quinta-feira, 31 de março de 2022

SOBRE SOGRAS E MADRASTAS

 

Foto meramente ilustrativa    Fonte: Google

SOBRE SOGRAS E MADRASTAS


Elmar Carvalho


O grande Machado de Assis disse que teria meia dúzia de leitores. Ora, se Machado que era o Machado dizia isso, que direi eu? Bem, o fato é que um de meus poucos leitores, no caso o professor Nelson Rios, de Regeneração, dizendo que amanhã será o dia do sogro, e que ele gosta muito do seu, o senhor Raimundo Rodrigues Coimbra, pediu-me escrevesse alguma coisa sobre esse nosso parente por afinidade.

Inicialmente, devo dizer que nunca fui dado a escrever poemas de circunstância ou a pedido. Nunca tive habilidade para isso, mas desta feita abrirei uma exceção, mesmo porque o texto será em prosa. Por falar em parente por afinidade, se realmente houvesse afinidade, entre genro e sogro, sem dúvida seria uma grande dádiva e bênção. E se houvesse amizade, melhor ainda.

O fato é que não escolhemos nossos parentes, simplesmente nascemos em determinada família. Já os amigos, não; nós os escolhemos, pelas afinidades, pelas identidades, simpatia e admiração. Diz-se que os opostos se atraem. Isso pode ser verdade na física, no eletromagnetismo, mas não creio ser na amizade e nem no amor. Por que um homem bom e de bem seria amigo de um bandido, sobretudo perverso? Não creio haver motivo para isso, mesmo porque um homem mau e do mal não é amigo de ninguém, mas apenas cultiva os seus interesses e finge amizade, na defesa de suas conveniências momentâneas.

Agora, a mulher ou o marido são escolhidos por nós. Consequentemente, vamos ser genro ou nora de um parente de nosso cônjuge, que ele não escolheu, e que veio de contrapeso com o casamento. A Bíblia diz que, quando uma pessoa casa, deixa o pai e a mãe, para ir ser carne da mesma carne de outra pessoa. Claro, o texto sagrado não está recomendando a ninguém o abandono de seus pais, mas advertindo-o de que a sua preocupação, em primeiro lugar, deve ser com a família que irá constituir, principalmente com a vinda dos filhos.

No Brasil, seja por brincadeira ou por preconceito, as sogras são estigmatizadas, e consideradas verdadeiras megeras, vítimas das mais sarcásticas piadas. Em outros países, essas parentas afins são consideradas uma espécie de segunda mãe, e até são chamadas e tratadas como tal. No Brasil, talvez a sogra seja considerada uma espécie de mãe postiça, e muito desse preconceito venha de velhas estórias infantis, em que as madrastas maltratavam os enteados, sendo que uma delas enterrou uma orfãzinha, que, com um fio de voz, sumida e chorosa, vinda das entranhas da terra, pedia ao capineiro de seu pai para não lhe cortar os cabelos, que haviam nascido e crescido do ventre da terra.

Esse conto cortava o coração dos lacrimejantes pequenos que o ouviam. Há o ditado popular que diz: “Mateus, primeiro os meus”. Quiçá, em muitas mulheres, haja mesmo uma nítida preferência pelos seus filhos do que pelos enteados, mas isso não pode ser generalizado. Muitas madrastas foram mães extremosas para os enteados, e cuidaram deles com todo o desvelo de uma mãe de verdade.

A mesma coisa sucede em relação a sogros e sogras: muitos são verdadeiros pais para seus genros e noras, e lhes dedicam um verdadeiro amor familiar. Estimo que o meu leitor Nelson Rios, professor de matemática, mas versado em Humanidades, nesse aspecto seja um privilegiado, por ter um sogro de sua máxima estima e benquerer. 

9 de março de 2010  

quarta-feira, 30 de março de 2022

O sertão e a saudade em dois livros

 




Recebi ontem, pelos Correios, enviados pelo instrumentista, cantor, compositor e poeta José Paraguassú, os livros Sertão Encantado, de sua autoria, e Saudades da Infância, da lavra de sua esposa, Dina Paraguassú.

Os livros foram bem impressos, têm belas capas e trazem páginas preambulares, que registram a impressão de leitura, com comentários críticos e biográficos, de autores diversos, entre os quais José Bruno dos Santos e Adrião Neto.

Sobre o primeiro, diz o seu autor: “Sertão Encantado é a história contada em versos e prosas da minha experiência e vivência no sertão. Eu  não nasci no sertão, foi o sertão que nasceu dentro de mim”. Com essas palavras, José Paraguassú demonstra a sua ligação visceral e guimarães-rosiana com os encantos e feitiços sertanejos e catingueiros.

CARTA A UM CERTO GESTOR PÚBLICO



CARTA A UM CERTO GESTOR PÚBLICO


Antônio Francisco Sousa – Auditor-Fiscal (afcsousa01@hotmail.com)

 

                Saudações, senhor gestor municipal. Sei que o pronome de tratamento que lhe deveria dispensar, fosse acatar as normas gramaticais e sintáticas da última flor do Lácio para esse tipo de vocativo, seria um excelentíssimo; mas qual o quê? Que de excelente, notável ou notório tem feito vossa senhoria – a propósito, parece já mais que ideal, também essa forma de tratamento ou, talvez nem dela se faça merecedor, por não pouca razão e motivos – por essa entidade estatal cuja administração lhe caiu às mãos que, até agora, mostraram-se modorrentas ou pouco afeitas ao exercício do trabalho exigido? Acaso estaria o senhor despreparado para exercê-lo? Não? Então, a que se deve tanta reticência protelatória?

                Segundo disse seu companheiro de cédula eleitoral, ainda em tempo de campanha, a instituição cujo povo lhes delegaria o comando integral, não se bancava em termos de arrecadação tributária própria, gastava mais do que obtinha em receitas, estava, pois, quebrada; há que se dizer, por oportuno, não ser verdadeiro  o estado de falência pregado por seu auxiliar, e se torcer para ter sido meramente demagógica a afirmação de que as aplicações de recursos seriam inferiores às origens, pois isso significaria a existência fática de crime, haja vista, contabilmente, ativo e passivo terem que se equivaler; todavia, se arrecadação superior a gastos e/ou dispêndios for um privilégio, poucas cidades brasileiras são detentoras dele; a maioria é bancada pelos fundos constitucionais e outros complementos financeiros públicos disponibilizados pela União; mas, a despeito de essa lengalenga, há que se dizer que a cidade que receberam para administrar, comparada a tantas outras país afora, estaria acima da média, se não autossuficiente, longe das condições que assolam muitas de suas congêneres; tanto que sempre se manteve entre as melhores em se tratando de educação e saúde públicas, referência mesmo, em certos casos; adredemente, não seria cabotinice nem leviandade de não eleitor, afirmar que, à caça dos votos que conduziriam o senhor ao comando dela, lançou-se vossa senhoria, voluntária e, espontaneamente; portanto, se há alguém com direito a reclamar, e muito, não é o prezado; portanto, pare de fingir que visando ao céu, ganhou o inferno. Hora de se lançar ao trabalho, cidadão.

                Agora, falarei sobre o desmantelamento administrativo propriamente dito, observável sem grande esforço visual ou mental, por qualquer cidadão minimamente atento. Parece um desejo ignóbil, inexplicável, autocrático, tirânico, talvez – não venha dizer que é para melhorar a mobilidade no trânsito – dessa lógica padecemos em governos anteriores -, essas estapafúrdias reengenharias intervencionistas em importantes vias que unem áreas muito populosas, e que culminam, sim, por facilitar congestionamentos e aumentar a recorrência de acidentes -,  ilhar determinadas regiões da cidade; no bairro Morada do Sol, só para citar um exemplo, é como se o poder público quisesse impor a seus moradores o castigo de não lhes permitir chegar e/ou sair, com celeridade e segurança, de seus lares para o centro de suas ocupações laborais; se não, por que as instituições de trânsito têm buscado eliminar quase a totalidade dos retornos e conversões de alguns logradouros, como os da avenida Dom Severino, da Homero Castelo Branco – pegando apenas um trecho – até o balão final daquela via pública, sem oferecer alternativas viáveis? Está, praticamente, sem conversões simples à esquerda quem naquela trafega naquele logradouro. O que deveria fazer para melhorar a mobilidade e o deslocamento dos habitantes da área servida pelas ruas e avenidas citadas? Uma alternativa elementar seria tornar acessível,  reparando ou substituindo o péssimo pavimento das ruas Mundinho Ferraz, Senador Luís Gonçalves, paralelas à dom Severino: isso diminuiria o fluxo em parte desta via; nem ousaria exigir tal gentileza para com a rua Assis Veloso que, além de ainda estar com a pavimentação poliédrica da década de oitenta, do século passado, portanto, há quase quarenta anos e, por conseguinte, em péssimas condições físicas, vez ou outra serve de desvio de tráfego e trânsito para outras vias, como aconteceu dias atrás, quando ela recebeu de uma de suas vizinhas, que passava por reparos no sistema de fornecimento de água, grande parte do fluxo de caminhões, ônibus, excetuando-se aviões e trens, até barcos, pequenos iates e embarcações do tipo jet ski, por ela trafegaram rebocados por pesadas camionetas; com o sobrepeso imposto ao velho e caquético pavimento, coitada da rua, passaram a nela ser recorrentes os vazamentos na rede de água; a propósito, a concessionária do serviço, seja para colocar na gestão do senhor mais um senão, seja porque fora contagiada por sua modorra e passividade, tem sido bastante negligente e/ou despreocupada com os necessários reparos, que, mesmo após insistentes reclamações dos moradores, demoram semanas para serem feitos.

