quarta-feira, 29 de maio de 2024

José de Freitas: a Cidade da Memória e da Saudade

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José de Freitas: a Cidade da Memória e da Saudade

(Documentário cinematográfico de Elmar Carvalho)


Por Carlos Evandro M. Eulálio*

                                                                               

Saudade! És a ressonância

De uma cantiga sentida,

Que, embalando a nossa infância,

Nos segue por toda a vida.

          Da Costa e Silva                                                                                 

 

No documentário cinematográfico “José de Freitas: a cidade da memória e da saudade”,  a história de José de Freitas é contada e cantada pelo romancista, cronista e  poeta Elmar Carvalho, num recorte cronológico memorialístico, entre o ano  de 1970, quando ele  viveu nesta aprazível cidade, aos 14 anos, num curto período de sua infância,  e os dias atuais em que a revê aos 67 anos de idade. Elmar é o narrador personagem do documentário.

O teórico desse gênero cinematográfico, Bill Nichols, um dos intelectuais mais influentes da academia norte-americana contemporânea na arte do cinema, autor da conhecida obra Introdução ao Documentário, diz que “o documentário não se trata de uma reprodução da realidade, como na maioria das vezes é interpretado pelo público, mas de uma representação do mundo.  Uma visão de mundo com a qual talvez nunca tenhamos deparado antes, mesmo que os aspectos do mundo nela representados nos sejam familiares”. Conforme ainda Bill Nichols, essa representação de mundo acontece sempre do ponto de vista de quem produz o documentário. No documentário em análise, o eu lírico é a “voz” do texto cujas evocações ou descrições nos permitem ver José de Freitas de uma nova maneira, com um outro olhar. 

Há inúmeros modos de compor documentários, sendo o mais comum aquele de natureza expositiva, mas este, em especial, é acrescido da atmosfera poética, como a percebemos na projeção dos fragmentos e das imagens que foram criteriosamente selecionadas pelo poeta e que povoam a mente do eu lírico  nos vários trechos do documentário em que passado e presente coexistem com muita proximidade, como nesta passagem remissiva ao curto período em que o poeta morou em José de Freitas:

 

“...uma das quadras mais felizes de minha vida - assim posso dizer impregnado de saudade que, não podendo voltar a esse tempo e a essa cidade encantada, no início de minha adolescência, a trago tatuada em minha alma e em meu coração.”

 

Essa nostálgica revivescência é presente na memória daqueles que, como Elmar, também guardam lembranças da cidade em que viveram ou por onde passaram algum dia, como nestes versos de Manuel Bandeira que recuperam pela memória num misto de saudade o beco de sua infância lá do Recife:

 

“Que importa a paisagem a Glória, a baía, a linha do horizonte? O que eu vejo é o beco”.

 

Ou ainda H. Dobal no poema Campo Maior:

 

                                    Ai campos do verde plano

                            todo alagado de carnaúbas.

                            Ai planos dos tabuleiros

                            Tão transformados tão de repente

                            num vasto verde num plano

                            campo de flores e de babugem.

 

Para o filósofo francês Maurice Halbwach, autor da célebre obra A memória Coletiva, “A lembrança é, numa larga medida, uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados ao presente, e preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outro tempo saiu já bem alterada.” Assim, a memória da cidade é ressignificada com o passar dos tempos. O renomado professor e escritor Cunha e Silva diz em sua crônica Uma ida ao centro do Rio de Janeiro que “As cidades são como as pessoas, com o tempo mudam de fisionomia”.  

Só a escritura, através da obra de arte, acima de tudo da poesia, é capaz de atualizar e eternizar nossas recordações, recompondo a história de uma cidade. Elmar traz para a tela o que já está eternizado em sua poesia. O documentário José de Freitas: a cidade da memória e da saudade não é a síntese, mas a réplica ampliada do roteiro sentimental de José de Freitas tão bem apresentado no poema Livramento: Pedra e Abstração. As cenas mostradas no documentário são evocadas lírica e emotivamente no poema:

[...] O morro continua lá

e em minha memória incessante

escalada por

                  meninos que são anjos

do além do bem e do mal.

[...]

Recordo o açude

           em que fui tão menino

         como mais não pude

         ser desde então.

         [...]

         As partidas de futebol

         ainda se repetem em minha memória:

         vídeo-tape que não se cansa

         de se repercutir

         em seu interminável repeteco.  

            [...]

            A cidade continua a mesma

         eu continuo o mesmo

         e, no entanto, ambos mudamos

         e continuamos os mesmos

         no eterno retorno de nós mesmos.

