sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

AS APARIÇÕES DO REDUZIDO

Charge da autoria de Gervásio Castro


AS APARIÇÕES DO REDUZIDO


Elmar Carvalho

 

Dias atrás, eu, o Canindé Correia e o Vicente de Paula, o Potência, fomos à praia Peito de Moça à procura do amigo Porfírio Carvalho, irmão do Jonas e do Neco Carvalho, também nossos amigos. Em virtude de equívoco em relação ao ponto de referência que nos deram, não conseguimos localizar a casa onde ele estava hospedado. Por esta razão, retornamos a Parnaíba e fomos ao Labino. À tarde, após um churrasco, seguimos em direção ao Tabuleiro, Rosápolis e adjacências. Vimos as novas ruas que estão sendo abertas e os trabalhos de urbanização que estão sendo feitos nessa zona da cidade de Parnaíba. Fizemos uma parada logística no bar do Raimundo José Clarindo, um misto de careca e cabeludo, que nos contou uma proeza pós mortem do Zé Maria Reduzido.

 

O Clarindo, certo dia, não sei se de finados, foi ao túmulo do saudoso Reduzido, para fazer umas preces em sua intenção. Entretanto, teimosamente, as velas colocadas sobre a lápide não acendiam, mesmo após várias tentativas. Em vista disso, ele tentou acender uma delas encostando o seu pavio na chama de uma que havia num túmulo próximo, mas ainda assim não obteve êxito. Após novas tentativas, o Raimundo José perguntou-se em voz alta sobre a razão de as velas não acenderem.

 

Umas voz semelhante à do finado, que parecia vinda de dentro da sepultura, respondeu mansamente, quase num sussurro: - “Aqui dentro já faz tanto calor, e você ainda quer acender velas aí em cima...” Após essa narrativa, recordamos algumas aventuras folclóricas do Reduzido, e lembramos que ele era um talentoso mecânico.

 

Quando sua velha Variant marrom “negava fogo”, ele quase milagrosamente fazia com que as velas de ignição, ao contrário das de cera em seu túmulo, voltassem a emitir faíscas, fazendo com que o carro voltasse a funcionar. Ele era tão autoconfiante em sua capacidade técnica, que ao fazer alguma viagem levava apenas as ferramentas de praxe; entretanto, conduzia vários pneus estepes, em torno de meia dúzia, simbolizando com isso que os defeitos mecânicos não lhe causavam preocupação, mas sim os imprevisíveis furos dos pneumáticos.

 

Em face da história das velas inacendíveis, o Vicente de Paula (Potência) contou que o tenente (Bene)Dito testemunhou duas aparições do saudoso Reduzido. Uma de manhã cedo, quando viu o vulto do falecido a caminhar nas proximidades de sua casa; pouco depois, já não viu mais a visão, como se esta se tivesse desfeito no ar. Posteriormente, a imagem do Reduzido lhe apareceu de novo, com os cabelos bem pretos, bem lisos e luzidios.

 

O tenente não teve nenhum sobrosso porque no momento não se lembrou de que o Zé Maria já tivesse falecido. Como lhe achasse bonito os cabelos tão pretos e brilhosos, manifestou o desejo de lhes tocar, mas Reduzido não lhe permitiu o contato, afirmando que doía muito, e, logo em seguida, desapareceu misteriosamente, como por encanto. Quando o Vicente contou esse fato, o Clarindo ficou todo arrepiado, e eu então fiquei certo de que ele acreditava piamente no episódio das renitentes velas sobre o túmulo do Zé Maria.

 

O Reduzido tinha um humorismo peculiar, e participou de várias peripécias pitorescas e folclóricas. Algumas foram fruto de suas irreverências etílicas, satíricas, burlescas, mas sem ofensa e prejuízo ao semelhante. Eram apenas brincadeiras e “tiradas”, oriundas de sua verve e espirituosidade, voltadas para o riso e a alegria. Durante alguns anos foi o principal responsável pela brincadeira de malhação do Judas, que era dependurado e trucidado perto da igreja de São Sebastião.

 

Nunca ouvi falar de maldade que ele tenha praticado, e as suas duas aparições, se verdadeiras, e não apenas fruto da imaginação dos videntes, apenas revelam que ele era e é um espírito amante da irreverência inofensiva e do sadio bom-humor. 

11 de janeiro de 2011

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Caderno de Letras Meridiano[1]



Caderno de Letras Meridiano[1]

 

Carlos Evandro M. Eulálio
Da Academia Piauiense de Letras (cadeira 38)

 

É com grande alegria que celebramos hoje o lançamento do livro Meridiano Caderno de Letras, com apresentação primorosa da acadêmica Maria do Socorro Rios Magalhães. Numa edição crítica, nele reunimos os três únicos números dessa notável revista.

 

A revista Meridiano Caderno de Letras foi idealizada pelos imortais da Academia Piauiense de Letras, M. Paulo Nunes, H. Dobal e O. G. Rego de Carvalho aos quais rendemos efusivas homenagens. A revista teve curta duração, mas constitui valioso significado para a memória literária do Piauí. Circulou em Teresina, nos meses de outubro e dezembro de 1949 e setembro de 1950. Seu último número é todo dedicado à obra do poeta Da Costa e Silva, falecido no Rio de Janeiro em 29 de junho desse mesmo ano.

 

Agradeço sensibilizado o apoio que recebi da presidente Fides Angélica Ommati que compreendeu o propósito de minha iniciativa, viabilizando, por meio da Editora Nova Aliança e do governo do Estado do Piauí, a publicação desse importante periódico sobre o qual apenas se sabia de sua existência, mas se desconhecia a riqueza de seu conteúdo, inédito há quase 80 anos.  

 

  O Caderno de Letras Meridiano é considerada um marco na literatura do Piauí e um importante veículo de divulgação de nossos escritores que atuaram em Teresina na década de 1940 e 1950. Eram vozes diversas, inquietas, abertas ao novo — vozes que, mesmo em um contexto de escassos meios editoriais, compreenderam a importância do momento de transformação literária em nosso meio. Sobre o aspecto inovador que a revista representava na época, diz M. Paulo Nunes:

 

“O caderno de Letras Meridiano, mesmo sobrevivendo somente até o terceiro número, significou o momento de renovação da literatura piauiense e marcou época, inaugurando a tomada de consciência de que era preciso mudar algo na literatura piauiense”.

 

Em suas páginas lemos artigos de nomes da importância de Edson Regis, Da Costa Andrade, Martins Napoleão, Francisco Pereira da Silva e outros, além dos primeiros contos de O. G. Rego de Carvalho, dos artigos do professor Clemente Fortes, que só agora deles tomaremos conhecimento, dos magníficos ensaios de crítica literária de M. Paulo Nunes, das poesias e traduções de H. Dobal, que também escreve o admirável artigo D. Quixote versus Robson Crusoé.

 

Sobre esse ensaio diz o poeta e crítico literário Mário Faustino, em carta ao filósofo Benedito Nunes, residente em Belém do Pará. Mário se encontrava em Teresina, visitando parentes e amigos. Eis o trecho da carta datada de 27 de dezembro de 1950:

 

“[...] Agora a surpresa: sabes que aqui tem gente culta, inteligente, moderna e de espírito à beça. Se eu arranjar, vou te mandar os três números de uma revistinha de novos daqui: Meridiano”. Tem um rapaz que escreve uns belos poemas, muito simples, muita poesia e muito bom gosto, traduz otimamente ingleses e americanos (inclusive o Eliot e o Cummings). Eu dizendo tu não acreditas. Desse mesmo rapaz, que não só tem talento, mas também uma boa cultura, li um interessantíssimo artigo sobre o egoísmo inglês e a generosidade e o heroísmo espanhóis, sobre a solidão e a solidariedade dos saxões e dos latinos, intitulado “D. Quixote versus Robinson Crusoé”. Esse rapaz cita Santa Teresa, Lope de Vega, Quevedo, Calderón, Shakespeare, Unamuno, Bunyan, John Donne, com uma seriedade espantosa. Só tu vendo. Nessa revista tem gente que escreve falando em Claudel, Péguy, Rilke, Göethe, uma coisa incrível! Esse Norte é mesmo o tal! Tem muita gente estudiosa por toda a parte, até no Piauí!!!” (Faustino, 2017, p. 29)[2].