                A princípio, havia pensado em tecer críticas e reclamações mais ácidas sobre temas como saúde, educação, segurança, transporte, dentre outros, mas não o farei agora, tantos são os cidadãos insatisfeitos, arrependidos da má decisão eleitoral tomada que, recorrentemente, vêm se manifestando, onde podem, a respeito da falta de atenção e de interesse do senhor para com as necessidades da população; citá-las, possivelmente, só recrudesceria a falta de paciência com sua gestão.

                Despeço-me esperando que algum discernimento e tino administrativo lhe sobrevenham, de modo que, imbuído deles, possa olhar com maior atenção o que ocorre a seu redor, torne-se mais operoso em suas atribuições, e zele pelo órgão ao qual, apesar de o senhor diagnosticar como canceroso metastático, espontânea e, voluntariamente, arvorou-se a dele querer cuidar. Faça-o, pois, da melhor forma possível; aplique-lhe a medicação adequada. Que Deus lhe (e nos) proteja, amém!          

Ave sem asas

 


Ave sem asas


Sousa Filho

  

Ó,  ave sem penas!

Como queres voar?

Se,  sequer ...

Se sequer tens penas?

Se sequer tens pena de ti?

Ó, pseudo-ave...

Como voarás?

Vã ilusão!   

terça-feira, 29 de março de 2022

ANTÔNIO CABELIM: CORAÇÃO E BRAÇOS DO BAIXÃO DO UMBUZEIRO (PI)





ANTÔNIO CABELIM: CORAÇÃO E BRAÇOS DO BAIXÃO DO UMBUZEIRO (PI)


Por Eduardo Pontin 

Fotos: Francisca Sousa





Quando perguntado em que Era havia nascido, Antônio Raimundo Torres, popularmente conhecido por Antóim Cabelim, costumava responder: “Na Era da fome”. Uma maneira de dizer que havia nascido em 1932, ano das mais severas secas do Piauí, retratado inclusive no conto “32” do grande escritor picoense Fontes Ibiapina. Cabelim foi homem pra tudo. Não foi rei porque pelas bandas do interior do Piauí todos são senhor de seu próprio destino, mas foi muito mais que rei. Foi braços, mãos, mente e coração do povoado que ainda hoje é conhecido pelo poético nome de Baixão do Umbuzeiro, município de Wall Ferraz, antiga localidade chamada de Ilha Estadual, no Centro-Sul do Piauí.


Antônio Cabelim nasceu no povoado Riacho, que hoje faz parte do município de Floresta do Piauí. Foi o primeiro de muitos filhos de José Raimundo Torres e Izabel Vicença da Conceição, a Belinha. Para escapar da fome, com pouco tempo o casal se mudou com Antônio Cabelim ainda criança mais outros filhos para o povoado Cajazeiras, município de Picos. De lá, conforme a família ia aumentando, a peregrinação continuava para outros povoados da região, como Baixi, em Paquetá.



O apelido Cabelim vem de seu avô, o cearense Raimundo José Torres, o primeiro da família a bater em retirada rumo ao Piauí em busca de terras onde a chuva fosse mais clemente. Com cabelo ralinho, não tardou para o povo o sair chamando Raimundo Cabelim. Com o povo é assim, o defeito mais vistoso se transforma no apelido da pessoa. O apelido “Cabelim”, Raimundo passou para o filho, que passou para o neto que já passou para o seu bisneto.

Ainda jovem, Antônio Cabelim encontrou o amor de sua vida, Dona Pequena, e botou na telha que ia se casar, mesmo sem um tostão furado. Peitou família, e, assim como na quadra da Lezeira, dança mais popular da região, disse a tua mulher: “Minina, tu qué, eu quero/Tua família num qué/ Ti assustenta a tchia palavra/Se arrebenta quem quisé”.



E assim foi feito! O casal morou 4 meses no povoado Cajazeiras e 8 anos no povoado Carnaúba, mas quando Cabelim deu pra conhecer o Baixão do Umbuzeiro, se encantou como se tivesse encontrado a terra prometida. Num negócio louco que envolvia entrada e prestações, comprou um terreno e arrochou o pau, brocando e limpando o lugar para construir a casa que seria o lar da sua família. 

Ao chegar com Dona Pequena no Baixão do Umbuzeiro em fins dos anos 1950, o povoado era algo como Fontes Ibiapina descreveu no romance “Tombador” (1971): “Quando ali chegaram, não havia vivalmas para remédio por aquelas bibocas. (...) era um mundão folote de terras. Mas inculto, seco de tinir durante o verão. E desabitado. Só aquele chapadão sem fim, e pronto”. Mas Antônio Cabelim não esmoreceu, assim como o personagem Bernardino do romance de Fontes: “Aquilo era que era ser homem de sangue no olho! Estudou o problema com gosto e carinho. Mediu, palmo a palmo, circunstâncias e possibilidades. Adereçou os apetrechos. E meteu os peitos”.



Por esse período, enquanto construía a casa, morou de julho a outubro debaixo de um grande pé de juazeiro junto com a esposa, a filha primogênita Inácia e o filho que haviam pego pra criar, Zé Cabelim. Dormiam em rede. Dona Pequena relata que certa noite viu um movimento ziguezagueado num dos troncos do pau e avisou Antônio Cabelim, que pediu que ela aquietasse e dormisse. Eram cobras. Nada aconteceu a ninguém.

Pouco depois, já com um cômodo da casa construído, Antônio Cabelim se mudou com a família e firmou residência no Baixão do Umbuzeiro, terra que com inverno bom chegava a dar 40 quartas de feijão.



Cabelim trabalhou duro na roça e foi adquirindo pedaços de terra. Protegia suas propriedades com cercas feitas de pedras. Com suas mãos, ia pegar as pedras no mato, que eram transportadas no lombo de jumento e depois as colocava, uma por uma. Ainda hoje as cercas de pedra estão lá, de pé. 


Cabelim trabalhou de sol a sol e passou a dominar todas as etapas de produção do que sua família necessita para viver. Sua casa foi construída com adobes que ele mesmo fazia, retirando barro da natureza, o misturando com estrume de gado e os juntando com os pés. Depois de ganhar consistência, colocava o barro em formas para adquirir o formato de tijolo e o botava para secar ao ar livre. As vigas de sua casa são de árvore de carnaúba. As telhas são de barro e ele mesmo as fez. Não comprou nada, fez tudo com as próprias mãos.



Com o entendimento que adquiriu fazendo sua própria casa, Cabelim começou a receber empeleitas para construir casas no Baixão do Umbuzeiro, o que fazia com extremo cuidado e competência, a um preço justo.


Também não comprava nada do que ele e sua família comiam. Plantava o arroz e o feijão. Da plantação de macaxeira, produzia farinha de goma em sua casa de desmancha para ter beiju o restante do ano. Quando a situação apertava, Cabelim ia buscar caça do mato: tatu; peba; lambu; rolinha etc. Aos poucos, foi adquirindo pequeno criatório de gado, bode, porco e galinha.

Produzia o currulepe que ele, sua mulher e filhos calçavam. Também confeccionava o surrão de couro para armazenar os legumes dos invernos bons e ruins. Em tropa, ia tangendo animais e percorria grandes distâncias para vender e comprar mercadorias como farinha e feijão. Muitas foram as viagens até os Picos de pés. 



Antônio Cabelim foi um dos primeiros homens a movimentar a economia local do Baixão do Umbuzeiro, contratando trabalhadores para roça. Pessoas hoje com pouco mais de 40 anos contam que davam um jeito da enxada quebrar para terminar o trabalho do dia, pois ninguém segurava o rojão do velho Cabelim, que trabalhava até o sol dar seu último suspiro do dia.