         O documentário José de Freitas: A Cidade da Memória e da Saudade, editado por Claucio Ciarlini, sob o olhar das câmeras de Antônio Almeida Neto e Elmar Carvalho, manterá viva a história das raízes socioculturais do povo de José de Freitas como extraordinária fonte de pesquisa para atender as demandas dos historiadores e pesquisadores de hoje bem como das gerações futuras.

Teresina, 24 de maio de 2024.

* Carlos Evandro M. Eulálio é professor de Literatura e de Língua Portuguesa. Membro da Academia Piauiense de Letras, ocupante da cadeira 38. 

 

Referências:

 

BANDEIRA, Manuel. Poema do beco. Estrela da Manhã, 1936.

 

CARVALHO, ELMAR. Livramento: Pedra e Abstração. A Rosa dos Ventos Gerais, 1996.

 

SILVA FILHO, Cunha e. Uma ida ao centro do Rio de Janeiro. portalentretextos.com.br

 

DOBAL, H. Campo Maior. Tempo Consequente, 1966.

 

HALBWACHS Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Centauro, 2006.

 

NICOLS, Bill. Introdução ao documentário. 6.ed. Campinas: Papirus 2016.

domingo, 26 de maio de 2024

ELEGIA A CAMPO MAIOR


Fonte: Google

Elegia a Campo Maior


Elmar Carvalho

 

Na paisagem plana do tabuleiro

campeava sozinha a solidão.

Ao longe, nas manhãs de inverno,

a serra cachimbava suas névoas.

As névoas se misturavam com as nuvens

que rondavam sobre o cume.

As águas mortas do açude

tudo viam e tudo refletiam.

À tarde o aboio dolente do vaqueiro

partia a solidão que tudo presidia.

E o aboio sem resposta

– eco de si mesmo – repetia-se e se extinguia.

O canto rascante e áspero de grilos e cigarras

arranhava o veludo macio do silêncio.

Os cupins espalhados pelo tabuleiro

eram pedras de um jogo em que a

tristeza jogava paciência com a solidão.

E a palma da carnaúba acenava

para vivalma que nunca partia ou

para um fantasma que jamais chegava.

O menino em seu cavalo de talo de carnaúba

campeava seu rebanho de nada

pela fazenda do não-ser.

Campeava seu rebanho de bois de jatobá

por entre manadas de formigas

que pastavam tapetes de babugens

por entre cupins que erigiam moradas

de solidão na solidão da chapada.

E a serra se erguia do plano descampado

cachimbando suas névoas

para um céu que sequer olhava.

Cachimbando suas brumas

como um Sinai que fumegasse.

Diz a lenda que a serra é uma cidade

encantada. Diz o povo que em suas encostas

vagam fantasmas penados em busca de furnas

de ouro. Mas nas cavernas apenas a onça

 faz morada.

Mas o menino ainda assim esperava pelo

desencantamento da serra em vão esperado.

Porque o menino era um poeta

que campeava pelo campo do sem-fim

o seu rebanho de sonho e solidão.  

sexta-feira, 24 de maio de 2024

BENJAMIM SANTOS, O RETORNO

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Benjamim Santos, o retorno


Elmar Carvalho

 

Em minha recente estada em Parnaíba, visitei o teatrólogo e escritor Benjamim Santos. Mantivemos uma longa conversa em sua residência, na avenida Presidente Vargas. Falei-lhe de meus projetos na área literária, inclusive de que estou escrevendo dois livros em meu blog, este Diário Incontínuo e o Arte-Fatos Oníricos e Outros.

 

Benjamim é filho de Benedito dos Santos Lima, que criou o Almanaque da Parnaíba e o editou por vários anos; este anuário, ainda em atividade, foi depois publicado sob a responsabilidade do empresário Ranulpho Torres Raposo, do seu neto Manuel Domingos Neto (uma edição) e é atualmente a revista da Academia Parnaibana de Letras, que já lhe publicou várias edições, com alguma alteração na linha editorial.

 

O dramaturgo esteve muitos anos afastado do Piauí. Arrebatou prêmios, teve peças montadas por importantes companhias, escreveu livros e peças teatrais. Produziu textos que foram encenados em grandes apresentações ao ar livre, sob o patrocínio da Prefeitura Municipal e da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Destacam-se, entre esses  espetáculos, Paixão de Cristo, Auto de São Sebastião e Auto de Corpus Christi, que foram montados, durante vários anos, no encerramento das procissões.