 

Ao organizar este livro, procurei não apenas compilar documentos, mas realizar um trabalho de pesquisa, visando aproximar o leitor de textos raros da nossa historiografia literária. Que esta obra cumpra não apenas o papel primordial de resgatar preciosos textos da literatura piauiense para a posteridade, mas também sirva como um material de pesquisa, indispensável aos nossos professores, estudantes e todos aqueles que apreciam a boa leitura.

 

[1] Lançamento da obra Meridiano Caderno de Letras, organizado por Carlos Evandro M. Eulálio, em sessão solene na Academia Piauiense de Letras, realizada no dia 6 de dezembro de 2025.

[2] FAUSTINO, Mário. Meu caro Bené: cartas de Mário Faustino a Benedito Nunes / Organização, apresentação e notas de Lilian Silvestre Chaves – Belém: Secult, -PA, 2017. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Indo de “Rio Abaixo, Sertão Arriba”

 

Elmar Carvalho, Fonseca Neto, Fides Angélica, Francisco de Assis Sousa e Zózima Tavares




Indo de “Rio Abaixo, Sertão Arriba” (*)

 

Elmar Carvalho

 

Neste sábado (06/12/25), em solenidade presidida pela Dra. Fides Angélica e pelo professor e historiador Fonseca Neto, em diferentes momentos, tive a honra de ser escalado para fazer a apresentação da antologia Rio Abaixo, Sertão Arriba, que, a meu ver, seria – e acredito tenha sido – o ponto culminante do 2º Encontro de Academias de Letras do Piauí.

Além dessa importante coletânea, a Academia Piauiense de Letras – APL, promotora do evento, também lançou mais de uma dezena de livros por ela editados, com o apoio do governo estadual, e várias obras de autores das academias participantes do encontro, bem como a magistral obra Uma trajetória de 120 anos do futebol piauiense – história e fatos (1905-2025), de autoria de Celso Carvalho, escritor, desportista e jornalista.

Em cumprimento à missão que me foi designada, pedi licença para fazer uma síntese da obra de Celso Carvalho.

Expliquei que, em suas páginas, desfilam os grandes craques do futebol piauiense. Tendo sido um goleiro do futebol amador, fiz questão de citar os seguintes arqueiros: Coló, estiloso, espetacular e espetaculoso, em suas coreográficas defesas; Beroso, contido, eficiente e objetivo; Batista, seguro, eficaz, uma verdadeira muralha, cujo apelido – Mão-de-Onça – é o seu emblema e o seu melhor retrato; Hindemburgo, boêmio, mulherengo, um tanto controvertido e pinguço, que às vezes curava suas ressacas deitado sobre o travessão da meta.

Fiz uma referência e reverência à parte ao grande goleiro Morcego, inspirado no qual escrevi um conto, com umas pitadas de ficção. Quem primeiro me falou dele foi meu pai, Miguel Carvalho. Depois, o grande Carlos Said me confirmou o que sobre ele me dissera papai. Falei dele a Celso Carvalho, que em seu livro o homenageia. Bizarro, exótico e estrambótico, sobre ele eu disse, no livro em comento:

“Morcego, grande goleiro teresinense, foi uma bizarra ave mamífera voadora – uma espécie de Higuita antes de Higuita – com suas pulutricas e acrobacias aéreas, em que muitas vezes parecia planar como uma asa-delta sem asas. Estrambótico e exótico, voava, defendia a bola e, no mesmo salto, ficava dependurado no travessão como um grande MORCEGO.”

Antes ainda de entrar no mérito de meu pronunciamento, declarei que tinha a honra de estar participando de dois livros que estavam sendo lançados na solenidade: Avenida Frei Serafim em 18 vozes, organizado por mim e por Dílson Lages Monteiro, e Arte-fatos oníricos e outros, que reúne meus contos, de diferentes épocas, tamanhos, temáticas e formatos, alguns da vertente do neorrealismo, do realismo fantástico, do surrealismo e de outros ismos.

Sobre a obra Rio Abaixo, Sertão Arriba, fiz as seguintes considerações:

Expliquei que fora idealizada e organizada pelo acadêmico Fonseca Neto. Falei que era uma antologia, uma vez que os textos foram escolhidos pelos seus autores e por suas Academias. Enalteci a beleza de sua capa e de sua diagramação, além de sua excelente apresentação gráfica, em material de boa qualidade.

Acrescentei que todas as Academias tiveram direito a duas páginas para traçarem um breve histórico de sua criação, de seus objetivos e atividades, além de mais três para cada um dos cinco autores de cada entidade, o que totalizaria 17 páginas.

A antologia apresentou matérias em verso e prosa. Preponderaram os poemas, de diferentes temáticas e aspectos formais. Nos textos em prosa houve maior participação de artigos ou pequenos ensaios, crônicas – algumas memorialísticas e historiográficas –, contos e outros relatos e narrativas.

Como exemplificação, mencionei o texto Riachão, da autoria de João Erismá de Moura. Falei que essa crônica, a exemplo de outras, cantava a terra natal do autor, como o poeta Casimiro de Abreu fizera nestes versos do poema Minha Terra:

“Todos cantam sua terra,

Também vou cantar a minha,

Nas débeis cordas da lira

Hei de fazê-la rainha”.

Em breve blague, observei que o Riachão poderia não ser um rio, mas também não seria um córrego ou um simples rego. Ilustrei minha assertiva com uma anedota: quando eu tinha dúvida, em virtude de o recinto se encontrar escuro ou por qualquer outra razão, sobre se a autoridade militar era um tenente-coronel ou um coronel, eu o chamava de coronel, uma vez que, se fosse coronel, por motivo óbvio, não poderia se aborrecer; e, se fosse tenente-coronel, também não, já que eu havia subido a sua patente. Em assim sendo, declarei que promovia o Riachão a um rio – um rio de verdade.

Complementando minha brincadeira, lembrei que o excelso poeta Fernando Pessoa, também enaltecendo sua terra, fizera os seguintes versos:

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”

Dessa forma, para João Erismá de Moura, sem dúvida, o Riachão é mais bonito que o rio Parnaíba, o Velho Monge dos majestosos versos de Da Costa e Silva.

Fiz ainda referência ao texto Finada Alta, de autoria do professor Melquíades Barroso de Carvalho Filho, como exemplo de ótima redação aliada a um conteúdo denso, instigante e atraente, e que poderia ser considerado um rompimento de gêneros literários estanques, pois nele se percebe a interpenetração de crônica, memórias, conto e breve ensaio historiográfico e sociológico.

Nele perpassa a vida de Alta – uma vida dramática e mesmo trágica – que enfrentou as vicissitudes de preconceitos e discriminações, sem falar na pobreza, na doença e na morte. Até seu nome ficou perdido nos desvãos da história, porquanto Alta não era seu prenome, que deveria ser Auta, com u e não l. Alta era o seu apelido, já que ela era uma negra alta, corpulenta, que depois definhou, sem dúvida com a tuberculose de que veio a ser vítima.