Antônio Cabelim tinha um coração enorme. Quantas não foram as pessoas que iam lhe tomar dinheiro emprestado para tentar a sorte em São Paulo sem nenhum juros. Inclusive, muitas dessas pessoas lhe davam o calote, o que era sempre perdoado por ele. Cabelim e Dona Pequena tiveram uma filha, Inácia, e criaram mais dois, Zé Cabelim e Toinha. Sem contar os inúmeros agregados, a casa vivia cheia com muitas bocas para alimentar. 



Mas sua casa era lugar de fartura, pois com o seu trabalho na roça conseguia tudo o que precisava para sustentar os seus. Antônio Cabelim, além de ser humano sem igual, foi um homem de visão. Pensou e amou o seu Baixão do Umbuzeiro, terra de onde nunca saiu nem imaginou deixar para viver as ilusões da cidade grande.

Na mesma casa que construiu em fins de 1950, hoje em 2022 ainda não há televisão ou internet. Assim, mesmo nos dias atuais quase todas as noites filhos, netos e bisnetos de Cabelim e Pequena se reuniam na ponta de terreiro de sua casa para conversar e ouvir as estórias de trancoso que o velho sabia contar como ninguém. 


Seu Cabelim e Dona Pequena ainda hoje preferiam dormir em redes paralelas, sustentadas nos troncos de carnaúba, na sala. Mesmo com geladeira em casa, nunca se desfez do pote de barro, que vive devidamente abastecido para quando a energia acabar não faltar água fresquinha. 


Mesmo com fogão a gás, nunca dispensou o fogão a lenha, que inclusive era muito mais utilizado. 


Já com idade avançada, gostava de ficar sentado no alpendre de sua casa nos finais de tarde, esperando as poucas cabeças de gado que lhe restavam pra remédio chegarem. Elas pareciam reconhecer o seu dono, pois ficavam ali na cerca, à espreita. Quando alguém brincava que queria comprar o seu gado, ele dizia que não vendia, e justificava: “o gado é a corda do meu coração”.


Cabelim viveu para os seus e para o Baixão. Aos 80 anos foi acometido pelo Mal de Alzheimer. Não largou o trabalho, o trabalho é que largou ele.

Cabelim tinha um bom-humor contagiante, era um contador de histórias fino. Embora sem estudo, possuía vocabulário rico, vivíssimo, com imagens poéticas de dar inveja a poetas eruditos. Tudo o que fez aprendeu vivendo, na prática, observando e tentando fazer.



A história de Antônio Cabelim não é única, ela é um retrato de boa parte do povo piauiense e nordestino de outrora, que com grande coragem e disposição, enfrentou a vida com gosto de gás e transformou o mundo ao seu redor com as suas próprias mãos.

Antônio Raimundo Cabelim partiu desse plano aos 89 anos, no dia 27 de março de 2022, mas está vivo em seu amado Baixão do Umbuzeiro, povoado que pode ser definido pelos versos poéticos do grande Cantador de Viola picoense Barrazul, que ele tanto admirava:


“Orgulhoso eu sou por ter nascido

A três léguas de Picos, a Oeste

Clima quente, distante do agreste

Entre os morros da Data Boqueirão

No recanto mais pobre do sertão

Nos carrascos mais secos do Nordeste”.


domingo, 27 de março de 2022

Seleta Piauiense - Adail Coelho Maia

 


O mal do peito

 

Adail Coelho Maia (1909 – 1962)

 

Estou enfraquecendo, estou murchando,

Rumo ao termo final dessa existência

Para o mal que em meu peito está minando

Não posso mais dispor de resistência.

 

Só confiado, pois, na Onipotência,

Fico a esperar e não sei mesmo quando,

Acharei, nos recurso da Ciência,

Alívio ao mal que está me torturando.

 

Dentro de mim alguma coisa dói

É o mal do peito que me está roendo

É o mal do peito que em meu peito rói!

 

Sofrendo assim de um mal, que não tem jeito,

Contrito, lentamente irei morrendo,

Com o “mal do peito” dentro do meu peito.

 

Fonte: O Lira do Sertão – Sonetos, Coleção Centenário, APL, 2ª ed., 2019.    

sábado, 26 de março de 2022

PÃO E CIRCO



PÃO E CIRCO


José Expedito Rêgo


Na Roma antiga quem mandavam eram os patrícios, os senhores da terra e suas riquezas. Mas esses senhores precisavam do povo em geral, escravos ou libertos, que lhes concedia apoio político e de onde recrutavam seus exércitos, as poderosas legiões que servirem à conquista do grande Império. Para ganhar a simpatia popular, apelaram à política do pão e circo. O Coliseu, o grande circo romano, era o local máximo de divertimento. Ali o povaréu delirava apreciando as lutas entre feras, entre gladiadores, assistiam ao massacre de cristãos por leões famintos. Os sábios patrícios preocupavam-se bastante para que não faltasse alimento às populações. Assim conseguiram conduzir por longos anos o vasto domínio.


No Brasil, há um arremedo parcial da política romana. Aqui, procura-se divertir o povo com futebol e carnaval. Todas as capitais de Estados possuem bons estádios de futebol e o Maracanã é o maior coliseu do mundo. Não é à toa que esses campos esportivos trazem, todos eles, nomes de políticos.


Quanto ao carnaval, há uma pequena inversão. O povo é participante e a assistência é formada por turistas e outros ricaços que podem adquiri os caros ingressos para os camarotes dos sambódromos. Hoje em dia, os componentes das escolas de samba são menos foliões do que trabalhadores das empresas de turismo.


Os donos da terra, entre nós, esquecem-se, no entanto, de uma coisa importante para manter o povo submisso: a alimentação. Sabemos que a fome real e a subalimentação cobrem boa parcela da população brasileira. E o que se faz para melhorar a situação é deixar apodrecer, nos armazéns do Estado, milhares de toneladas de grãos, por desleixo, burocracia, pouca vergonha, maldade cretinice.


O império romano, muito mais poderoso do que os donos do Brasil, terminou esfacelando-se por lutas internas e invasões exteriores de bárbaros.


O Brasil continua de pé porque o povo é dócil, incapaz de uma revolução de verdade e não existem bárbaros em redor. Ao contrário estamos cercados de nações irmãs, tão pobre quanto nós, subdesenvolvidas e tristes.   

quarta-feira, 23 de março de 2022

Miragens da Serra da Capivara

 


GLÓRIA TARDIA



GLÓRIA TARDIA


José Expedito Rêgo (1928 - 2000)


O egoísmo, a inveja e o preconceito da maioria das pessoas fazem com que indivíduos de valor não sejam reconhecidos em vida e alguns somente consagrados vários anos depois da morte. João Sebastião Bach, um dos maiores gênios musicais de todos os tempos, pioneiro de novas técnicas em composição, teve sua maravilhosa obra divulgada e consagrada mais de cem anos depois de seu falecimento, quando foi retirado do fundo do baú esquecido entre trastes, a partitura da PAIXÃO SEGUNDO O EVANGÉLHO DE SÃO MATHEUS, considerada pelos entendidos uma das músicas mais lindas e perfeitas jamais compostas. Deve-se a Mozart, outro gênio da arte de Orfeu, o reconhecimento e propagação da música de Bach mundo afora.


Um quadro de Vicente Van Gogh vale atualmente milhões de dólares. E esse grande pintor holandês teve uma vida atormentada pela pobreza e pela doença, sem que ninguém desse valor às coisas que pintava, tidas na época como loucas e incompreensíveis. É verdade que era neurótico e os quadros refletiam seu estado mental. Mas Freud já mostrou que a obra de arte é a sublimação de impulsos inconscientes recalcados. O fato de artista ser doido e cortar a própria orelha num acesso loucura, não tira o valor do que pinta ou compõe. Van Gogh fez pior ainda, deu um tiro no peito, vindo a falecer em 29 de julho de 1890.


Aqui no Brasil vimos a grande escritora goiana, Ana Linz dos Guimarães Peixoto Bretas, mais conhecida por CORA CORALINA, lutar contra o ineditismo durante anos. Tinha mais de setenta quando conseguiu que publicassem seu primeiro livro, POEMAS DOS BECOS DE GOIÁS E ESTÓRIAS MAIS, hoje consagrado. Agora, depois de sua morte, a Universidade de Goiás pensa em fundar a Casa de Cora Coralina, um museu que relembre a vida e a obra da poetisa que descobriu a beleza na simplicidade.

Na apresentação da 4ª. edição de seu primeiro livro ela diz: “Vai, meu pequeno livro. Que possa sobreviver à autora e ter a glória de ser lido por gerações que hão de vir, de gerações que vão nascer.”


É claro que será lida para sempre quem escreve com tanto realismo e sentimento a morte de um boi:


“Eu vi

o boi deitado, exausto.

Pisado. Mijado. Sujo. Escoiceado.

Quartos escolhidos. Juntas dobradas. Cabo inerte.

Olhar vidrado.