 

Pode-se, portanto, dizer que foi, viu, venceu e... voltou. Voltou para o bem do Piauí e de sua Parnaíba. Tenho observado em várias pessoas e em mim mesmo, que a partir da maturidade começamos a sentir a vontade de regressar aos pagos de nossa infância e adolescência; um verdadeiro chamado de sereia a que muitos não conseguem resistir. É como se fosse a nostalgia de nosso entardecer, misto de saudade e encantamento.

 

Benjamim retornou, e como se quisesse recuperar o tempo, não digo perdido, muito pelo contrário, mas não vivido em sua cidade, começou a desenvolver um trabalho árduo e louvável em prol da cultura parnaibana. Sem dúvida, foi dinâmico secretário municipal da Cultura, promovendo eventos populares, incentivando o folclore, apoiando os folguedos, sobretudo os juninos, especialmente a dança do boi, uma verdadeira ópera popular, com todos os seus adereços, música, encenação, enredo e personagens; entre as obras físicas criadas em sua gestão, merecem menção especial o Museu do Trem e o Jardim dos Poetas.

 

Como pessoa física continua estimulando a literatura, os brinquedos populares e o teatro. E graças a seu esforço pessoal e perseverança, criou o jornal O Bembém, cujo título é uma homenagem a seu pai, um dos mais importantes periódicos culturais do Piauí, já com mais de trinta edições, o que é uma tarefa de invulgar merecimento, mormente pelas dificuldades que certamente encontra para manter a sua regularidade mensal.

 

Nesse jornal vem escrevendo excelentes matérias literárias e em defesa da cultura e de todas as manifestações artísticas. De maneira especial, registro a bela série de textos que elaborou sobre notáveis mulheres parnaibanas, que bem poderia ser publicada como um pequeno grande livro. Em seus trabalhos, mesmo os de caráter apenas jornalístico, tenho notado que é um perfeccionista, com o seu estilo límpido, fluente, escorreito, e sempre primando pelo bom conteúdo.

 

Encerrando, repito: Benjamim foi, viu, venceu e... Voltou para ficar e empreender o inestimável trabalho cultural que vem desenvolvendo.    

4 de agosto de 2010              

terça-feira, 21 de maio de 2024

Variações sobre o Noturno do Cemitério Velho

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Variações sobre o Noturno do Cemitério Velho

 

Elmar Carvalho

 

Em 1990, escrevi o poema Noturno de Oeiras, que foi publicado na revista do Instituto Histórico de Oeiras e foi bem acolhido pelos oeirenses. Esse poema foi publicado em livro, estampado em placas metálicas, recitado dentro da catedral, em seu adro e no Cine Teatro Oeiras, e foi transformado em vídeos, disponíveis no You Tube.

Alguém o enviou para o advogado Talver Mendes de Carvalho, que me enviou uma simpática carta manuscrita, em que fez encorajadoras manifestações elogiosas. Contudo, fez uma ressalva; disse haver sentido falta dos sons maviosos de bandolim e de referência ao cemitério velho. Comecei a fazer ruminações sobre essa “cobrança” e nos dias 13/14.10.1994, me senti inspirado para escrever o Noturno do Cemitério Velho de Oeiras. Esse poema foi publicado na mesma revista do IHO e em livros, e igualmente caiu no agrado dos oeirenses.

Devo ter agregado a essa composição outras lembranças antigas, do velho cemitério de minha terra, onde já não se enterra ninguém, há várias décadas, e de um velho cemitério de São Pedro do Piauí, que vi em minha adolescência, da janela do ônibus, quando fui passar uns três ou quatro dias em Regeneração. Fiz um poema inspirado nessa viagem, quando eu tinha 16 ou 17 anos. O poema se perdeu no desvão do tempo e no esquecimento de uma esconsa gaveta, que de há muito já não existe. Desse poema me ficaram as imagens de uma cruz partida e de um anjo de asas quebradas, bem como um verso que ainda ecoa em minha memória: “agre e agressivo agreste”. E nada mais.

Recentemente republiquei o Noturno do Cemitério Velho de Oeiras em meu blog, e divulguei o seu link através da mídia internética. Vários amigos se manifestaram sobre ele, em belas e desvanecedoras palavras.