Até na morte o preconceito a acompanhou, uma vez que seu sepultamento suscitou uma divergência política, em que lhe negaram uma cova do lado de dentro do cemitério da Paróquia. Mas, na tragicidade de sua vida, aparece a figura de uma espécie de anjo protetor: uma senhora da alta sociedade, de nome Amélia, esposa do capitão Adão Rodrigues, que tentou ajudá-la como pôde. Contudo, o povo de Amarante, tempos depois, a “canonizou” como uma alma milagrosa, uma santa popular. 

No poema Parapente, ficamos sabendo que o historiador e poeta Antônio Pinto deixou a limitação de sua cadeira de rodas para alçar voo em seu sonho de Ícaro e se inebriar com as belezas da serra da Ibiapaba, ao sobrevoar suas florestas, suas encostas deslumbrantes e seus vales férteis e verdejantes. Do mesmo modo, em paramotor, sobrevoou as águas do Bezerro e se encantou com as verdes quintas freitenses, para enfim adejar sobre o velho morro do centro da cidade, que me fascinara em minha adolescência.

Por fim, afirmei que essa antologia trazia o panorama da literatura produzida em nosso estado. Era uma espécie de radiografia da qualidade de nossos prosadores e poetas. Disse que ela abrigava escritores experientes ao lado de outros que ensaiavam seus primeiros voos sobre o campo largo da literatura.

Proclamei que não bastava serem fundadas novas academias, mas que as existentes não fossem afundadas pelo abandono e pela inércia de seus membros e dirigentes; que elas deveriam ser mantidas vivas, pulsantes, através de eventos, de oficinas literárias, de publicações impressas e das possibilitadas pelos sites e pelas redes sociais.

Essa rica e bela antologia foi o coroamento do 2º Encontro de Academias de Letras do Piauí. Foi a chave de ouro que encerrou esse memorável conclave de nossos literatos.

(*) Tentativa de reconstituição de meu discurso pronunciado no dia 06/12/25, por ocasião do lançamento da antologia Rio Abaixo, Sertão Arriba. A reconstituição foi feita com a ajuda de meu esquema mnemônico.

domingo, 7 de dezembro de 2025

REALIDADE FANTÁSTICA

Criação: AI Gemini

REALIDADE FANTÁSTICA


Elmar Carvalho

 

Velhas borboletas empoeiradas

saídas do fundo dos baús.

Velhas borboletas obsoletas

              e de

              asas

enferrujadas querendo

aprender de novo a arte de

     bor-    bor-       bor-

  bo-    bo-      bo-

       le-      le-         le-

   to-      to-                to-

        a-          a-               a-

                vo-      vo-           vo-

ar.                  ar.                      ar.

              Lâmpadas

votivas destroçadas, estrelas

cadentes geladas, luzes

apagadas pelos inimigos da

          claridade.

Antigos

            alfarrábios cheios

            de traças e cupins

            com as amareladas

            páginas dissecadas

reescritos. 

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

FLAGRANTES DE UMA VIAGEM NO TEMPO E NO ESPAÇO

(c) Elmar Carvalho

Imagem elaborada pela IA Gemini, com base em minha foto acima, sob minha orientação.


FLAGRANTES DE UMA VIAGEM NO TEMPO E NO ESPAÇO

 

Elmar Carvalho

 

Neste final de semana fiz uma breve viagem a Parnaíba.

Retornei no domingo, às 10 horas, em ônibus da Guanabara. Quando cheguei à minha poltrona, no piso superior, situada à janela, havia um homem na poltrona do corredor, que gentilmente me cedeu passagem. Tinha barba e calculei que estivesse no início de sua maturidade. Fizemos a viagem sem nenhum tipo de conversa até a cidade de Piripiri.

No final de minha adolescência e início da juventude, fiz várias vezes essa viagem (ida e volta), sobretudo no período de setembro de 1975 a março de 1977, quando assumi meu emprego nos Correios, e depois, entre agosto de 1982 e junho de 1985, quando me casei.

No primeiro período, morei em Teresina até meu retorno a Parnaíba; a partir de agosto de 1982, passei a morar definitivamente nessa capital. Nessa época, na viagem de ida, seguia com incontido contentamento e, na volta, ficava melancólico, imerso em lembranças e saudade, sobretudo de meus pais.

Almoçamos em Piripiri. No self-service fiquei atrás de um rapaz muito jovem e muito magro. Admirei-me com a quantidade de arroz que ele colocou em seu prato. Fez uma verdadeira montanha. Admirei-me mais ainda com a quantidade das outras iguarias que ele foi acumulando no prato em suas sucessivas escolhas.

No início, fiquei com certa inveja, mas depois — por que não confessar? — tive saudade de mim mesmo, quando, no auge de minha juventude saudável, igualmente devorava com muito apetite uma quantidade semelhante de repasto. Só não atinei em como um corpo tão franzino poderia suportar tal volume de alimento.

Recomeçamos a viagem. Vi que o rapaz da poltrona contígua à minha, de vez em quando, retirava um livro da mochila, que conduzia a seus pés, e o folheava ou lia durante alguns momentos. Terminei sendo vencido pela curiosidade e lhe perguntei se ele lia apenas livros técnicos ou informativos, ou se lia também obras literárias, tendo ele me respondido, com certa ênfase, que gostava de livros de ficção e de poemas, o que me causou perplexidade e alegria, neste tempo em que a literatura vem perdendo prestígio, mormente pelo excesso de escritores e pela falta de leitores. São escritores demais para leitores de menos.

Perguntou qual era o meu nome. Ante minha resposta, indagou se eu fazia parte do Clube dos Poetas Mortais, ao que respondi afirmativamente. Disse que participou de uma das coletâneas dessa agremiação literária e era ativo em seu grupo de WhatsApp. Falei que esse clube fora criado por Paulo Couto, velho amigo, que também organizou suas obras coletivas.

Comentou que a poltrona do ônibus era de boa qualidade, e eu afirmei que era melhor que a dos aviões em que já viajara.

Aludi a uma das músicas românticas de Belchior, em que ele dizia: “Foi por medo de avião / Que eu segurei / Pela primeira vez a tua mão”. Contei-lhe que, em minhas primeiras viagens aéreas, eu tinha medo e, para driblar o meu pavor, observava as aeromoças — que, então, eram chamadas mesmo de aeromoças, e eram, de fato, moças e bonitas. Disse-lhe que, por causa disso, fizera o meu poema A Ero Moça, publicado na internet.

No decorrer da conversa, fiquei sabendo que o poeta se chamava Daniel Santos e que se interessara por literatura aos cinco anos de idade, quando leu um pequeno livro que ainda guardava. Acrescentou que tinha uma empresa especializada em consertar máquinas de lavar roupa. A título de velada sugestão, perguntei se ele não pretendia ingressar na área de limpeza e conserto de ar-condicionado, tendo ele dito que já estava montando uma equipe com esse objetivo.

Relatei-lhe que, alguns meses atrás, mandara consertar uma máquina de lavar roupa e que a empresa não conseguira efetuar com eficácia o serviço, pelo que tive de comprar uma máquina nova. Diante disso, pedi redução no preço proposto, tendo enviado à empresa a nota fiscal de compra da nova máquina. Contudo, o dono da firma insistiu em manter o preço do orçamento, embora o serviço prestado me tivesse sido inútil.

Quando passamos por uma casa situada no entorno do Açude Grande, em Campo Maior, disse-lhe que ela havia sido sede de um cabaré e posteriormente fora o entreposto de uma empresa, com matriz em Minas Gerais, que comprava jumentos para exportação, segundo os rumores. Assim, poderíamos dizer, de forma metafórica e literal, que servira ao comércio da carne, para diferentes finalidades.