Vencido.

Encosta na paleta a cabeçorra enorme.

Começa a morrer.

Morre devagar... dias, noites...

Arrancos inúteis.

Mugido parco. Lúgubre...

Estrebuchar de agonia."

terça-feira, 22 de março de 2022

Vitrine poética



Vitrine poética 


Sousa Filho (*)

 

        No último sábado (19/03/22), tive a honra de participar de um evento denominado Vitrine poética, em homenagem ao dia da poesia. O acontecimento foi muito bem organizado pelo poeta e produtor cultural, o meu amigo Carlos Pontes, um guerreiro no que se refere às artes.

        É importante salientar que o evento Vitrine poética ocorreu no Parnaíba Shopping, teve como curador o poeta Carlos Pontes; como apoiadores: Mambembe, O Piaguí, Centro Musical Parnaíba e o Ateliê Poético; e contou com poetas e poetisas de várias faixas etárias, numa grande interação entre gerações. Além disso, o público compareceu em bom número.

          Nesse contexto, pude conhecer pessoalmente e reencontrar vários amigos e amigas do grupo de poesias denominado Ateliê poético, conduzido de forma altamente democrática pelo meu amigo e poeta Daltro Paiva.

          Devo enaltecer aqui a poeta Rosinha Maciel, que se deslocou de sua cidade (Chaval) para nos honrar com sua poesia. Parabéns, Rosinha. Você é uma guerreira. Fazendo justiça, Parnaíba vive uma efervescência na poesia desde o lançamento da Coletânea Poética Versania (2017) organizada pelo amigo Claucio Ciarlini. Ele é professor, escritor, editor do jornal O Piaguí, membro da Academia Parnaibana de Letras e da Academia Mundial de Letras da Humanidade, entre outras atividades culturais.

          É imprescindível que eu fale aqui dos jovens e excelentes poetas e poetisas da novíssima geração.  Eles são o presente e o futuro da nossa poesia, dentre os (as) quais cito: Pedro Horácio (poeta mirim), Ana Beatriz, Carolina Ciarlini, Ely Batista, Eren Soares, Layza Lunê, Moisés Carvalho, Roberto Vinício  e  Thamires Gonçalves. Todos possuem um grande talento.

          Outro fator preponderante foi a presença dos poetas já conhecidos tais como: Adriana Martins,  Alexandre César,  Carlos Pontes, Claucio Ciarlini,  Daltro Paiva, Edna Santos, Jailson Jr.,  José Marcelo (meu amigo e irmão de longa data), Jota Cunha, Leonardo Silva, Lu Campos, Morgana Sales (além da poesia,  Morgana nos honrou com sua belíssima voz), Rosinha Maciel e Sousa Filho.

          Acredito que cabe aqui um agradecimento especial ao amigo Carlos Pontes pela iniciativa de promover esse grande evento. Na ocasião, os editores da Editora Tremembé Alexandre César e Amanda Silva, doaram alguns exemplares da coletânea poética Piauí Poético. Além disso, a poeta Rosinha Maciel nos presenteou com exemplares do seu livro Entre a lua e o mar.

           Assim, posso afirmar que o Vitrine Poética foi uma grande homenagem ao dia da poesia. Fica aqui o meu respeito e gratidão a todos os poetas e poetisas que fizeram parte desse evento. Espero que outros produtores culturais sigam o exemplo do amigo Carlos Pontes e promovam novos encontros poéticos como esse. Viva a poesia.


(*) Luiz Gonzaga de Sousa Filho é professor, poeta e cronista.    

segunda-feira, 21 de março de 2022

domingo, 20 de março de 2022

SOU ASSIM



SOU ASSIM


Alcione Pessoa Lima


No meu horizonte, ainda brilha um sol.

E consigo ver, tão nítida, a majestosa linha do tempo...

Virando a página do dia.


Se há um verão, lágrimas secarão minha retina...

Como uma fonte que revela suas pedras e tropeços...

Os recomeços, na persistência de um amor vivido.


E sinto esse amor, um prazer, em repouso.

Com toda a clareza, senão dos sábios, mas de um aprendiz.

De ninguém desprezo a sapiência adquirida com os anos vividos...

Embora sempre atento à criança dando seus primeiros passos. 


Cada cor é como um caminho que me leva a entender as diferenças...

O silêncio é um livro aberto a me ensinar a arte da audição,

Arquivando os sentimentos mais puros, no coração.


Nunca tive um olhar piedoso, tampouco a vaidade da filantropia...

Desprezo a estrada larga, sinalizada, que me retira o desejo de descobridor...

Não me desvio dos espinhos pra colher a flor.

Se é melancólica a minha alegria, será sempre uma festa, a minha dor.


Não quero a alforria dos sofrimentos, tampouco, a eternidade dos felizes!   

quinta-feira, 17 de março de 2022

Chá das 5: O Folhetim de Clodoaldo Freitas

 


FÉ, AMOR, ESPERANÇA...



FÉ, AMOR, ESPERANÇA...


José Expedito Rêgo


Não tenho fé. Não consigo professar nenhuma das religiões por mim conhecidas. Ter fé é uma questão de sentimento, independe da razão. A lógica dos homens não pode provar ou negar a existência de Deus. Afirmar que todo relógio tem necessariamente um fabricante leva à indagação de quem criou o fabricante e que fabricou o criador, numa interminável cadeia. Só a dúvida é real. Claro que Deus pode existir, mas nós, pobres mortais, nada sabemos a respeito dele. Alguns podem senti-lo, tenho inveja desses.


Mesmo sem fé, procuro amar o próximo. Na profissão que exerço torna-se fácil. Durante quarenta anos de medicina, tive muita raiva, fiz talvez alguma maldade, mas a cota de bem que espalhei foi grande. Os pobres de Oeiras e Floriano podem atestá-lo facilmente. Um amigo disse-me certa vez que me admirava porque pratico o bem sem ter esperança de recompensa, além da morte; ao contrário dos religiosos que agem na expectativa de ganhar o céu. Isso me lembra Bertrand Russel, para o qual Sócrates, o grande filósofo grego, demonstrou imensa coragem ao ingerir a cicuta, a que foi condenado, conversando tranquilamente com seus discípulos, ensinando-lhes a doutrina da alma imortal. Entretanto, continua Russel, Sócrates provaria maior coragem, se tivesse bebido o cálice de veneno, na certeza de que a morte é o fim de tudo.


Acredito na bondade natural dos homens. Não é preciso o prêmio de um paraíso para que sejamos bons. Não almejo retribuição, neste mundo ou outro. Procuro ser bom porque gosto.


Tenho esperança. Apesar da maldade que vemos ainda espalhada pelo mundo, o homem encontrará um dia a paz do bem viver. Há momentos em que tudo parece perdido, mas sempre uma luz brilha à nossa frente. O ser humano tem melhorado bastante através dos tempos. Se voltarmos algumas páginas da história, veremos que houve maiores desgraças, o homem já foi perverso e ruim. Calamidades como o massacre de cristãos nos primeiros anos do Império Romano, não mais existirão. Não veremos outra vez os dias da Inquisição ou dos navios negreiros. O extermínio de judeus pelo nazismo é uma página definitivamente ultrapassada. Não mais teremos, no Brasil, ditaduras militares, ao que tudo indica.


Um moderno maniqueísmo, sem deuses nem demônios, fará que o bem finalmente vença o mal. O homem compreenderá um dia o amor é o caminho único para a felicidade. Pena que não viverei para presenciar esse final ditoso. Talvez ele só aconteça quando nossa espécie tiver para outro planeta. 

terça-feira, 15 de março de 2022

Leão sem juba

 

Ao contrário do que diz em seu texto, o poeta é um leão jubado, e ainda por cima alado


Leão sem juba


Sousa Filho (*)

 

Sou um Leão sem juba

Sou um leão sem dentes

Sou um leão sem nada

Sequer, sombra do que fui...

... um dia...

Sou um rei sem trono

Sou um rei sem súditos

Sou um rei sem coroa

O que serei amanhã ?!

Talvez eu seja sombra do que fui

Talvez,  nem isso...

Talvez  , nem uma coisa, nem outra.

Quem dera, eu tivesse  juba;

Quem dera, eu tivesse dentes;

Não quero súditos...

Quem dera, eu fosse...

... Tudo?

E tu? Quem és?


(*) Luiz Gonzaga de Sousa Filho é parnaibano, professor, poeta e cronista. SOUSA FILHO, como é mais conhecido, escreve em várias vertentes, uma vez que não se prende a nenhum estilo específico. Sua poesia é plural. Publicou poemas em várias coletâneas e periódicos, entre os quais o Almanaque da Parnaíba. 

segunda-feira, 14 de março de 2022

MESTRE PAULO NUNES, CULTURA E DIGNIDADE


 

MESTRE PAULO NUNES, CULTURA E DIGNIDADE

 

 Francisco Miguel de Moura*

 

          Escrever sobre o Prof. Paulo Nunes não é fácil. Por isto me proponho apenas a desenhar uma simples crônica em memória de sua pessoa e de sua formidável cultura. Cultura, saber e prática, com dignidade, exemplos que fizeram parte de sua vida, fosse pública ou na luta comum de cada dia.

