Tirei este
domingo, pela manhã, para mais uma vez folhear o livro “Dalí: the paintings”,
de Robert Descharnes e Gilles Néret, editado em 2018 por Taschen (Bibliotheca
Universalis). Quando cheguei à página 608, me deparei com uma pintura que me
chamou deveras a atenção, tanto por suas próprias qualidades, como também por
motivos particulares meus, sobre a qual mais adiante falarei.
Desde o
início de minha juventude, mais precisamente desde a segunda metade da década
de setenta, tenho visto e revisto várias reproduções de suas telas mais
famosas, e outras nem tanto, sempre com a mesma admiração e encantamento, tanto
através de livros/álbuns, como através de cd’s e, depois, da internet. Desde
então, fiz vários poemas de feição surrealista, muitos inspirados em obras de
sua autoria.
Na segunda
metade da década de oitenta, já morando em Teresina desde 1982, fui vizinho do
pintor Francisco Siqueira Santos (PBA, 14/07/1951 - BSB, 31/10/2017), ou apenas Siqueira, que adotara o nome artístico de Sica. Natural de Parnaíba, ele
era agente da Polícia Federal, e também admirava o surrealismo, sobretudo o de Salvador
Dalí, tendo ele próprio produzido algumas
pinturas surrealistas de alta qualidade. Um ano ou menos depois foi transferido
para Brasília, e agora eu soube, pelo seu colega Odon Baltazar Nobre, que ele
faleceu há cerca de três anos.
Nessa época eu já vinha acumulando
algumas ideias para escrever um poema épico moderno baseado na vida e na obra
do grande surrealista espanhol, titulado Dalilíada. Falei desse projeto ao
Sica, e lhe preveni que no dia que me viesse o estalo ou insight eu o
procuraria para que me emprestasse os grandes álbuns que ele tinha, em que
estavam estampadas as pinturas do mestre do surrealismo, que além de tudo era
um grande histrião e falastrão, marqueteiro de suas obras.
E assim, em certa tarde, me surgiu
uma forte compulsão para escrever esse poema anunciado e esperado. Corri à procura
do Sica, que felizmente se encontrava em sua residência, e me forneceu os livros,
conforme prometera.
Siqueira, ou apenas Sica |
De imediato, na mesa de minha sala,
como se estivesse sob atuação mediúnica ou automática, sem procurar lógica ou
sentido no que escrevia, folheando freneticamente os livros que trouxera, por
vezes misturando as ideias de duas ou mais telas, algumas vezes me utilizando
também dos títulos, escrevi quase de um só fôlego ou jato esse longo poema;
longo, claro, para os padrões de hoje.
Mas, como disse, já escrevera antes
alguns poemas surrealistas, vários inspirados em pinturas de Dalí, inclusive um
baseado numa tela que, de certa forma, guarda alguma semelhança com a que me
referi no início deste registro. Eis o poema, que por sinal faz parte do
aludido épico Dalilíada:
XXXVII
O discóbolo do cosmo
em vigorosa e rigorosa torção
arremessa o disco do Sol
para uma outra desconhecida dimensão.
Retomando o perdido fio inicial da
meada, quando cheguei à página 608 vi a pintura que me causou surpresa e
admiração. Tinha o título grafado em inglês, que em minha rústica tradução converti
para “jogadores de basquetebol metamorfoseados em anjos”. Integrando um
conjunto antigo de três poemas, creio que da década de 1970 ou 80, sob o título
geral de “No reino do surreal”, encontrei o seguinte:
II – BASQUETEBOL
tomaram-me
tudo
inclusive
o
óbolo inútil
o
bolo indigesto
a
bola murcha
a
bala de festim
a
balada calada
alada
mas
sem voo
mas ainda me sobrou
cabeça
para arrancá-la
e
enfiá-la
na
cesta
Contudo, o atleta mais visível do
quadro de jogadores de basquete metamorfoseados em criaturas angélicas mais me
pareceu um goleiro, em espetacular e espetaculosa “voada”, a espalmar o planeta
Terra para longe de sua meta. Um goleiro surreal que parecia ter a ousadia
maluca, performática e exótica de Higuita e a eficiência e elasticidade felina
e elegante de Yashin.
E a bola, na verdade o nosso
terráqueo planeta, tinha umas espécies de pinos, que me fizeram lembrar a
imagem ampliada do famigerado coronavírus. Um bisonho observador poderia achar
que fora uma premonição. Eu prefiro nada achar, exceto beleza na pintura.
Não querendo ser um cabotino e
tampouco um narcisista, e muito menos ainda um ególatra, mas tendo sido um
goleiro em minha adolescência, prefiro encerrar esta crônica algo
memorialística, com pitadas de gênese literária, com a seguinte frase de José
Francisco Marques, extraída de seu texto “Quem te ensinou a voar?”, que me vale
como um certificado e consagração:
“Elmar era de fato um goleiro
diferenciado. Elegante em suas defesas e de uma agilidade impressionante, pois
muitas vezes arrancava aplausos (fato raríssimo entre expectadores desse nível
futebolístico), da plateia que o assistia.”