A conversa não foi contínua. Às vezes eu ruminava meus silêncios na contemplação da paisagem, da qual tirei umas poucas fotos, sobretudo da chapada ornada de cupins, faveiras, sambaíbas e pequizeiros. Aliás, disse ao poeta Daniel Santos que gostava de viajar perto da janela exatamente para olhar a paisagem, e que desse labor do ócio me viera o estalo para alguns poemas que estão em meus livros.

Para encurtar esta crônica dessa conversa intermitente e desses “flagrantes”, quando chegamos ao início da ladeira do Morro do Uruguai, relatei-lhe que, em 1984 ou 1985, antes do meu casamento, fui esperar Fátima, que vinha de Parnaíba, em um ônibus da extinta empresa Marimbá. Por distração, desci a estrada até uns setecentos metros e, quando retornava, escapei de morrer por um átimo ou uma diminuta fração de segundo. Com um preciso e exato golpe do guidão, livrei-me de ser colhido por um automóvel em altíssima velocidade.

Vi a fragilidade e fugacidade da vida. Pude contemplar suas frágeis e delicadas engrenagens. Eu teria sido uma vida interrompida em seu ápice. Não teria tido o que conquistei a partir de então. Não teria me casado, não teria tido meus dois filhos, não teria concluído o curso de Direito, nem me tornado juiz de Direito, nem feito os vários poemas, contos, crônicas e romance que fiz depois. Não teria me tornado quem eu hoje sou.

Tinha menos de 30 anos de idade, e a vida ainda me floria, com as Graças me espargindo rosas em meu caminho. 

domingo, 30 de novembro de 2025

TÉDIO


TÉDIO


Elmar Carvalho

 

Só o tédio absoluto,

o vazio total,

a negação completa,

eu sinto sempre.

Sempre a falta de algo.

Sempre o algo inalcançável.

Sempre a louca

procura

do tesouro perdido,

da pedra filosofal inexistente.

Sempre a eterna

falta de inspiração

para a eterna poesia

nunca feita.

Sempre a mesma

falta de amor.

Sempre o mesmo amor

velho e tedioso.

Sempre o

mesmo tédio cansado.

Sempre, sempre, sempre

o mesmo sempre de desilusão.

            Pba. 08.09.77 

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

DISCURSO DE RECEPÇÃO AO PROFESSOR MARCELINO (*)

 

Homero Castelo Branco colocou Amarante dentro de minha casa, através de uma linda pintura a óleo — da autoria de Abinabel Cunha, de nome artístico Di Kuka



DISCURSO DE RECEPÇÃO AO PROFESSOR MARCELINO (*)

 

Elmar Carvalho

 

Nesta noite festiva e de gala da Literatura Piauiense, a Academia Piauiense de Letras se regozija ao receber o ilustre professor universitário da UFPI Marcelino Leal Barroso de Carvalho, mestre de excelsas virtudes e saber.

O novo acadêmico ocupará a cadeira nº 13, que tem como patrono Joaquim Ribeiro Gonçalves, nascido em Regeneração, em 1855, e falecido no Rio de Janeiro, em 1919. Formou-se em Direito pela Faculdade do Recife. Foi vice-governador do Piauí e senador da República.

O primeiro ocupante dessa cadeira foi o médico, professor e político Antônio Ribeiro Gonçalves (1877–1928), seu conterrâneo, cujo nome foi dado ao município de Ribeiro Gonçalves, de cuja comarca fui juiz de Direito nos primeiros anos do século XXI. Do fórum, algumas vezes, contemplava as encostas do morro, um lindo e sanguíneo flamboaiã e um imenso pé de angico-branco, no qual faziam a sesta vários urubus, embrulhados em sua casaca negra. Mais adiante, ficava a praça da matriz, entre a qual e um íngreme morro corria, bucólico, profundo e moroso, o Velho Monge da imagem dacostiana.

Gonçalo de Castro Cavalcanti (1882–1949) foi o segundo titular da cadeira. Nascido e falecido em Teresina, foi professor, promotor de Justiça, juiz de Direito e membro do Tribunal de Contas do Estado do Piauí. Conciliou a exatidão da matemática e da física com a subjetividade e emoção da oratória e das humanidades.

Depois, ocupou essa cadeira a figura emblemática e carismática do médico psiquiatra Clidenor de Freitas Santos (1913–2000), idealizador e fundador do célebre sanatório Meduna, que revolucionou a psiquiatria de nosso estado ao adotar novas modalidades de tratamento e ao afogar nas águas do Parnaíba as desumanas correntes então ainda usadas.

Sobre Clidenor, já tive a oportunidade de dizer:

“O nome Meduna foi dado em homenagem a um grande psiquiatra francês. O sanatório é uma bela construção, com seus pavilhões brancos, seus alpendres, seus corredores. Fica no centro de um aprazível bosque. Até parece uma aldeia, onde ainda alvejam a casa senhoril e a capelinha branca, sobre suave colina, que compõem o aspecto bucólico do conjunto. Foi uma obra audaciosa para a época — e mesmo nos dias de hoje ainda seria.

Clidenor, quando o conheci, era um velho de boa estatura, ereto, empinado, elegante, inclusive no modo como se vestia. Usava uma velha Mercedes, em perfeito estado, tão elegante quanto ele. Admirava música erudita, sobretudo Mozart, Bach e Beethoven. Fez seus filhos ouvirem esses grandes compositores, para lhes incutir, desde cedo, o gosto por essa divina arte.

Ele, que foi quixotesco no bom sentido da palavra, ergueu uma belíssima estátua do cavaleiro da triste figura nos portais de sua realização máxima, o sanatório Meduna, que, agora, lamentavelmente, será desativado. Mas Dom Quixote, a cavalgar o Rocinante, com sua lança e seu escudo, talvez consiga defender essa obra meritória, que relevantes serviços prestou ao Estado.”

Do hospital Meduna pouca coisa restou. Sua memória, contudo, ficará indelével na história da medicina piauiense. Clidenor teve sempre ao seu lado, como administrador, incentivador e amigo, o irmão — também psiquiatra — Wilson Freitas Santos.

Seu antecessor imediato foi Pedro da Silva Ribeiro, nascido em Guadalupe, em 1930, e falecido em Brasília, em 2025. Ocupou importante cargo no Tribunal de Contas da União, após ter exercido relevantes funções públicas no Estado do Piauí, entre as quais a de diretor do Colégio Eurípides de Aguiar.

Com vocação incontrastável para a literatura, foi, sobretudo, cronista, contista e romancista. Destacou-se com os romances Vento Geral e A Divisa, nos quais narra aspectos interessantes e pitorescos do Piauí, mormente das pequenas cidades interioranas, com as suas singularidades e intrincadas intrigas políticas.

Nosso confrade Wilson Carvalho Gonçalves, meu particular e saudoso amigo, em seu notável livro Antologia da Academia Piauiense de Letras, transcreve o seguinte trecho do poeta e escritor H. Dobal, comentando Vento Geral, de Pedro da Silva Ribeiro:

“(...) Mas, sobretudo, existem as paixões que vão construindo a vida, a malha fina com que um pequeno mundo se tece e se transforma; tudo isso é bem recontado por Pedro Ribeiro, que mistura lembrança e imaginação numa forma tão viva e natural que põe em dúvida o seu gênero literário: será ficção ou memória? Será que temos de reescrever este livro e dar-lhe outro título: Aventuras de Pedro Belas-Artes no Vale do Engano?”

Posso dizer que tive a satisfação de conviver com ele na Casa de Lucídio Freitas. Embora residindo em Brasília, passava temporadas no Piauí, mormente em Teresina, quando frequentava nossa Academia com notável assiduidade, não obstante já em idade provecta. Em suas falas, discorria sobre temas instigantes, ilustrando-as com metáforas e histórias — quase parábolas — que denotavam seu talento de narrador e memorialista.