 

          Por testemunho, quando cheguei em Teresina, com o desejo de aqui permanecer, no final de 1964, encontrei um Estado onde as manifestações culturais estavam praticamente em silêncio. Foi através do meu colega do Banco do Brasil, O. G. Rego de Carvalho, que soube do passado de Paulo Nunes, dos seus dotes de apaixonado pelas letras. O. G. Rego de Carvalho formara, com ele e outros literatos da época. o grupo que veio a chamar-se de “Meridiano”, por causa da revista do mesmo nome que editavam. O Prof. Paulo Nunes, creio que em virtude de sua função no Ministério da Educação, morava em Brasília. E outros da sua geração, como H. Dobal e Raimundo Santana, também haviam saído do Piauí para outros lares.  Então, nós, “os novos”, eu, Hardi Filho, Herculano Moraes e Tarciso Prado fizemos o nosso movimento cultural, criando o CLIP (Circulo Literário Piauiense). E logo depois viria, do interior, o Cineas Santos, que começava a aliciar os “mais novos”. Foi assim o começo da ressurreição cultural do Piauí.

 

          Mais, sem muita demora, chegava o Prof. Paulo Nunes, de volta ao Piauí. E imediatamente colocou a si a tarefar de avivar o Conselho Estadual de Cultura, órgão cultural que já existia, mas não funcionava. Reconhecendo o valor de Paulo Nunes, que, de Brasília, já vinha lutando pela criação da Universidade Federal do Piauí, o Governo do Estado o chamou para a Secretária de Cultura do Estado, que acabava de ser criada. Naquele momento, os “clipianos” e os “mais novos” já levantavam a voz (não obstante a terrível ditatura de 1964). Surpreendi-me, certo dia em que Paulo Nunes me convidou para fazer parte do Conselho Estadual de Cultura como membro-suplente. Com a sua atilada capacidade de descobrir as pessoas mais capazes e influentes na área da cultura, começava a chamá-los para o seu trabalho, os literatos e artistas. Lembro-me também da primeira vez que eu fora a Brasília. E ele, Paulo Nunes, foi ao hotel onde eu e D. Mécia nos hospedamos e convidou-nos e nos levou para um jantar em seu apartamento.

 

          Na verdade, eu aceitei os seus convites porque sentia o valor de Paulo Nunes. E o seu chamado passou a ser era uma ordem para mim.  Depois de algum tempo me tornei um membro efetivo do CEC-PI, onde ele me incumbia de muitas tarefas. No Conselho, tive os melhores dias de minha vida literária, sempre apoiado por ele. Assim também apoiava os outros membros. Paulo Nunes foi um homem de inclusão do que era necessário, do que valia a pena. Sua palavra era ouvida com satisfação, como de um mestre, o que foi em toda sua vida, onde quer que estivesse.

 

          Para mostrar que minha opinião sobre Paulo Nunes é ampla, acrescento o depoimento do jornalista Roberto Carvalho da Costa, de Brasília, após o anúncio do panegírico pela na Academia Piauiense de Letras:

 

          “Se eu estivesse em Teresina, com certeza iria à solenidade. Sempre nossas conversas foram momentos de muito proveito. Ele dizia: Roberto, você é bem informado e informativo. Sabia que nós, os experientes, somos de mais conhecimento. Nunca discorde desta verdade...  Ele era profundo conhecedor não só da literatura brasileira, mas também da portuguesa. Tinha predileção por Júlio Diniz, Eça de Queiroz, Gil Vicente, Antero de Quental e outros.  Paulo Nunes será sempre lembrado e querido”.

 

          Confirmamos que era ele um grande leitor das melhores obras da literatura brasileira e da de Portugal. Comentava com facilidade as obras de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado e tantos mais, que seria impossível citar, além dos clássicos universais. Apraz-nos citar Gustavo Flaubert, Marcel Proust, Dostoiévski, Tolstói e Gabriel García Marques, os nomes mais frequentes de suas conversas. Assim, em artigos simples, comentava, com maestria, os famosos acima mencionados, entre outros. Também, em alguns momentos, escrevia sobre os nossos piauienses, que não eram muitos, mas com precisão e clareza. Falava sobre Alceu de Amoroso Lima e muitos outros críticos e historiadores da educação e da literatura brasileira, como se estivesse conversando com ele. Sua memória era fabulosa e trazia a beleza da frase e a precisão do conteúdo. E jamais esquecia os momentos importantes das letras do Brasil e do exterior.

 

          Para resumir, Paulo Nunes nos deixa a imagem viva de uma grande figura humana e de escritor.  A comprovação do que digo, certamente será encontrada na leitura de seus livros editados pela Academia Piauiense de Letras, além do que ficou nos jornais e sobretudo na “Revista Presença”, órgão do Conselho Estadual de Cultura.

 

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 *Francisco Miguel de Moura, membro da Academia Piauiense de Letras, poeta e escritor. Matéria escrita em Teresina-PI, em  09/09/02/2022.

ABERTURA

 



ABERTURA

 

 Francisco Miguel de Moura*

 

Pra dizer o que dentro me deplora

abandono a linguagem lá de fora,

 

empurrando as cancelas do roçado,

com mãos e pés já sujos do passado.

 

Vejo o sol com seu brilho nos meus olhos

e as nuvens na poeira dos escolhos.

 

Ponho a enxada e a foice em abandono

para gozar a terra, já sem dono.

 

Assim fujo sem dor e sem conflito,

ao apagar de mágoas, num só grito.

 

E aí começa a vida de minha alma,

e eu escrevo e me vejo e bato palma.

 

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*Francisco Miguel de Moura, poeta brasileiro,

mora em Teresina -PI-BR

domingo, 13 de março de 2022

O CÍRCULO SE FECHA


 

O CÍRCULO SE FECHA


Elmar Carvalho

 

O infinitamente grande

tende ao tudo.

O infinitamente pequeno

tende ao nada.

Estes dois extremos se tocam.

Em Deus.

sábado, 12 de março de 2022

Irreverência



Irreverência


Carlos Rubem


Gerson Campos era um “homem-menino, sentimentaloide incorrigível”. Poeta. Brincalhão. Irresponsável, no bom sentido. Adorava a sua terra natal, Oeiras. Cursou o ginásio em Floriano. Na época em que estudava na  “Princesa do Sul”, o seu pai, Joel, que gostava de andar sempre elegante, encomendou um paletó a um alfaiate daquela cidade seu conhecido.

 

Quando recebeu a nova roupa, Joel Campos mandou o dinheiro por Gerson para pagar o seu feitio. Não deu outra: Gerson torrou a grana toda em bebedeira. Vida de boêmio sabe-se como é!


Decorrido mais de um ano, o artista, através de um comum amigo, mandou cobrar ao vovô Joel a feitura da roupa. O velho participou o fato a sua esposa, Bembém. Esta, escreveu uma carta ao filho, que já fazia o científico no Recife, passando-lhe a maior descompostura. Só faltou dizer que o mundo ia se acabar por causa da traquinagem praticada.


Naquele ano estava em voga uma canção de Dalva de Oliveira. Gerson aproveitou o título da música, passando a seu pai um lacônico telegrama-confissão: “Errei sim, manchei o teu nome!”

quinta-feira, 10 de março de 2022

Chá das 5 entrevista Prof. Nílson Ferreira

 


A partir das 17 horas no link abaixo:

https://youtu.be/5qn4OeW9VWk   

terça-feira, 8 de março de 2022

À SENSIBILIDADE DAS MULHERES



À SENSIBILIDADE DAS MULHERES


Alcione Pessoa Lima


A cada fim de ano há celebrações no ambiente de trabalho para comemorar/confraternizar grupos de colegas, e/ou comer e beber um pouco, pois ninguém é de ferro. E uma coisa me chama à atenção: as mulheres valorizam cada detalhe na arrumação da mesa, dos talheres, no “menu” a ser servido e, muitas vezes, em algumas dinâmicas para quebrar o gelo e tornar realmente festivo o momento. 

Observo, assim, que a delicadeza feminina é algo magistral, pois, para nós homens, com raras exceções, quando estamos à frente de tais eventos o fazemos de qualquer jeito. O que muitas vezes desejamos é que sempre sejam comemorados com muita cerveja e churrasco, como se estivéssemos assistindo a uma boa partida de futebol.

