para que o nosso País declarasse guerra ao eixo. Não se sabe direito de onde vieram esses torpedos, mas um tal Guggenberger, comandante de submarino alemão, andou afundando vários navios mercantes brasileiros, entre eles, o “Tutoya”, provavelmente no litoral paulista, nas proximidades do porto de Santos. Tutoya era também como se chamava um porto muito ativo, próximo a Parnaíba; daí, o imaginário encarregou-se de criar lendas urbanas, até hoje não confirmadas, de que o “Tutoya” teria naufragado perto da praia da Pedra do Sal, e que, logo em seguida, um piloto parnaibano encarregou-se de bombardear o submarino do Guggenberger. Encontrei registros indicando que o submarino teria sido destruído, sim, mas por um piloto americano, de nome Whitcomb, no litoral Sul do Brasil.

Bastante honrado e ainda profundamente emocionado com o convite formulado pelos fundadores do Instituto Histórico Geográfico e Genealógico de Parnaíba, tremo só de pensar na responsabilidade de elaborar uma monografia que possa registrar minimamente uma vida tão rica de múltiplas determinações. Em outras palavras, uma vida-não-qualquer. Logo eu, que passo a vida a orientar monografias, dissertações e teses de pós-graduação acadêmica, “amarelei”, como se costuma dizer.
Sem saber por onde começar, apelo para o método, e, com ele, para o caminho mais fácil: começar do início. De onde veio Lima Couto? Bem no espírito do nosso Instituto, começo pela química: sangue português, gaúcho, e, principalmente, maranhense, do Brejo, antigo aldeamento dos índios Anapurus. Assim resume-se a sua despretensiosa genealogia que tem, no topo, simples comerciantes de interior.
No início dos anos 50, eu viajava, de avião, com apenas cinco anos de idade. Para os meus olhos de menino curioso que brigava por uma janela no DC-3 da Cruzeiro, o Brejo era um campo de pouso, onde o sólido “jipe voador” testado na guerra fazia uma escala, indo para Teresina. Descíamos até a modesta estação de passageiros onde meus pais compravam doce de bacuri, em calda. O doce, que era artesanal, vinha acondicionado numa lata reaproveitada de leite em pó, esterilizada na fervura, cuja tampa era lacrada com solda. Meu pai gostava tanto do Brejo que dizia ser aquele o melhor doce do mundo. Sim, ele tinha muito boas lembranças de lá, lembranças de uma infância cheia de momentos felizes alternados com puxões de orelha, quando ele implorava ao meu avô, enquanto era literalmente arrastado até sua casa:
“Papai, agora puxe a outra orelha que é pra uma não ficar maior do que a outra!”
Eu não conheci meu avô, ele morreu exatos três anos antes do meu nascimento, no mesmo dia e mês. Por conta disso, meu aniversário quase nunca era festejado. Mas ouvi falar que o “vovô Couto” era comerciante, pai de trinta filhos nascidos de dois casamentos (dez mais vinte). Lima Couto era um dos filhos mais jovens, o penúltimo, talvez. De tão grande que era a casa do vovô Couto, tornou-se um colégio. Dizem que tem lá, no Brejo, uma praça com o nome dele, numa placa onde se lê “Praça Coronel Couto”.
Conheci minha avó, Joanna Angélica, com quem ainda convivi por uns dez anos. Apesar da catarata bastante avançada, “vovó Joaninha” percebia bem os netos, contava histórias, cantava com muita alegria e andava sempre perfumada. Eram perfumes fortíssimos, que naquele tempo ainda não me incomodavam. Mesmo sem gostar de perfumes fortes, sinto tanta saudade, uma vontade de ver tudo de novo, sentir novamente os extratos, ganhar balas, mariolas e alfenins – que ela chamava de “puxa” – era puro açúcar, e eu, pura saúde, pouco ligava para essas coisas. Quem sabe, eu voltaria a ouvir “Os Lusíadas” e outros clássicos, que ela recitava decoração[2]. Ora, se ela era capaz de memorizar aquele gigantesco épico, senti-me encorajado a encarar os quarenta versos de Olavo Bilac, que recitei, de cor, no dia do seu aniversário:
“A avó que tem oitenta anos...”, que meu pai cuidou logo de ajustar para noventa, tal era a sua idade celebrada naquele dia, embaixo de um enorme puçazeiro que existia no quintal da casa de tia Noquinha.