Dagoberto Carvalho Jr., oeirense de quatro costados, autor do canônico Passeio a Oeiras, de que tive a honra de fazer o prefácio à sua 6ª edição, meu confrade na Academia Piauiense de Letras, disse por WhatsApp: “Li e reli, religiosamente, seu 'Noturno do Cemitério Velho de Oeiras'. A cidadela é mágica, mesmo. Encanta até na nostalgia de que se deixam 'contaminar' bons poetas, como você”. Como não poderia deixar de ser, lhe agradeci as elogiosas palavras.

Meu amigo e parente Frederico Rebelo Torres, que chamo de Dom Frederico de Las Altas Torres Ebúrneas, me enviou a seguinte mensagem whatsappiana: “Um dos seus mais bem elaborados poemas da sua engenharia emocional. Um belo epitáfio! Para um grande poeta! Para todos e qualquer poeta!” Dei-lhe a seguinte resposta:

“Gostei desse ‘belo epitáfio’, conquanto epitáfio seja associado ao evento morte. Mas, considerando que todos somos mortais e que a morte é um portal para uma vida mais plena e melhor, fico regozijado com esse ‘belo epitáfio’, ainda mais porque você o reservou para um grande poeta e ‘para todo e qualquer poeta’. Assim, fico de peito lavado, enxaguado e lustrado. Muito obrigado, grande condor, grande cantor dos Andes de Miguel Alves!”

No mesmo passo, sem perder o compasso, o Comandante Jônathas Nunes, distinto confrade da APL, postou o seguinte comentário sobre o referido poema:

“Noite de preamar!                                                                                                                   Bom dia, Comandante Elmar,

O poema do amigo – NOTURNO DO CEMITÉRIO VELHO DE OEIRAS – é recheado de construções do mais puro lirismo. É indiscutível a veia poética que brota da leitura de seu poema. Li e reli. Três vezes. Já no entardecer da vida, a mente me socorre nessas horas e o POEMA do amigo me leva aos idos da adolescência quando guiado pela clarividência de minha irmã Amália, me chega às mãos o poema: O Noivado do Sepulcro, de Soares Passos. [Transcreveu o poema].

Desde os idos da mocidade, fui vendo que cada país tem seu Hino Nacional, o National Anthem. Aprendi assim a cantar o Hino Nacional Brasileiro, e também o American National Anthem, o da Inglaterra, da Alemanha, da França, de Angola, etc.  E acredite Comandante Elmar, formou-se na minha mente desde ainda jovem a ideia de que o POEMA – NOIVADO DO SEPULCRO, de Soares de Passos, é uma espécie de HINO NACIONAL DO CEMITÉRIO.

Ao ler hoje seu Poema - NOTURNO DO CEMITÉRIO VELHO DE OEIRAS – vi que o mesmo é de igual quilate do Noivado do Sepulcro.                                   Examinando um e outro, observo que eles refletem, no entanto, o sabor literário de épocas diferentes: Soares de Passos no Romantismo e Elmar Carvalho no pós-modernismo.                                                        Dei-me ao trabalho de imaginar então, como ficaria o Poema de Elmar – Noturno do Cemitério Velho de Oeiras – na matriz do Romantismo de Soares de Passos. Tomei os últimos dez versos do Poema do amigo e com pequeno rearranjo, salvo melhor juízo, penso seria mais ou menos assim:

Cemitério de uma morte

Absoluta e sem fim

Como se fosse uma música

Sublime de bandolim,

Tangido por dedo mágico

De Arcanjo ou Serafim.

Não mais que mero deleite da imaginação.”

Que mais me resta dizer ou acrescentar? Nada, exceto agradecer: meus estimados amigos, Deus lhes pague!

domingo, 19 de maio de 2024

NOTURNO DO CEMITÉRIO VELHO DE OEIRAS

Fonte: Google

 

NOTURNO DO CEMITÉRIO VELHO DE OEIRAS


Elmar Carvalho

 

Cemitério

misteriosamente sem mistério

                                          etéreo

em sua clareza

– mais que clareza, certeza –

de cemitério.

 

Campo Santo

onde o fogo-fátuo

e o pirilampo

cintilam – destilam suas luzes mortas

nas alamedas sem (en)canto

nas veredas do que é somente

pranto

onde poetas

egressos de outra vida

recitam versos enternecidos

para a imortal amada

inesquecida

onde músicos falecidos

acordam sons delicados

doces como alfenim

das cordas sensíveis

e pulsantes do bandolim.

 

Ó som de lamentações e de ais,

de lamúrias passionais,

de réquiem e miserere

que dilacera e fere

como não se ouvirá

nunca mais!