Isso me remete a Machado de Assis, em um trecho de seu “Memorial de Aires”, em que um personagem dizia ao outro ter certeza de que foi uma mulher, e não o desembargador que também estava na cena, quem arrumou as flores no cemitério. Afinal, “a disposição, o arranjo, a combinação, tudo era mulher”. Além do mais, ensina Machado, “há dessas cousas que mão de homem não faz: mão de homem é pesada ou trapalhona, e mais se é de desembargador”. E, para fulminar a questão, explica que se fosse um homem a arrumar, “chegava ali, pegava as flores e espalhava-as à toa.” 

Tal característica feminina impõe distância, na comparação com os homens, posto que lhe é peculiar, e daí revelar-se como um ser único na terra. 

E por falar nos homens, calha um momento em que uma colega de trabalho, ao tomar cafezinho, sujou seu vestido branco e, sentindo-se desconfortável com a situação, pois a mancha era ostensiva, falou ao chefe que precisaria ir em casa para se trocar. E ele, totalmente desatento à situação, achou que aquela mancha se tratava de uma mera estampa, razão por que não entendeu as razões do pedido. 

Hoje mesmo, ao participar da despedida de outra colega/amiga que deixava uma função de confiança, mesmo sendo um momento simples, sem pompas, percebi que estava recheado de emoção, principalmente porque foi organizado por suas amigas mulheres. Apesar do discurso ter sido elaborado por um homem, uma dessas flores o leu e deu à referida peça um aroma que somente delas poderia exalar. Sem falar na própria homenageada, que mesmo sempre se fazendo de forte não se conteve e deixou-nos ver um momento raro para todos: derramar algumas lágrimas. 

Assim, diante de tudo isso, talvez esteja a grande diferença entre um mero homem e um filósofo, pois este está sempre observando os seres e a própria vida, que é bela exatamente por ser vivida. Bilac tinha razão: "Deus criou as mulheres e as rosas / Para os beijos do sol e os beijos dos poetas!"   

segunda-feira, 7 de março de 2022

Leituras Compartilhadas: Ataliba, o vaqueiro

 


Mestre-de-Campo Diogo Álvares Ferreira e a capela de Frecheiras da Lama

Capela de N. Sra. do Rosário, na fazenda Frecheiras da Lama


Mestre-de-Campo Diogo Álvares Ferreira e a capela de Frecheiras da Lama

 

Reginaldo Miranda[1]

 

A família Veras ou Ferreira de Veras, de Parnaíba, deita suas origens em princípio do século XVIII, quando os irmãos Domingos Ferreira de Veras e Thomas Ferreira de Veras, chegaram ao termo de Igarassu, em Pernambuco, provenientes da cidade do Porto, no norte de Portugal. Eram filhos de Matheus Ferreira de Veras[2]. Dali, por volta de 1710, passaram para a ribeira do Coreaú, na capitania do Ceará Grande, porque Domingos foi nomeado para o posto de capitão da vizinha vila da Parnaíba, no Piauí, oportunidade em que combateu as nações indígenas da região. Em seguida, foi pelo governador de Pernambuco, D. Lourenço de Almeida (1715 – 1718), nomeado para o “posto de coronel de infantaria da ordenança do distrito da serra de Ibiapaba até o distrito da vila da Parnaíba, que criou de novo em virtude de uma ordem régia de 20 de janeiro de 1699, por ser conveniente ao Real Serviço que nas freguesias do sertão daquela capitania haja capitães mores e mais cabos necessários que deem auxílio de braço militar para boa administração da justiça”. Essa nomeação foi confirmada por El Rei em 13 de março de 1720, em razão do “dito Domingos Ferreira de Veras ser um dos homens nobres e afazendados daqueles sertões e ter servido bem no posto de capitão da vila da Parnaíba, do qual fez séquito e algumas vezes guerra ao gentio bárbaro em defensa não tão somente das suas próprias fazendas mas de outras muitas que há na sua vizinhança nas quais o dito gentio causou muitas extorsões e hostilidades naqueles moradores por ficarem mui distantes da vila do Ceará. Havendo-se nessas ocasiões com reconhecido zelo do Real Serviço”[3]. 

 

Mais tarde, seguindo suas pegadas vieram do reino também os sobrinhos Domingos e Diogo Álvares Ferreira, naturais da cidade de Braga, filhos de Diogo Álvares e Senhorinha Gonçalves. Esses ambiciosos lusitanos não perderam tempo porque vieram para trabalhar e fazer fortuna, como muitos outros de seus compatriotas. Desde os primeiros dias de sua chegada trataram de plantar lavouras e chantar currais. O coronel Domingos Ferreira de Veras, que liderava a família, estabeleceu sua morada e currais na fazenda Tiaia, depois expandindo seus currais pelas matas de Ubatuba e Camurupim, onde, em 1719, conseguiu seis léguas quadradas de sesmaria. Nesse mesmo ano ainda conseguiria outra com o mesmo nome de Ubatuba; por fim, com a multiplicação dos currais no ano de 1751, conseguiu o reconhecimento de mais sesmarias nos vales dos riachos Ubatuba, Boqueirão, Camurupim, Timonha e Barroquinha. No ano seguinte, consegue a confirmação da data de sesmaria no sítio Salinas, ribeira do Caruaju. “Juntamente com seu sobrinho, Diogo Álvares Ferreira, foram irmãos fundadores da Irmandade do Santíssimo Sacramento, ereta na matriz da Caiçara (hoje Sobral), no dia 15 de setembro de 1752, sob a orientação do carmelita Frei Manuel de Jesus Maria”[4].

 

Em 1723, foi a vez do capitão Thomas Ferreira de Veras, tio e, posteriormente, sogro do mestre-de-campo Diogo Álvares Ferreira, conseguir uma sesmaria com três léguas quadradas no riacho Camurupim.  Em 1732, conseguiu outra sesmaria de igual área na Barroquinha. Por fim, em 1751, teve deferido mais dois pleitos de sesmarias nos lugares Riachão e Barra do Igarassu. Thomas Ferreira de Veras casou-se em Igarassu, Pernambuco, com Joana da Costa Furtado, depois passando a residir na fazenda Curral Grande, por ele fundada na região de Ubatuba, hoje no distrito de Ibiguaçu, termo do município de Granja. Conforme se pode observar muitas das sesmarias concedidas a ele e ao irmão, ficavam localizadas no Piauí, território da freguesia de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca, hoje nos municípios de Cocal, Luiz Correia e Parnaíba. O casal Thomas Ferreira de Veras e Joana da Costa Furtado, gerou os seguintes filhos, todos naturais da freguesia de S. José da vila de Granja: 1. Micaela da Silva Ferreira, casou-se com o português Mathias Pereira de Carvalho, natural da cidade do Porto; 2. Maria dos Reis de Veras, falecida com testamento em 2 de junho de 1806, vítima de hidropisia, foi casada com o primo português Domingos Álvares Ferreira, natural da cidade de Braga (irmão do mestre-de-campo Diogo Álvares Ferreira), de cujo consórcio geraram 9 filhos, sendo 3 machos e 6 fêmeas[5]; e, 3. Francisca Thomasia Ferreira de Veras.

 

Em 3 de outubro de 1751, na igreja matriz da Caiçara, hoje Sobral, no Ceará, o português Diogo Álvares Ferreira casou-se com a prima Francisca Thomasia Ferreira de Veras, filha do seu tio capitão Thomas Ferreira de Veras, natural de Braga e de sua esposa Joana da Costa Furtado, natural do Igarassu, em Pernambuco[6].

 

É certo que ao menos no primeiro ano de casamento os nubentes permaneceram morando em casa dos pais da noiva, situada na fazenda Curral Grande, termo da vila de Granja, onde participavam da vida social, econômica e religiosa, a exemplo da referida fundação de uma irmandade, no ano seguinte. Logo mais, com a expansão do rebanho e tendo por ponta de lança aquela fazenda, desceram a serra e vieram situar seu rebanho na fazenda Pacoty, que a denominaram Nossa Senhora do Rosário ou Nossa Senhora do Rosário do Pacoty, termo da freguesia de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca, cujas terras compraram a Dionizio Dias, que dela tinha data confirmada desde 13 de outubro de 1746. Essa fazenda foi concedida a Dionizio Dias, com “três léguas de terra de comprido, e uma de largo na paragem a que chamam os Atoleiros incluindo-se a fazenda chamada Pacoty”[7], pelo capitão general do Maranhão João de Abreu Castelo Branco, em 22 de setembro de 1744. Popularmente, esses atoleiros ou terrenos embrejados ficaram conhecidos por Frecheiras da Lama, em razão do brejo ali existente. Depois de adquirirem as terras, mudaram seu nome em homenagem à santa de sua devoção. E construíram casa de morada com oratório ao lado de um fértil regato, cujas nascentes brotam ao fundo, na distância de três braças, sendo a água límpida facilmente apanhada para o consumo doméstico e também serviam para bebedouro dos animais. Também seu irmão e concunhado Domingos Álvares Ferreira, comprou a Antônio Rabelo Cardoso, outra propriedade contígua, de igual dimensão, a que denominou com igual nome, onde também situou rebanho.