Dessa forma, posso afirmar que seus antecessores são — todos — ligados e bem ligados ao rio Parnaíba, assim como ele.

Marcelino Leal Barroso de Carvalho nasceu em 6 de abril de 1953, na linda e bucólica Amarante, quase uma deslumbrante pintura impressionista, que nos encanta por sua beleza exuberante. É quase uma ilha, emoldurada e ornada pelos rios Parnaíba, Canindé e Mulato — e pelas fraldas azuis das serras dacostianas. Seus saudosos e amantíssimos pais foram Melquíades Barroso de Carvalho e Maria de Lourdes Pereira Leal de Carvalho.

Sobre a adamantina beleza amarantina, não posso deixar de citar estes versos do excelso bardo Antônio Francisco da Costa e Silva, o nosso poeta maior e melhor:

“Ao longe, um panorama se descerra

Sob o límpido céu, ao sol radiante:

Entre os rios, as árvores e a serra,

Branqueja a casaria de Amarante.”

(Sob outros céus)

E estes outros, não menos belos:

“A minha terra é um céu, se há um céu sobre a terra;

É um céu sobre outro céu tão límpido e tão brando,

Que eterno sonho azul parece estar sonhando...”

(Amarante)

Em diferentes ocasiões — quando presidi a União Brasileira de Escritores do Piauí, quando exerci o cargo de juiz de Direito em Regeneração e, também, nesta tribuna — porfiei para que se trouxesse uma pequena parte dos restos mortais do poeta, a fim de ser encerrada num mausoléu-memorial em sua cidade natal, de modo a atender o pedido versificado do próprio Da Costa e Silva:

“Terra para se amar com o grande amor que eu tenho!

Terra onde tive o berço e de onde espero ainda

Sete palmos de gleba e os dois braços de um lenho!”

(Amarante)

Fui vencido nessa luta, que se revelou inglória. As autoridades governamentais e culturais nunca lhe deram a menor importância, de modo que este cavaleiro andante démodé ensarilhou suas armas.

Não irei listar todos os altos títulos e cargos de nosso neófito imortal, uma vez que são muitos. Elencarei, todavia, os principais:

É graduado em Direito e Filosofia (UFPI). Especialista em Bioética e Direitos Humanos, pelo Instituto Camillo Filho, do qual foi sócio-fundador - juntamente com Charles Camillo Carvalho da Silveira e Átila Freitas Lira –, professor, diretor acadêmico e diretor-geral. Na Universidade Federal do Piauí, foi professor, coordenador do curso de Direito, chefe do Departamento de Ciências Jurídicas, diretor do Centro de Ciências Humanas e Letras, pró-reitor de Extensão e assessor especial do reitor. Foi ainda conselheiro federal da OAB.

Presidiu a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC) e atualmente preside a Academia de Letras, Artes e Cultura de Amarante (ALEAMA). Foi auditor-fiscal da Fazenda Estadual e procurador-geral do Município de Teresina. É membro de várias entidades culturais. Tive a honra de tê-lo como brilhante e dedicado conselheiro, no tempo em que fui presidente do Conselho Editorial da Fundação Cultural Monsenhor Chaves.

Mas, para gáudio e honra minha, foi, sobretudo, meu mestre na Universidade Federal do Piauí, nos tempos em que lá pontificavam notáveis lentes, como Celso Barros Coelho, Wilson Andrade Brandão, Balduíno Barbosa de Deus, José de Ribamar Freitas, Paulo Freitas, Manfredi Mendes de Cerqueira, José Lopes dos Santos, Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Ommati, Adélman Barros Villa, Charles da Silveira, mais tarde operoso reitor da UFPI, Valdeci Cavalcante, Geraldo Majella Carvalho, Benjamim do Rego Monteiro Neto e Rosmarino do Rego Monteiro — este último decorava o nome completo dos alunos, associando o seu biótipo a uma determinada ave. Muitos desses mestres se tornaram membros deste sodalício.

Como homenagem e evocação ao velho latinista e erudito, quero relatar um episódio anedótico de que fomos protagonistas eu e o professor Ribamar Freitas.

Certa noite, em meados dos anos oitenta, adentrei a sala de aula um pouco atrasado, quando ele dissertava sobre a importância de se lerem os clássicos, que se quedavam em completo esquecimento. De forma retórica e enfática, perguntou:

— “Quem, quem de vocês sabe quem foi Adamastor?”

Ainda no movimento de me sentar, levantei o braço direito e respondi:

— “Adamastor era um gigante de Os Lusíadas, do poeta épico Luís Vaz de Camões, que bradou contra a ousadia portuguesa:

Antes em vossas naus vereis cada ano,

Se é verdade o que meu juízo alcança,

Naufrágios, perdições de toda sorte,

Que o menor mal de todos seja a morte.”

 

O mestre ficou feliz e admirado com a minha resposta, porém creio que tenha ficado algo contrafeito por eu haver destruído o mote de sua peroração. Certamente, hoje, muitos responderiam: “É Adamastor Pitaco, palhaço televisivo.”

Peço licença ao professor Marcelino para uma outra breve evocação — desta feita, ao mestre Balduíno Barbosa de Deus, através de uma história que poderá servir aos que pretendem exercer o magistério.

Balduíno estava prestes a assumir o cargo de secretário de Estado da Educação quando foi abordado por nosso confrade Carlos Evandro Martins Eulálio, grande crítico de literatura e latinista, que lhe pediu conselho sobre a melhor metodologia para lecionar a disciplina Literatura Brasileira. O mestre, com seu humor característico, respondeu:

— “Difícil não é preparar aula, mas dar aula sem preparar.”

Contei esse fato para dizer que Marcelino era um professor estudioso, competente e preparado — e suponho que fosse competente e preparado exatamente porque preparava suas aulas; e de vasto conhecimento jurídico, porque era estudioso.

Amigo dos seus alunos, cordato, tinha deles o respeito porque sabia exercer sua autoridade de mestre sem autoritarismo e sem excesso de exação. Com isso, mantinha a ordem com democracia e cordialidade. Nunca ouvi nenhum comentário que pudesse macular o brilho de seu desempenho e o exercício da cátedra, tampouco de suas funções de coordenação e chefia. Portanto, sua carreira na UFPI foi brilhante e merecedora das maiores louvações.

Após a aposentadoria, Marcelino passou a trabalhar ainda mais, e com muito maior afinco, nas áreas culturais. Nessas atividades gasta tempo, esforço e cabedais.

Integra a Associação de Amigos da Orquestra Sinfônica de Teresina. Reativou a Festa do Divino em Amarante, que de 1940 a 1984 teve a liderança de sua tia Josefa Pereira de Araújo (Mãe Dedé). Adquiriu um casarão solarengo na bela avenida Desembargador Amaral e nele instalou o Museu do Divino, por ele fundado, com belas peças sacras de escultura, talhas e pinturas, além de oratórios e retábulos.

Tem o gosto de diversas — senão de todas — as manifestações artísticas, sobretudo artes plásticas, música e literatura.

Na literatura, escreveu pequenos ensaios e artigos publicados em diversos periódicos, entre os quais as revistas Direito Hoje e Scientia et Spes, do ICF.

Desde muito jovem primou por escrever com correção, cultor e estudioso da Língua Portuguesa, a “última flor do Lácio, inculta e bela”, no dizer de Olavo Bilac. Sua linguagem é sempre escorreita, castiça, límpida, fluente como um manso regato, sem catadupas e corredeiras, e sem as pirotecnias verbais de um Vieira. Antes, mais se assemelha ao estilo clássico de um Pe. Bernardes ou de um Machado de Assis, pela precisão, clareza e objetividade, sem desnecessários preciosismos ou inversões frasais. Prima sempre pela correção gramatical e ortográfica; nisso é rigoroso e não faz concessões.