 

Horto sagrado

do que é morto

e é lembrado;

do que é apenas esquecimento

(do que não é nem será

sequer pensamento).

Cemitério

de lápides indecifradas

pelas dentadas do tempo.

De cruzes mutiladas

e braços pensos.

De chumbados anjos sem voo

e de asas decepadas.

De correntes arrastadas

na via crúcis das

almas penadas.

De vultos

queridos da História.

De vultos

diluídos, sem memória ...

De túmulos caiados, caídos,

encardidos pelo tempo.

 

Cemitério de abandono:

fantasmas sem sono

 abrem os portões

de gonzos gementes, enferrujados,

e vagam pelas

ruas adormecidas

– sombras tênues, diáfanas,

esquecidas.

Cemitério

de uma morte

absoluta e sem fim

como uma música

sublime de bandolim

tangido por dedos mágicos

de Arcanjo ou Serafim ...

            Te. 13/14.10.94

sábado, 18 de maio de 2024

LANÇAMENTO DO II SALIPA




LANÇAMENTO DO II SALIPA

Elmar Carvalho

No sábado, estive, a convite do poeta e amigo Alcenor Candeira Filho, na solenidade de lançamento do II Salão do Livro de Parnaíba – II SALIPA, ocorrido no auditório da Prefeitura. Tive a satisfação de participar da edição anterior, em que proferi palestra sobre a importância que as escolas podem ter na educação integral do ser humano, nos aspectos de convivência, civilidade, cidadania e ética. No lançamento a que me referi, o secretário municipal da Comunicação, jornalista Francisco Carvalho, falou sobre a programação, apresentando eslaides e informações pertinentes.

Falaram também a secretária da Cultura, artista plástica Fátima Carmino e o presidente da Fundação Quixote, realizadora do evento em parceria com o Município, professor e escritor Wellington Soares. O prefeito de Parnaíba, José Hamilton Furtado Castelo Branco, falou da importância do Salão, e disse que lhe dará o apoio necessário, assim como fez em relação ao SALIPA anterior.

Em minha fala, além de discorrer sobre a importância das palestras como incentivo aos que fazem literatura, enalteci a homenagem ao escritor Humberto de Campos, que, embora nascido no Maranhão, no povoado de Miritiba, hoje cidade que ostenta seu nome, morou alguns anos em Parnaíba, para onde se mudou sua mãe, dona Ana, após a morte do marido, quando ele tinha apenas seis anos de idade; exaltei a importância do seu livro Memórias, bem escrito, e prenhe de lições e experiências de vida, no qual são narrados episódios pungentes e emocionantes de sua rica vida, repleta de vicissitudes e percalços.

Observando que nos folders e cartazes apareciam, de forma estilizada, os cata-ventos da usina eólica de Parnaíba, aproveitei o ensejo para dizer que os sucessivos governos nada fizeram pelo rio Parnaíba, que sofre os efeitos danosos de desmatamentos, queimadas e poluição, que o ferem de morte; e que agora esse rio tão importante, navegável, mas quase não navegado, sofre a terrível ameaça da construção de cinco usinas hidroelétricas, cujas barragens mais ainda o degradariam, impedindo a sua navegabilidade e diminuindo o seu escoamento d' água, quando a construção de novas usinas eólicas supririam com vantagem essa produção das cinco hidroelétricas, e sem danos ambientais.

Aproveitei para esclarecer que essa redução do fluxo do rio poderá provocar a salinização do Delta do Parnaíba, inclusive com prejuízo para o atual sistema de abastecimento de água potável da cidade parnaibana. Falei outras coisas mais, que deixo de consignar porque já tratei delas em notas anteriores deste Diário.

Por fim, registro que fui convidado pelo Wellington Soares para fazer a apresentação do livro “O que os netos dos vaqueiros me contaram”, do Manuel Domingos Neto. Aceitei o convite e lhe disse que até já o havia lido, tendo escrito três notas desta obra diarística sob sua inspiração.

3 de agosto de 2010

sexta-feira, 17 de maio de 2024

SÁBIO E SANTO

Possidônio e Carlos Rubem


SÁBIO E SANTO


Luiz Lopes Sobrinho


Ao Prof. Possidônio Queiroz, cuja excessiva modéstia esconde, na cidade de Oeiras, uma inteligência de Sábio, e uma alma humílima de Santo.


Num quarto do mercado, em mísera quitanda,

Entre sacos de sal e caixas de sabão,

Esconde-se a figura augusta e veneranda

De um êmulo de Rui, de igual celebração!