 

Seja pela fertilidade do solo e pela laboriosidade de seus possuidores, o gado bovino e cavalar ali situado cresceu vertiginosamente, sendo os bois vendidos nas feiras do litoral e, logo mais, para as indústrias de charques da Parnaíba. Os cavalos eram vendidos primordialmente para fazendeiros das regiões de Campo Maior, Marvão, Piracuruca e Parnaíba, no Piauí, assim como nos altiplanos da Ibiapaba, termos de Granja, Viçosa e Sobral, no Ceará. A bezerrada e as potras eram remanejadas para a fundação de novas fazendas. Por essa razão, comprou a Manoel da Costa Araújo[8] a fazenda denominada Mocambo, com duas léguas de comprimento e outro tanto de largura. De parceria com Domingos Pires Ferreira[9], comerciante português estabelecido no Recife, comprou mais duas fazendas, ambas situadas no vale do Longá, a saber: Santo Antônio[10], com três léguas de comprimento e de largura três quartos em partes, e em outras menos; e Almas[11], com duas léguas de comprimento e de largura em umas partes um quarto, e em outras menos. Por fim, em 6 de setembro de 1763, no governo de João Pereira Caldas adquiriu por sesmaria uma fazenda medindo três léguas de comprimento e uma de largura, no lugar Camoropi de Cima, contígua à sua fazenda N. Sra. do Rosário; e Santo Higino, com igual área, adquirida por sesmaria em 5 de fevereiro de 1771[12]. Conforme se vê, Diogo Álvares Ferreira expandiu seus currais constituindo-se em um dos mais abastados fazendeiros do norte do Piauí, onde passou a exercer liderança política, social e econômica.

 

Com a criação da vila de São João da Parnaíba, instalada em 26 de agosto de 1762, nesta data também tomou posse no cargo inaugural de vereador do senado da câmara, o fazendeiro Diogo Álvares Ferreira, que fora eleito pelos munícipes. Foram também integrantes daquele colegiado, com funções legislativas, executivas e judiciárias em alguns aspectos, José da Costa Oliveira, Domingos Alves Barros, Manuel Sousa Guimarães e João Lopes Castelo Branco. Desde então e por largos anos, ficou aquele distrito do extremo norte do Piauí, tendo por sede administrativa a litorânea vila de São João da Parnaíba, permanecendo a sede paroquial na povoação da Piracuruca, distando pouco mais de vinte léguas uma da outra. Para bem desincumbir-se suas funções, Diogo Álvares Ferreira construiu outra casa residencial na nova vila, desde então alternando seu domicílio entre esta e a fazenda.

 

No mesmo dia em que foi instalado o senado da câmara, Diogo Álvares foi indicado por seus pares para o cargo de capitão-mor das ordenanças da nova vila e seu termo, sendo nomeado no dia seguinte pelo governador João Pereira Caldas. Passando a exercitar essa patente de forma imediata teve a confirmação por El Rei em 12 de julho de 1763[13]. Mais tarde, alcançou a patente de mestre-de-campo do terço de cavalaria auxiliar da capitania, que a exercitou até o fim de sua existência.

 

Conforme se disse, sendo fervoroso devoto mariano, destacou um quarto de sua casa para oratório sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário. Era comum entre as famílias católicas conservarem um oratório em casa, onde mantinham as imagens dos santos de sua devoção e faziam suas orações. Nos dicionários de língua portuguesa, oratório não significa capela e sim “compartimento de uma casa consagrado à oração”; “armário, nicho ou pequeno altar onde são dispostas, para veneração, imagens de santos; adoratório”. Por essa razão, nos livros de registros eclesiásticos da matriz de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca, existem alguns registros de atos católicos praticados em desobrigas “no oratório do sítio das Frecheiras”, nunca usando o termo capela. “Aos trinta dias do mês de novembro de mil setecentos e setenta e cinco annos no Oratório do Sitio das Frecheiras” o padre coadjutor Luiz José de Carvalho, celebrou o casamento de Jose da Silva de Meneses com Micaela Maria Machado, sobrinha dos senhores da fazenda[14]. Dez anos depois, “Aos dezassete dias do mês de novembro de mil setecentos e oitenta e cinco annos em o oratório do Sitio das Frexeiras”, foi a vez de casar-se José Alves Ferreira, filho dos proprietários com a prima Domingas Maria de Veras”[15].

 

No entanto, desde muitos anos os senhores da fazenda alimentavam o sonho de construírem uma capela sob a invocação de N. Sra. do Rosário, “para aí assistir os ofícios divinos e a celebração do santo sacrifício da missa e os mais fiéis de Deus que se acham espalhados na extensão da dita freguesia”. Foi esta explicação que deu o mestre-de-campo Diogo Álvares Ferreira, para requerer ao Bispo em princípio do ano de 1781, a construção da capela “em uma de suas fazendas denominada N. Sra. do Rosário do Pacoty da freguesia de N. Sra. do Carmo da Vila de S. João da Parnaíba”, “pelo cordial afeto com que venera o soberano título do Rosário”. A petição foi despachada em 30 de abril de 1781 e autuada no dia seguinte, na sede do Bispado, em São Luís do Maranhão. Para manutenção da capela mandou ferrar “vinte vacas situadas no corpo de nossa fazenda chamada Nossa Senhora do Rosário do Pacotis”, que poderia render pouco mais de seis mil réis anualmente. Essa doação foi feita em 8 de junho, por escritura pública assinada pelo casal doador, para manutenção de “uma capela de invocação da mesma senhora, que pretendemos à nossa custa erigir na mesma fazenda, as quais vinte vacas se acham já marcadas”. Por ordem do governador do Bispado, em 10 de outubro de 1781, compareceram à fazenda de Nossa Senhora do Rosário do Pacoty, o vigário da vara João Raimundo de Moraes Rego[16] e o escrivão por comissão Manoel Pires Ferreira, para fazerem a vistoria, em cujo termo anotaram: “Foi mostrado ao mesmo Reverendo vigário pelo Mestre de Campo Diogo Álvares Ferreira o lugar em que este pretende erigir uma capela, dedicada à Virgem Nossa Senhora com o título do Rosário, o qual lugar sendo pelo sobredito Reverendo Ministro, visto, e examinado o achou ser decente, honesto, livre de umidades, e finalmente capaz de nele se erigir o dito templo, e é na entrada do dito sítio, onde assiste o referido Mestre de Campo, distante da casa da sua moradia cincoenta braças pouco mais ou menos”. “E deve ser a capela de pedra e cal como determina a Constituição do Bispado ou como permitir o País”. No dia seguinte, dois avaliadores, José Gonçalves da Cruz e José Pereira Montaldo, pela experiência que tinham como criadores de gado, por indicação do Reverendo e sob juramento, avaliaram que, de fato, as referidas vinte vacas poderiam render anualmente mais de seis mil réis para manutenção da capela. Por fim, no mesmo dia juntaram aos “autos o traslado da escritura do patrimônio, que fizeram o Mestre de Campo Diogo Álvares Ferreira e sua mulher Francisca Thomasia de Veras à capela, que o dito pretende erigir”. Foi dada a licença para ereção da capela em 3 de novembro de 1781 e publicada no dia seguinte[17].

 

Portanto, foi o casal mestre-de-campo Diogo Álvares Ferreira e Francisca Thomasia Ferreira de Veras, quem construiu a capela sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário, na fazenda de mesmo nome, também conhecida por Frecheiras da Lama. Essa construção teve seu início e, provavelmente, conclusão no verão de 1782, vez que a licença somente saiu no inverno de 1781. Esse é um fato, cujos documentos ora revelados dirimem dúvidas e refutam contestações. No entanto, porque esses documentos somente foram revelados recentemente, tem causado certa celeuma a data de construção daquele tempo religioso. Essa confusão aumentou porque existem quatro algarismos em seu frontispício, que devem significar alguma coisa, menos a data de construção do tempo. Para alguns historiadores e curiosos o templo datava dos anos de 1616 ou 1619, conforme faziam a leitura dos algarismos. Porém, essa tese nunca se sustentou à luz da documentação existente e dos fatos históricos. Era preciso ali ser prolongamento das aldeias de Ibiapaba, o que não se verifica, por inexistir registro na crônica dos jesuítas. Mais recentemente, o historiador Vicente Miranda fez uma análise criteriosa e exaustiva sobre o tema, precisando a data de fundação da capela em 1766. É um bom trabalho de pesquisa apresentado para conclusão do curso de História do Brasil, na UFPI, com suporte documental. Suas conclusões são lógicas, à luz da documentação até então revelada. Contudo, a descoberta desses autos de ereção da capela[18], põem por terra todas as dúvidas existentes e firmam em definitivo a data e nome de seus fundadores.