Lima Couto era muito comunicativo. Além da habitual simpatia, revelava uma rara capacidade de conversar através de gestos, atitudes, desenhos, e até em várias línguas estrangeiras, particularmente o inglês. Certa vez, um americano de origem judaica comentou com ele, no balcão do café de algum aeroporto:
“Se eu pudesse reunir e vender todo o açúcar que os brasileiros deixam no fundo da xícara de café, eu seria o homem mais rico do mundo”.
Embora seja mais conhecido como educador, diretor de estabelecimentos de ensino e pioneiro na criação de novos cursos[3], Lima Couto era um homem pluriativo. Na adolescência, foi garçom, em São Luís, quando precisou custear os próprios estudos. Em Aracaju, enquanto estudava na Escola Técnica de Comércio “Conselheiro Orlando”, trabalhou com um tio, como despachante de navios. Essa atividade rendeu-lhe o aprendizado de línguas estrangeiras, com facilidade. Autodidata, ainda estudante, já dava aulas particulares de Inglês em Aracaju.
Em 1929, pegou um “Ita” e foi visitar a família, no Brejo. Não podendo regressar a Aracaju, devido às perturbações políticas de 1930, quando foi suspensa a navegação de cabotagem, ficou retido em Parnaíba. Enquanto aguardava o desenrolar dos acontecimentos, abriu o “Café Globo”, no centro da cidade, e incentivou sua irmã, a tia Noquinha, a fazer pastéis que passaram a ser vendidos no café. Esses pastéis ficaram tão famosos que podiam ser encontrados até nos bailes do Cassino, acompanhados do guaraná “Globo” – e, também, “Soberano”, para quem tem boa memória.
Nas horas vagas, Lima Couto dava aulas particulares de Inglês, quando teve, como aluno, ninguém menos do que o Dr. Raul Bacellar. Foi quando lhe chegaram dois convites: um, para abrir um colégio no Mato Grosso, em sociedade com dois irmãos que moravam em Campo Grande, onde se encontravam bem situados nas suas fazendas de gado e casas de comércio; outro convite veio da parte do Professor Lima Rebelo, para ensinar Inglês no Ginásio Parnaibano. Quando ele já estava quase decidido a viajar para Campo Grande[4], conheceu Dalva, com quem se casou oito anos depois. Pode-se dizer que, em 1930, Lima Couto experimentou duas revoluções que o retiveram em Parnaíba: a Revolução de 30, e o fato de ter conhecido minha mãe, que revolucionou o seu coração logo à primeira vista.
A sua segunda experiência no comércio foi a abertura da livraria “A Escolar”, que tinha como slogan: “a casa pequena que faz grande benefício”. Leia-se: benefício aos estudantes, que passaram a ter onde comprar seus livros e outros materiais escolares. No início das aulas, ele organizava kits escolares que eram presenteados, em segredo, para alunos reconhecidamente carentes, mediante o compromisso de estudarem com seriedade. Caridade cristã? Idealismo? Nunca se saberá. Aquele “olho no olho”, sempre na presença dos pais, parece ter funcionado. Benefício público.
Como merecida homenagem, a cidade deu seu nome a um centro de ensino de línguas estrangeiras, pioneiro na política pública conhecida como “inclusão digital” – para que os jovens também aprendessem informática. Lembro que fui, com minha mãezinha, já idosa, assistir à inauguração daquele estabelecimento. Daqui de longe, onde moro, soube, com muita tristeza, que o centro foi fechado... Tomara que isso não seja verdade.