Ele, talvez, se ligue aos filhos de Luanda,

Das plagas de Uadai, de Darfur, no Sudão;

E conserve no sangue os mistérios de Umbanda

E as luzes de Iemanjá, no grande coração!


Que importa o mundo, o povo, o clã de onde proveio,

Se o seu saber reluz, de Oeiras, no alto meio,

E uma palavra má nunca manchou seus lábios?!


Na Música é professor! Conhece a Geografia;

Sabe História e Direito e, até, Astronomia!

Na Língua, é visto, enfim, dando lições aos sábios!


Oeiras, 1958

Nota de Carlos Rubem:

Luiz Lopes Sobrinho (Oeiras,1905- Teresina,1984) foi poeta e Juiz de Direito.

Se vivo fosse, hoje (17.05.2024), o Professor Possidônio Queiroz completaria 120 anos.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

A "RODA" DA CASA DO VOVÔ TONHO

 

Iniciando da esquerda: Antônio Freitas (vovô Tonho); Antônio Portela (Senhor Portela), comerciante e intelectual; José Cândido Gayoso, comerciante; Alberto Veras, Juiz de Direito; Ary Carvalho, político, duas vezes prefeito do município.




A "RODA" DA CASA DO VOVÔ TONHO

 

Fernando Freitas

Historiador e ex-prefeito

 

Uma maravilhosa lembrança, das mais antigas que tenho da vida é de uma "roda" de gente em frente à casa de meus avós, o bangalô branco de 1935 (vai sediar o museu local), em José de Freitas. Só pessoas adultas, autoridades, funcionários públicos, proprietários rurais, comerciantes, muitos políticos. Era o final dos anos 50, e a "roda", existente desde os anos 40, todos os dias se fazia, das 19h às 21:30h porque a luz da cidade apagava, literalmente, às 22h. 

Eu tinha menos de dez anos de idade e me sentia adulto e privilegiado de ficar por ali. As 18h, impreterivelmente, minha avó Corina cobrava de uma empregada: - "já botou as cadeiras pra fora? Não esqueça de fazer o café". A "roda" era frequentada pelas pessoas influentes da cidade, mas assiduamente por meu avô Tonho (Antônio Freitas), o então  chefe político de maior expressão da cidade e dono da casa; Ferdinand Freitas (prefeito), filho e sucessor de Tonho por cerca de três décadas; pelo Juiz Alberto Veras; Jacob Sampaio Almendra (ex-prefeito); Ary Carvalho, irmão da vó Corina e um dos mais ricos, nunca casou; os irmãos Edgar Gaioso (ex-prefeito) e Moacy Gaioso, Renato Batista (IBGE), Antônio Craveiro de Melo (caixa da Casa Almendra e ex-prefeito); os irmãos Chico Araujo (vereador) e Nemésio Araújo (oficial de justiça); Levy Carvalho (como ele mesmo se intitulava: "alto funcionário público federal aposentado". Era dos Correios). Dr. Francisco Craveiro de Melo (médico da cidade que aparecia de vez em quando)... 

As lojas da cidade fechavam às 17 horas. No final de semana, o comércio só ficava aberto até a hora do almoço do sábado. À noite, praticamente não existia opção de divertimento, as famílias sentavam-se às portas de casa e assim a "roda" da casa de "seu" Tonho transcendeu no tempo, inclusive à sua morte, em 1963, e permaneceu até a chegada da televisão nos anos 70. Aí a "roda” não aguentou a concorrência da tal modernidade.

domingo, 12 de maio de 2024

NOTURNO DE OEIRAS

 

Fonte: Google

NOTURNO DE OEIRAS


Elmar Carvalho

 

Meia-noite.

Metade silêncio,

metade solidão.

 

Atravesso a praça das Vitórias

na hora dolorosa das doze badaladas

punhaladas que também me atravessam.

 

Da casa de doze janelas

doze donzelas me espiam com olhares

que são setas de medo que

assustam e extasiam.

 

Passadas pesadas

nos assoalhos de tábuas

dos rugosos sobrados se confundem

com o batuque tuc-tuc e

com o atabaque tac-tac

de meu desengrenado coração.

 

A lua se esgueira e espreita

das frestas das nuvens.

 

Os fantasmas caminham

solenes, devagar,

visíveis e invisíveis,

seres que são e não são.

 

No horto do Pé de Deus

visagens rezam contritas.

No horto do Pé do Diabo

assombrações assombram

bichos e visitas.

 

À distância a casa da pólvora

vigia em sua solidez de pedra bruta.