Foi com esse estilo e com essas virtudes de linguagem que ele vinha escrevendo, há alguns anos, em meticuloso e detalhista trabalho de pesquisa, o notável livro A Igreja Matriz de Amarante, que publicou no corrente ano. Demonstra nele profundo conhecimento arquitetônico, urbanístico e paisagístico, bem como da história da cidade.

Traça um notável panorama da memória histórica e geopolítica da encantadora e ainda bucólica urbe. Desvenda os antecedentes da criação da vila e da freguesia de Amarante e relata episódios e fatos pouco conhecidos de sua história e desenvolvimento urbanístico.

Discorre com segurança sobre a história da igreja desde seus primórdios, revelando impressionante conhecimento de sua arquitetura e decoração. Aborda as transformações exteriores, as modificações e ampliações, principalmente nos seguintes aspectos: conclusão da obra, primeira reforma, construção do adro, ampliação da altura das torres e “reconstituição parcial da fachada”, apontando as datas e as circunstâncias em que essas obras foram realizadas.

Invocando São Raimundo de Penhaforte, pede a benevolência do leitor para com o seu livro. Mas ele não precisa de benevolência: fez um livro excelente, em primoroso estilo. Por conseguinte, merece tão-somente todos os encômios e aplausos.

Mesmo antes de reavivar, em formato moderno, a Festa do Divino, em meados dos anos 1980, e de fundar o Museu do Divino (2007), o novel confrade Marcelino já incentivava, apoiava e realizava eventos culturais. Sempre teve o apoio e o estímulo do irmão Melquíades Barroso de Carvalho Filho, músico multi-instrumentista, cantor litúrgico e profano, e regente de coral.

Eu mesmo, por ocasião de meu cinquentenário, tive um livro lançado por ele no casarão que pertenceu ao juiz José Eudóxio Arcoverde Vieira e a dona Mariquesa Soares da Fonseca, hoje pertencente a dona Mary Soares Vieira. Foi uma festa literária memoranda, linda, muito bem- organizada, da qual jamais esquecerei.

Quase duas décadas depois, com seu integral apoio, pronunciei um discurso comemorativo do centenário do ilustre poeta e escritor amarantino Clóvis Moura, no auditório do Museu das Letras – Casa Odilon Nunes.

Em 2013, quando recebi o Título de Cidadão de Amarante, Marcelino estava presente à solenidade e pronunciou belo discurso que me comoveu — a mim, a meus pais, à minha esposa e a meus filhos. Estavam presentes, entre outras ilustres pessoas, os amarantinos Homero Castelo Branco, escritor, e o poeta Virgílio Queiroz, que também proferiram enaltecedoras palavras. Fizeram parte da solenidade o autor da proposição do título, vereador Inácio Pinto de Moura, Diego Teixeira, presidente da Câmara Municipal, e o prefeito Luís Neto Alves de Sousa.

Dias depois, Homero colocou Amarante dentro de minha casa, através de uma linda pintura a óleo — da autoria de Abinabel Cunha, de nome artístico Di Kuka — em que a matriz de São Gonçalo, em sua arquitetura esplêndida, luminosa, aparece emoldurada pela deslumbrante beleza das árvores, das serras azuis de Da Costa e Silva, das águas do Parnaíba — o velho monge de longas e espumosas barbas — e das pequenas chalanas.

Ao falar de meu amigo e professor Marcelino Leal Barroso de Carvalho, de longo e sinuoso nome, como o Parnaíba, não poderia deixar de falar de sua Amarante, que tanto me encanta. Por isso, peço-lhe vênia para citar um pequeno trecho de minha crônica Recuerdos de Amarante:

“Numa tarde agradável de um tempo que não sei fixar no calendário comum, mas apenas no do espírito, da emoção e da saudade, encontrava-me com o poeta Virgílio Queiroz, no cais do Velho Monge, bebericando umas pingas com água tônica, quando inesperadamente, como um sortilégio, veio uma ventania que sacudiu as faveiras, debaixo das quais estávamos. As favas secas começaram a emitir um som de chocalhos e de maracás. Foi como se aquele som evocasse uma época muito antiga e ancestral, em que os índios perlustravam aquelas terras, aquelas serras azuis encantadas e perlongavam o curso sinuoso do Parnaíba.”

Quando realizei o meu documentário Amar Amarante Sempre, editado pelo poeta e amigo Claucio Ciarlini, disponível no YouTube, dei bom destaque ao Museu do Divino e a várias fotografias de Ana Cândida, filha de Marcelino. No seu início, toco uma campainha antiga, de som lindo, argentino, quase uma música angelical, vibrante, ressoante, que ainda agora parece ecoar nestes meus versos do poema Amarante, com os quais encerro este discurso de saudação e boas-vindas — e com os quais recebo e homenageio o nosso confrade Marcelino Leal Barroso de Carvalho:

amarante

perante ti

imperante

o vento verdeja agreste nos ciprestes

rumoreja aguado nos aguapés

sacoleja sem leste nem oeste

a copa fagueira das faveiras

tuas tardes tardas dolentes amaras

      abres das janelas

      debruçadas em melancolias

  e alicias e (re)velas

as moças nas modorras mormacentas macilentas

em que delicias cilicias e acalentas...                  

(*) Discurso pronunciado em 26 de novembro de 2025 por José Elmar de Mélo Carvalho, na Academia Piauiense de Letras, durante a solenidade de posse do novo acadêmico Marcelino Leal Barroso de Carvalho.

domingo, 23 de novembro de 2025

EGOCENTRISMO

Criação: IA Gemini


EGOCENTRISMO


Elmar Carvalho

 

Eu sou um homem,

diante do qual,

curvo como um

servo capacho,

eu tiro meu chapéu,

que nem sequer tenho.

Eu vendo minha

imagem refletida

no espelho não mágico

de meu quarto,

curvo-me a mim mesmo,

como um eunuco do harém

perante o sultão.

E aquela imagem,

curva ante mim,

é minha maior homenagem

que me presto.

Eu me aproximo

do espelho,

até que minha imagem egocêntrica

seja projetada no infinito. 

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Crônica à guisa de prefácio


Prof. Lima Couto em charge de Fernando di Castro


Crônica à guisa de prefácio


Elmar Carvalho


Conheci Paulo Couto em março de 1977, quando iniciávamos o curso de Administração de Empresas no Campus Ministro Reis Velloso (UFPI – Parnaíba). Esse campus, então, era pequeno e bonito, situado no final da Avenida São Sebastião, que hoje se prolonga para muito além.

No início do curso, como eu ainda não tivesse transporte próprio, peguei carona algumas vezes com o Paulo Couto, que usava o fusca branco de seu pai, o ilustre e erudito professor Lima Couto. Desse modo, fui várias vezes a sua casa, um sobrado que ficava no Bairro Nova Parnaíba, perto da Avenida Capitão Claro, em local próximo ao vetusto Cemitério da Igualdade. Várias vezes conversei com o velho mestre Lima Couto, sobre diversos assuntos, mas sobretudo sobre educação, literatura e poesia.

Fiquei sabendo que ele admirava Abgar Renault e o poeta norte-americano Longfellow, do qual fizera tradução. Também era admirador do poeta e místico indiano Tagore. O mestre falava de modo cadenciado, rítmico e tinha boa dicção, com gestos que pareciam reger a musicalidade de sua fala, e às vezes se expandia em seus entusiasmos, quando recitava algum poema. 