 

Outro aspecto que tem de ser analisado, é que os dois registros de casamento mencionados, que foram realizados “no oratório do sítio das Frecheiras”, dizem que este pertencia ao finado mestre-de-campo Diogo Álvares Ferreira. Como não vi o original penso que pode haver dúvida na transcrição do texto. No casamento do filho, realizado em 1785, quando indica a filiação não diz que os pais eram falecidos. E, de fato, estavam vivos em 1781, quando requereram licença para construção da bela capela em sua fazenda Frecheiras da Lama.

 

Em face das demarcações e anulações de datas do período anterior, novamente em 8 de janeiro de 1820, dona Francisca Tomasia de Veras, por carta de data de sesmaria, vai receber a confirmação da fazenda Pacuty, na margem do rio Pirangi, entre as fazendas Capivaras do capitão José Álvares Ferreira, Espírito Santo do capitão Miguel Teixeira Monteiro, Santa Ana e Gado Bravo[19].

 

O casal deixou ao menos quatro filhos que espalharam a descendência pelo norte do Piauí, a saber: 1. João Alves Ferreira de Veras, capitão da Barra da vila de São João da Parnaíba; 2. José Alves Ferreira de Veras, alferes do regimento de cavalaria auxiliar, senhor da fazenda Capivaras, foi casado em 17 de novembro de 1785, nas Frecheiras, com a prima Domingas Maria de Veras; 3. Antônio Alves Ferreira de Veras; e 4. Domingos Alves Ferreira de Veras, todos abastados fazendeiros, militares e políticos em Parnaíba[20].

 

Portanto, o mestre-de-campo Diogo Álvares Ferreira deixa seu nome gravado na história do Piauí como bem sucedido fundador de fazendas e criador de gado. Também, como militar e político que soube cumprir suas obrigações e prestar relevantes serviços à pátria. Mas, sobretudo ele e a dedicada e crente esposa Francisca Tomasia Ferreira de Veras deixam seu nome gravado em nossa história como fundadores da bela e polêmica capela de Nossa Senhora do Rosário de Frecheiras da Lama. É hora, pois, de fazer-lhes justiça reconhecendo-lhes o mérito como benfeitores de nossa fé católica e construtores de um dos monumentos mais significativos de nossa história. E se não bastasse ainda deixaram uma descendência que tem pontuado com destaque em nossa história. A eles o nosso reconhecimento e respeito.

  

[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. E-mail; reginaldomirandaadv@gmail.com

 

[2] Os Ferreira de Veras são naturais da cidade do Porto, muitos deles bacharéis e sacerdotes. Em 5.5.1714, bacharelou-se na Universidade de Coimbra o Dr. Paschoal Ferreira de Veras, natural da cidade do Porto, desembargador da Relação do Porto, filho de Domingos Ferreira de Veras. O padre José Ferreira de Veras, seu irmão, formou-se em 30.5.1724. Em 10.6.1748, bacharelou-se em Cânones o Dr. Manuel Ferreira de Veras, Familiar do Santo Ofício, advogado da Relação do Porto, natural de Viseu, filho de Joaquim Ferreira de Veras.  O padre Joaquim Ferreira de Veras, natural de Lisboa, filho de José Dias Ferreira de Veras, formou-se em 15.6.1750.

 

[3] PT/TT/RGM/C/0011. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 11.

  

[4] ARAÚJO, Pe. Francisco Sadoc de. Cronologia Cearense. Volume I – 1604 – 1800. Fortaleza: Gráfica Editorial Cearense Ltda, 1974, p. 173. In: MIRANDA, Vicente. História e Fé na Conquista do Sertão do Norte: a capela das Frecheiras. Teresina: UFPI, 2006.

   

[5] De conformidade com o testamento de D. Maria dos Reis de Veras, lavrado em 19.6.1806, foram esses os seus filhos: 1. Joaquim Alves de Veras, falecido antes dela; 2. José Alves de Veras, falecido em 1795, com menos de 25 anos de idade, foi vaqueiro na fazenda Curral Novo entre os anos de 1779-1786; 3. João Ferreira, falecido antes dela, também foi vaqueiro na mesma fazenda entre os anos de 1788-1792; 4. Francisca Maria de Veras, casada em primeiras núpcias com André da Rocha, prematuramente falecido; e em segundas núpcias com João Antônio; 5. Victória Maria de Veras, casada em primeiras núpcias com Manuel, ambos falecidos; e em segundas núpcias com José da Silva Menezes (primeiras núpcias deste, 2ª vez, nas Frecheiras, casou-se com Micaela Maria Machado, filha de Domingos Machado Portella e Catarina Ribeiro de Negrão); 6. Ana de São Boa Ventura de Veras, casada com Domingos Alves Barroso, falecido; pais de Domingas Maria de Veras, casada em 17.11.1785, na capela das Frecheiras, com o primo José Alves Ferreira, filho do mestre-de-campo Diogo Alves Ferreira e de sua esposa Francisca Thomasia de Veras; 7. Maria de Veras, casada com José Machado Portella; pais de Libório; 8. Thomasia Maria de Veras, casada com Lourenço Francisco da Rocha; pais de João, Maria, Domingos, Rogério e Ana; e 9. Feliciana Maria de Veras, casada com Domingos Anselmo de Sousa Castro, falecido; pais de Bento, Ana, Inocência e Luísa (Arquivo Público do Ceará. Livro de Notas do Tabelião da Villa de Fortaleza – Registro de Testamentos – 1797 a 1868, fl. 35 a 43v. In: MIRANDA, Vicente. História e Fé na Conquista do Sertão do Norte: a capela das Frecheiras. Teresina: UFPI, 2006.

  

[6] ARAÚJO, Francisco Sadoc. Raízes Portuguesas do Vale do Acaraú. Sobral: Gráfica Editorial Cearense Ltda., 1991, p.188. In: MIRANDA, Vicente. História e Fé na Conquista do Sertão do Norte: a capela das Frecheiras. Teresina: UFPI, 2006.

  

[7] AHU. ACL. CU 009. Cx. 29. Doc. 2984.

 

[8] Esse vendedor havia adquirido essa fazenda por compra a Alexandre Delgado, a quem tinha pertencido por morte de seu pai Manoel Delgado, que dela tivera data não confirmada.

 

[9] É patriarca da família Pires Ferreira.

 

[10] Foi comprada a Francisco do Rego, que a tinha comprado a João Ribeiro Falcão, e este a Manoel Peres Ribeiro, que a povoou.

 

[11] Foi comprada a Francisco do Rego, que a tinha comprado a Manoel Peres Ribeiro, e este a Dâmaso Pinheiro, que a povoou.

   

[12] AHU. ACL. CU 016. Cx 13. Doc. 778.

 

[13] PT/TT/RGM/D/0017/59764. Registo Geral de Mercês de D. José I, liv. 17, f. 478

 

 

 

[14] FREGUESIA DE N S DO CARMO. Piracuruca: Livro de Casamentos, 1775, fl. 63. In: MIRANDA, Vicente. História e Fé na Conquista do Sertão do Norte: a capela das Frecheiras. Teresina: UFPI, 2006.

 

[15] [15] FREGUESIA DE N S DO CARMO. Piracuruca: Livro de Casamentos, 1785, fl. 61v. In: MIRANDA, Vicente. História e Fé na Conquista do Sertão do Norte: a capela das Frecheiras. Teresina: UFPI, 2006.

 

[16] A família Moraes Rego iniciou no Maranhão, depois passando para o termo da vila da Mocha, onde entrelaçou-se com outras distintas famílias da capitania de S. José do Piauí.

 

[17] Arquivo Público do Estado do Maranhão. Autos de criação da capela de N. Sra. do Rosário na Parnaíba, pelo Mestre de Campo Diogo Álvares Ferreira. Câmara Eclesiástica. São Luiz do Maranhão, 1781.

 

[18] Esses autos manuscritos que se encontram digitalizados no Arquivo Público do Maranhão, me foram enviados, na íntegra, pelo historiador João Bosco Gaspar, residente em Tianguá, no Ceará.

 

[19] MIRANDA, Vicente. História e Fé na Conquista do Sertão do Norte: a capela das Frecheiras. Teresina: UFPI, 2006.

 

[20] PT/TT/RGM/E/001/0028/109244. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Maria I, liv. 28, f. 195v. PT/TT/RGM/E/001/0028/127149. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Maria I, liv. 28, f. 195v.