 

Nos campanários de antigas igrejas

algum falecido sineiro repica

os sinos para si mesmo.

 

Uma sonata se evola

de piano que já não existe.

E persiste por pura teimosia.

 

O suicida se insinua

no vão da escada de vetusto sobrado.

Uma taça de prata tilinta e se despedaça ...

 

O relógio da catedral

parou no tempo que continua:

a pátina rói as bordas

da ferida do mostrador e

mostra a dor das doze badaladas.

 

Negros ainda esperam abolição

absolvição nas cercanias do Rosário

pelos pecados que não pecaram.

 

As pedras antigas do calçamento

são percorridas por sombras

feitas somente de alumbramento.

 

O vento que passa

não é vento: é fru-fru

de saia de pessoa morta

ou hálito de porta

de casa já demolida.

 

Da Madona lágrimas escorrem

e chovem sobre os telhados ...

 

Oeiras navega na noite

de um tempo que não termina.

De um tempo sem medida, fugitivo

de ampulhetas e relógios.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

CEGO BENTO

 

Charge da autoria de Gervásio Castro

CEGO BENTO 

 

Elmar Carvalho

 

Desde 1975, quando fui morar em Parnaíba, passei a ver o cego Bento (Bento Araújo da Cunha, *1921 - +2013) perambulando pela cidade, com seus acompanhantes, um dos quais, seu irmão, também mergulhado nas densas trevas da cegueira, a encher os bares com a música de sua sanfona. Compunham um legítimo conjunto do chamado forró “pé-de-serra”. Após a apresentação, o ouvinte dava ao sanfoneiro o dinheiro de que podia dispor, quase sempre muito escasso. Pouco ou nada sabia da história do cego.

A minha série de poemas titulada “PoeMitos da Parnaíba”, em que canto os “mitos” dessa amada e aprazível cidade, foi elaborada aos poucos, e aos poucos foi publicada no jornal Inovação, periódico valente, de saudosa memória, que não poupava o lombo dos pulhas, salafrários e corruptos. Cada número trazia dois ou três “poemitos”, o Reginaldo Costa sempre me cobrando novos poemas, mas eu já me sentia esgotado na inspiração, pois caracterizar ou caricaturar uma pessoa, no que ela tem de pungente ou anedótico, em poucos versos, é uma tarefa difícil e ingrata. Só anos após a desativação do brioso pasquim é que encerrei a série, creio que com chave de ouro, ao consagrar o último poema ao cego Bento. Tempos depois, estando eu numa barraca, ao pé do mar, na praia de Atalaia, a que prefiro o nome poético e sugestivo de Amarração – de amar, amarrar-se, amar de coração – chegou o cego trazendo a música na caixa e no fole de sua sanfona. Identifiquei-me como o autor do poema que lhe endereçara, e lhe fiz um meteórico discurso. O cego emocionou-se, agradeceu-me, e lamentou não haver sido gravada a minha, talvez importuna e inoportuna, peroração.

Alguns meses atrás recebo uma correspondência sua, na qual está contada, em síntese, a sua vida de pobre e de amante inveterado da música, desde criancinha, em palavras simples, mas claras e precisas. Nasceu para a vida e para a música em 17 de setembro de 1921, no lugar Boa Vista, município de Luís Correia. Casou-se no dia 31 de janeiro de 1951, tendo gerado doze filhos. Aos dez anos já tocava uma gaita de boca, mais conhecida em nosso meio como realejo, enquanto seu irmão Bernardo balançava um badalo, mas afirmando estar a tocar um cavaquinho, o sonho e o desejo se impondo à crua realidade de percalços e pobreza. Seu irmão Benedito batia com o “cabeção” em um tamborete e fazia retinir umas argolas, como se fossem um maracá. Foi assim, com essa improvisada orquestra de crianças irmãs, que se iniciou a bela trajetória musical do cego Bento.

Em 1935, quando tinha 14 anos, seu pai foi morar no lugar Gameleira, onde aprendeu a executar uma pequena harmônica de quatro baixos. Seu irmão Bernardo tocava um cavaquinho, porém sem saber afiná-lo, apenas fazia barulho, mais servindo de percussão do que de acompanhamento, o amor à música muito maior do que a sua habilidade de criança. Benedito, o outro irmão, empunhava o reco-reco. Surgiram os contratos, que possibilitaram a melhora da orquestra. Às vezes, percorriam de sete a oito léguas (multipliquem-se esses números por seis, para se encontrar a quilometragem), a pé, como uma espécie de menestréis de antigamente, para tocarem numa festa.