Para meu gáudio gostava do que eu publicava nessa época, mormente no jornal Folha do Litoral, cujos arquivos infelizmente se perderam, e com isso se perdendo muito da memória política, administrativa e literária de Parnaíba, o que muito lamento. Às vezes a nossa conversa se dava no belo jardim da casa, debaixo do caramanchão, em que eu sentia o agradável cheiro de rosas, lírios e outras flores. Guardo boas e emocionadas lembranças desse competente e benemérito educador. 

Na sala de aula, o culto magistrado Walter Miranda de Carvalho, barrense como meu pai, fazia, algumas vezes, referência a esses poemas que eu publicava no Folha do Litoral, e dessa forma o Paulo e os demais colegas tomaram conhecimento dessa minha vertente literária. Neste ponto, é interessante que eu transcreva o que disse o próprio Paulo Couto, em seu livro Poesias e Crônicas (2020):

“Nos anos 70, quando iniciei o Curso de Administração de Empresas na UFPI, Campus Reis Veloso, tive um colega de turma chamado Elmar Carvalho. Tenho boas lembranças de todos os colegas, mas com Elmar foi diferente. Ele era poeta e numa das muitas conversas que tivemos, ele ficou sabendo que eu tinha escrito algumas poesias. O Elmar me levou na gráfica do Jornal Norte do Piauí e lá eu conheci o proprietário Mário Meireles. Minha primeira poesia publicada foi nesse jornal.”

A partir dessa época, o Paulo passou a publicar suas crônicas e poemas no jornal Norte do Piauí, e, um pouco depois, no Folha do Litoral, onde passou a ter coluna própria, denominada Cosmo, em que publicava seus textos em prosa e versos. O jornal era semanal ou hebdomadário, como alguns gostavam de dizer, com alguma pose e certa afetação.

No final dos anos 1970, eu e o Paulo participamos de alguns eventos e publicações literárias. Marcamos presença nas coletâneas Poesias do Campus, Salada Seleta, Galopando e Em Três Tempos, juntamente com outros poetas, entre os quais posso citar Alcenor Candeira Filho, V. de Araújo, Kenard Kruel, Adrião José Neto, José Luiz de Carvalho, Ednólia Fontenele, Josemar Neres, Rubervam Du Nascimento e Paulo Machado. 

Contudo, no começo dos anos 1980, o Paulo e eu fomos aprovados em concursos públicos, ele para o Banco do Brasil e eu para fiscal da Sunab, razão pela qual ele foi residir em Elesbão Veloso e eu em Teresina. Por esses motivos, nos perdemos de vista, e só nos encontramos muito esporadicamente, cada um a enfrentar os seus percalços, que a vida nos vai ofertando, sem que os procuremos, e lutando pela criação e educação de nossos filhos.

Algumas anos depois, já aposentados, e tendo o Paulo voltado a residir em Parnaíba, voltamos a nos encontrar pessoalmente ou através das facilidades (virtuais) da internet, mormente proporcionadas pelo WhatsApp.

Ele voltou a se interessar por literatura e empreendeu alguns projetos literários e culturais, sobre os quais falarei de forma resumida: criou o Clube dos Poetas Mortais, que mantém um festejado grupo de WhatsApp, promove eventos culturais e de congraçamento, realiza saraus e lives etc.; e publicou os livros Poesias e Crônicas (2020) e Textos em Fatos e Fotos (2022), em que também coligiu textos de Vitor de Athayde Couto e José de Lima Couto. 

E agora nos surpreende com este novo livro, titulado Anos 70 na Folha do Litoral. Nele reúne crônicas, artigos, entrevistas e poemas, alguns publicados no Norte do Piauí e, a maioria, no Folha do Litoral, em que manteve a coluna Cosmo.

Suas crônicas e artigos são curtos, concisos, claros e objetivos, como recomendam os melhores manuais de redação, e sem torcicolos, pulutricas e firulas literárias. Refletem os questionamentos impostos pela condição humana, referem os fatos da época, relatam acontecimentos ou histórias interessantes, comentam filmes, livros parnaibanos, certos costumes e brincadeiras da época, bem como as principais notícias e fatos da cidade, do Piauí e do mundo. 

Também relatam a movimentação cultural de jovens intelectuais e tecem comentários sobre os jornais alternativos da cidade, entre os quais o Inovação (fundado por Reginaldo Costa e Franzé Ribeiro) e o Querela (editado pelo Fernando Ferraz). Algumas de suas crônicas têm um viés memorialístico, e abordam episódios de sua infância e adolescência. A obra enfeixa ainda algumas importantes entrevistas, umas das quais com o poeta e escritor Alcenor Candeira Filho. Enfim, os textos tratam de múltiplos e importantes assuntos.

Seus poemas têm a beleza da simplicidade, e destilam sentimentos e emoções, todavia sem nunca descambar para a pieguice. Alguns criticam o que deve ser criticado e louvam o que deve ser louvado, como no dizer de Torquato Neto, uma de suas admirações literárias. Neles sentimos o pulsar da vida, sobretudo o amor que tudo permeia e que tudo deve nortear. Mas também se referem às frustrações, às injustiças, que sempre nos atingem, ainda que indiretamente. Outros são poemas que nos instigam a pensar. E outros nos comovem, pelo que têm de pungente, humano e lírico.

Todos os textos foram publicados nos anos de 1977, 1978 e 1979 nos jornais Norte do Piauí e, sobretudo, Folha do Litoral, em sua coluna Cosmo. O livro trata de tudo, versa (quase) todos os temas.   

Quem compulsar com atenção suas páginas vai conhecer muito da Parnaíba dos anos 1970, mormente nos aspectos de sua história social, administrativa, cultural e literária, quando Parnaíba se reinventava e se preparava para superar os estertores do extrativismo.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

AS “BRAVURAS” OU BRAVATAS DE TEIXEIRA SANTOS





AS “BRAVURAS” OU BRAVATAS DE TEIXEIRA SANTOS

 

Elmar Carvalho

 

Três ou mais anos atrás, José Silva Teixeira Filho, gerente de Operações da ECT no Estado do Piauí, ofereceu-me, gentilmente, o livro Os Correios, sua Gente e Eu, de autoria de Guttemberg de Oliveira Sousa Filho, que por muitos anos trabalhou no antigo Departamento de Correios e Telégrafos – Diretoria Regional do Piauí –, depois transformado em Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Com dedicação, esforço e estudo, alcançou o cargo de técnico postal, após ter sido carteiro e chefe dessa operosa categoria. Tendo trabalhado na empresa, em Teresina, de setembro de 1975 a março de 1977, conheci muitas das pessoas que ele cita na obra; de muitas outras, ouvi falar.

Em linguagem fluente, clara, objetiva e sem firulas estilísticas, relata episódios interessantes de que participou, presenciou ou ouviu falar ao longo das várias décadas em que mourejou nessa repartição postal e telegráfica. Alguns de seus relatos têm caráter autobiográfico ou memorialístico; outros são narrativas de fatos engraçados ou anedóticos, dos quais foi testemunha ou mesmo protagonista. Contudo, teve o cuidado de evitar acontecimentos que pudessem magoar a suscetibilidade ou a honra de alguém.

Em suas histórias, revela talento para criar suspense e, dessa forma, prender a atenção do leitor até o desfecho, quase sempre surpreendente e humorístico. Nota-se também sua verve e habilidade em provocar o riso, pela maneira como urde a narrativa.

Os capítulos de sua obra, porém, não tratam apenas de “causos” jocosos ou anedóticos. Alguns são permeados pelos percalços e vicissitudes da vida; outros versam fatos notáveis da história do Piauí, sempre com certo sabor de crônica, como o que abordarei neste texto e como aquele em que discorre sobre a fazenda dos jesuítas em Santo Inácio do Piauí. Narra também um episódio anedótico em que foi protagonista a figura importante e um tanto imponente de Lucílio Dantas Avelino, sempre vestido à moda antiga.