“Quem tem um ideal, vive dele” era sua frase predileta. Lima Couto também foi um educador de gerações. “Já tenho alunos que são netos de meus ex-alunos”, gostava de lembrar, bem-humorado. Ele sempre lutou pelo ensino público, e pela socialização da educação como prática democrática. Nunca fez dela um negócio lucrativo, no sentido pecuniário do termo. Ao contrário, foi precursor do que hoje se define como “inclusão social”, ao conseguir, junto a ex-alunos que tiveram oportunidade de assumir cargos públicos, a estadualização simultânea do ginásio, científico e do curso normal. O ensino gratuito somava-se aos materiais escolares de boa qualidade, conseguidos junto à Campanha Nacional de Material Escolar, do Ministério da Educação. Lápis, borrachas, réguas, cadernos, livros, Atlas histórico e geográfico, dicionários de português, inglês, francês, latim, e belíssimas coleções de Ciências eram vendidos por um preço apenas simbólico – nunca foram distribuídos “de graça”. Ele mesmo encarregava-se de entregar os materiais, com recomendações para pais e alunos, olhando cada um, bem nos olhos:
“Estude e cuide bem dos livros, eles vão servir para os seus irmãos!”
Parece que, hoje em dia, por muito menos serviço prestado e nenhum carisma, tem gente construindo outras “linhas de montagem”, mas em seu próprio benefício, seja nas escolas, nas igrejas ou na política partidária dos poderezinhos locais e efêmeros. Benefício privado.
Com as economias que minha mãe fazia, foi possível enviar quatro dos cinco filhos para “estudar fora”, como se dizia na época. Felizmente, meu irmão mais novo já pôde estudar em Parnaíba, na Faculdade de Administração, que Lima Couto ajudou a criar, sob a liderança de Cândido Athayde e Lauro Correia. As famílias parnaibanas sabiam muito bem o quanto custava ter um filho estudando fora, mas até esse problema já estava superado, graças ao trabalho daqueles idealistas. Com o ensino superior público, ir à Universidade deixou de ser um privilégio dos ricos e das camadas médias da sociedade.
Dentre outras atividades, Lima Couto praticava esportes, com destaque para corridas, remo e natação, bem como ginástica sueca, muito em voga na década de 30. Nunca bebeu, nunca fumou, nunca quis comprar automóvel – principal objeto de desejo no imediato pós-guerra – preferia sempre caminhar, caminhar... Na juventude, participou de competições de corrida e natação que ele mesmo organizava com seus sobrinhos e outros amigos. Além de atleta, professor de ginástica e fotógrafo amador premiado, ele foi jornalista profissional, de carteira, e tinha, como confrades, ninguém menos do que Bembém, Fonseca Mendes, e Moacyr Cunha.
Lima Couto talvez tenha sido, na sua época, um dos raríssimos tradutores juramentados, cadastrados na Junta Comercial. Parnaíba chegou a contar com vice-consulados, consulados honorários ou câmaras de comércio de vários países. Ele era encarregado de traduzir documentos de firmas comerciais, além de notas fiscais que acompanhavam mercadorias vindas do exterior. No entanto, o trabalho do tradutor não se restringiu a frios documentos comerciais. O seu entusiasmo maior concentrava-se na difícil arte de traduzir poemas originalmente escritos em língua inglesa, a exemplo do “Salmo da Vida” The Psalm of Life, de Henry Wadsworth Longfellow, e “O Arco-íris” The Rainbow, de William Wordsworth, este último, dedicado às crianças que ele tanto amava. Pluriativo incurável, sempre arranjava um tempinho para ser o melhor pai do mundo.
[1] O que lhe rendeu muitas oposições, e, com elas, tantas dificuldades que ele sempre soube superar.
[2] Decoração, decorado, de cor e salteado – assim era a sua vasta memória, intensificada pela cegueira. Ela já não podia ler nos livros, só na saudade, essa incrível “asa de dor do pensamento”.
[3] A criação do primeiro curso superior, de Administração, que deu origem ao atual campus parnaibano, da Universidade Federal do Piauí, contou com sua fundamental participação.
[4] A carta-convite, assinada por Almir de Lima Couto, ainda existe, guardada no seu gabinete de trabalho.