A partir de 1940, o cego Bento passou a residir na cidade de Parnaíba. O seu conjunto musical já possuía uma sanfona nova, bombo, tamborim, banjo e clarineta. Para se tornar mais conhecido, começou a fazer festas. Os contratos foram, gradativamente, aumentando. Com isso, sua responsabilidade artística foi crescendo, bem como a sua autocrítica, pelo que passou a sentir, em face talvez dos modismos, que o seu repertório já não estava agradando. Por esse motivo, resolveu ser aluno do maestro Raimundo Ribeiro da Silva, mais conhecido como Raimundo Tropa. As aulas lhe foram muito úteis, porquanto passou a conhecer, como ele mesmo diz, “tonalidade do instrumento, escala cromática, escala natural e mais algumas coisas”. Aprendeu a tocar samba, marcha, rumba, fox, xote e baião, músicas que, na época, caíam mais no gosto popular. Cego Bento crescia na competência e na fama.

Nas comemorações do centenário de Parnaíba, ocorrido em 1944, em plena e majestosa praça da Graça de então, a sua orquestra tocou, para deleite do povo, durante nove noites. Foi, talvez, o ápice de sua glória e consagração. No clube Sinorion, durante muitos anos, tocava, no período de carnaval, as encantadoras e belas músicas da época. Era o carnaval gostoso, alegre e típico do Zé Pereira, e não os arremedos e macaqueamentos, hoje tão em voga, do pomposo e “cinematográfico” carnaval carioca. Tocou nos principais clubes da cidade, entre eles o Fluminense, Ferroviário, do Trabalhador, Guarani, Coroa. Animou bailes matutos no aristocrático Cassino 24 de Janeiro. Apresentou-se nas boates das irmãs Justina e Luzia Chaves. Eram os áureos tempos do “Sonho Azul”, dos “bailes azuis” e de outras cores. Animou os reboliços dançantes das boates Madalena (sem Madalenas arrependidas), QG (quartel-general de estripulias estrambóticas e eróticas), Cabeleira, Lulu, Ninho do Xexéu (onde muitos se aninharam em lúdicos e sensuais aconchegos), atuando também na Munguba e no Gordo.

No dia 27 de julho de 1974, cego Bento desativou sua orquestra, e formou o “Trio Igaraçu”, constituído por ele próprio, na sanfona, pelo seu irmão Luís, no pandeiro, e Nonato Gordo, no cavaquinho. Nonato, que fora membro da banda municipal, faleceu, sendo substituído por outro instrumentista. O “Trio Igaraçu” ainda hoje torna mais alegre a praia de Amarração, provocando amarrações no embalo da música e no ritmo dos corações.

Cego Bento, em 17 de setembro de 2002, completou 81 anos de idade, mas, ao contrário do que ele diz na carta, não o fim da vida nem da carreira. Todavia, como ele afirma na carta, e eu já afirmara em versos, pode dizer com todas as letras: “Posso dizer, sou uma tradição, sou uma relíquia, sou folclore, sou museu desta cidade”. E eu somente acrescentaria: um museu muito vivo, muito vivo e alegre, e não triste e fossilizado como certos museus de glórias vãs.

Não podendo, como gostaria, de estampá-los em placa de bronze, estampo nas placas da eternidade estes versos que dediquei ao imortal cego Bento: “Não morrerás, / meu quimérico e homérico cego. / Um mito não morre: / um mito se encanta e permanece.”

Segue meu poema sobre o Cego Bento, na íntegra:

 

Cego Bento

 

Elmar Carvalho

 

Não morrerás,

meu quimérico e homérico cego.

Um mito não morre:

um mito se encanta e permanece.

Teus dois percursionistas

são dois anjos da guarda

de asas dissimuladas.

Um te abriga com a sombra

de seus olhos também sem luz.

O outro é tua estrela guia,

que te conduz em tua noite sem dia,

pelas trevas espessas de teus olhos,

como um Virgílio da nova mitologia.

Não morrerás,

não por seres Bento,

mas por teu talento.

A música escorre de teus dedos,

saltita sobre os teclados,

palpita e resfolega no fole,

cabriola no molejo moleque

do leque da sanfona,

evola-se pelos ares,

remexe as ondas dos mares,

sacoleja as folhas dos palmares,

se quebra e se requebra pelos bares

e remelexe no chamego e aconchego dos pares.

Não morrerás, cego Bento.