Entre os fatos de que foi protagonista ou participante, houve um em que ele teria permitido que o advogado Alarico da Cunha Júnior, diretor da SUDENE no Piauí, adentrasse uma área destinada exclusivamente a funcionários. Guttemberg explicou ao responsável por resolver o problema que não autorizara a entrada do Dr. Alarico e que sequer o vira penetrar na área em questão.

O caso foi dado como solucionado. Contudo, no expediente da tarde, ele foi abordado por Antônio Teixeira Santos, chefe do Tráfego Postal (CHP), que lhe disse que, em outra oportunidade, mandasse sair quem quer que entrasse em área proibida. Guttemberg perguntou se deveria fazer sair até mesmo o governador do Estado, ao que Teixeira, de forma peremptória, respondeu:

“Até o Presidente da República. Aqui, no seu trabalho, a autoridade dele é menor que a sua.”

O nosso autor pediu desculpa pela sinceridade, mas afirmou não acreditar na “conversa bonita”, nem mesmo para lhe ser agradável. Confessou que não teria coragem de “cutucar o cão com vara curta”, como diz o ditado popular. Aproveitou para lhe contar a fábula dos ratos e do gato, em que um dos ratos teria de colocar um chocalho no felino para alertar os demais. Um velho e experiente rato, então, pergunta: “Mas quem põe o guiso no gato?”

Teixeira Santos, com muita ênfase e voz potente, retrucou:

“Eu cutuco o Cão com vara curta, eu ponho o chocalho no gato!”

Guttemberg retrucou que, se o Presidente da República, o governador do Estado, o presidente do Tribunal de Justiça, um ministro de Estado ou outra autoridade desse quilate entrasse em sua seção, chamaria Teixeira para que ele convidasse a autoridade a retirar-se. Teixeira não “amarelou” e afirmou que ficava à sua disposição.

Para deixar tudo às claras, o autor narrou um fato acontecido em 1937, na época da instauração do Estado Novo, quando Getúlio Vargas passou a governar com poderes ditatoriais. O interventor federal Leônidas Melo solicitou ao diretor regional dos Correios e Telégrafos que seus telegramas lhe fossem entregues pessoalmente. O diretor recomendou aos estafetas que somente o governador os recebesse, mediante assinatura legível.

Recorri à regional da ECT no Piauí para saber o nome desse diretor (*), mas seu nome não foi descoberto. Em Trechos do Meu Caminho (2ª edição, p. 275.), seu excelente livro de memórias, Leônidas lhe faz referência elogiosa, mas sem lhe mencionar o nome: “Eu mantinha íntimas relações com o Diretor dos Telégrafos. Era homem de compostura e responsabilidade, pessoa merecedora de inteira confiança.”

Algum tempo depois, numa tarde de sábado, achando-se no Palácio de Karnak o interventor federal, várias autoridades e o diretor dos Correios e Telégrafos, um estafeta foi entregar um telegrama destinado a Leônidas. O chefe da Casa Militar disse que poderia recebê-lo, mas o mensageiro replicou que só o entregaria ao destinatário em pessoa.

O coronel Torquato Pereira de Araújo conduziu o estafeta até Leônidas, que rubricou o recibo. O mensageiro, porém, não lhe entregou o telegrama, alegando que ele não “assinara direito”, apenas rubricara. O governante sorriu e assinou por extenso, de forma legível.

O diretor pediu desculpas ao interventor, dizendo que o carteiro era ignorante e grosseiro, e que seria severamente punido. Leônidas, porém, disse gostar de sua atitude, pois cumprira fielmente sua missão.

Teixeira Santos, que ouvira atentamente a história, exclamou:

“Gostei do mensageiro. Cabra macho! Não sou diretor e não vou pedir desculpas a nenhuma autoridade em caso semelhante. Se o senhor João Belchior Marques Goulart, atual Presidente da República, penetrar nesta seção sem a devida autorização, ponha-o fora ou me chame, que eu o porei.”

Pelo visto, ou ouvido, Antônio Teixeira Santos era também um cabra macho — tanto quanto, ou mais do que, o carteiro — ou seria apenas um grande falastrão e fanfarrão.

Cursava a Faculdade de Direito e cultivava amizade com advogados e outros operadores do Direito, inclusive magistrados.

Por essa época, início dos anos 1960, era figura proeminente de Teresina o desembargador Robert Wall de Carvalho, filho do Des. Cromwell Barbosa de Carvalho e de Virgínia Wall de Carvalho, professor da Faculdade de Direito, membro da Academia Piauiense de Letras, presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, e que, na década seguinte, viria a ser o primeiro reitor da Universidade Federal do Piauí.

Um carteiro comunicou ao chefe Guttemberg que essa alta autoridade adentrara a Seção de Carteiros à procura de uma carta registrada que já deveria ter chegado. O nosso bravo autor disse ao carteiro para informar ao desembargador que iria encontrá-lo em breve para resolver o problema. Em seguida, foi procurar Teixeira Santos, chefe do Tráfego Postal, e lhe disse:

“O presidente João Belchior Marques Goulart invadiu a Seção dos Carteiros e está sentado à minha mesa. Vim chamá-lo para que o senhor o ponha fora.”

Deixemos que ele mesmo conte o que se passou:

“Levantou-se a queima-roupa e foi dizendo: ‘Sai agora mesmo!’ Seguimos, e, ao avistar o invasor no fundo da sala, acenou os dois braços como um gavião quando quer pegar a sua vítima. Eu, pasmado ao ver aquela cena nunca pensada, disse comigo mesmo: ‘Valha-me Deus, o homem enlouqueceu! Vai partir para a violência, parece que vai arrastá-lo porta afora.’”

Parecia uma cena dantesca, como diria o condoreiro Antônio Frederico de Castro Alves. Guttemberg chegou a esperar que Teixeira Santos trucidasse o desembargador Robert Wall de Carvalho. Criou-se enorme suspense. Deixemos que ele próprio finalize o que, então, de forma surpreendente, se passou:

“Abriu os braços para fazer uma saudação calorosa e foi dizendo: ‘Que honra tê-lo aqui em nosso meio! Em que lhe posso ser útil?’ E me apresentou: ‘Guttemberg, chefe de turma, incumbido da entrega da correspondência’. Após os cumprimentos, o desembargador voltou-se para mim com aquela voz grossa e austera: ‘Seu descobridor da imprensa, descubra o meu registrado nº (...), pois preciso tê-lo em mãos com urgência.’”

Feitas as devidas buscas, o autor descobriu que o registrado fora entregue à Academia Piauiense de Letras, da qual o magistrado era membro.

O nosso “Robespierre postal” acompanhou o desembargador Robert Wall de Carvalho, entre mesuras e reverências, até o automóvel oficial. Quando retornou, sacudindo a cabeça e sorrindo, ainda transmitiu esta lição a Guttemberg:

“Ninguém bota um bichão desses para fora; ninguém o convida a retirar-se. Aquele caso do diretor da SUDENE foi frescura da filha do Ferreira. Não precisava aquela guerra por um caso tão fútil. Criticar é muito fácil; realizar é que é o problema.”

Dada a lição, tocou mansamente o ombro de Guttemberg de Oliveira Sousa Filho e se retirou.

Quanto ao livro Os Correios, sua Gente e Eu, ele está a reclamar uma nova e boa edição, após 27 anos da primeira — seja patrocinada pelos descendentes do autor, seja pela ECT/Piauí. 

(*) Segundo pesquisa realizada hoje (19/11/2025), com o auxílio do ChatGPT, o nome mais provável para o cargo de diretor (ou administrador) dos Correios e Telégrafos no Piauí, no período mencionado, é Antônio Vieira de Carvalho.