ANITA
Elmar Carvalho
Parece um floco ambulante de nuvem ou de algodão. É o mimo predileto da casa. Pacote vivo de pura maciez.
Seu caminhar é sinuoso, coleante, elegante. Uma elegância discreta e natural. Caminha como se desfilasse, mas sem se preocupar com os olhares de admiração. Uma verdadeira micro top model, por mais paradoxal que seja a frase.
Quando é vista na rua, desperta olhares embevecidos. Mas, desprovida de vaidade, sequer percebe essa varredura visual.
Até para comer, é toda cheia de graça. Concentra-se no que está fazendo, e os rictos que faz para morder são um ritual de beleza.
Entre vários que havia, veio para nós como uma dádiva. Parece que nos havia sido feita de encomenda, tal a afeição que despertou em nossa família. E ela corresponde na mesma intensidade a esse sentimento. Adotou-nos e foi por nós adotada, passando a ser parte integrante da família.
Durante certo tempo, curtiu uma micose que lhe fez cair o pelo do pescoço. Feria-se ao se coçar. Por essa razão, pusemos um prato adaptado em seu pescoço, para que não se ferisse. Pensaram que Anita estava a lançar moda, porque o artefato realçava a beleza de sua já formosa cabeça.
Certa vez, minha mulher mandou desinsetizar a casa. Anita inquieta e buliçosa e curiosa, pois é muito inteligente, terminou lambendo um pouco do veneno que não fora retirado na lavagem. Ficou muito doente, fraquinha, como se fosse morrer. Eu estava distante, quando soube da notícia pelo telefone. Fiquei muito triste e preocupado. Deus, contudo, lhe devolveu a saúde e o vigor, porque sabia que precisávamos mais dela do que ela de nós.
Mas ela tem as suas manhas e manias. Como uma prima-dona tem os seus chiliques e caprichos. Às vezes, é muito voluntariosa, e só quer as coisas do seu jeito. Nada podemos fazer. Seja feita a sua vontade. Supinamente inteligente e com certa dose de “cascão”, percebe quando vai ser levada para o banho, passando a se esconder nos lugares mais recônditos e inusitados. Não vai, vai arrastada, pode-se dizer. Adora ser coçada na barriga. Quando paramos de coçá-la, com a patinha puxa nossa mão, para que continuemos a operação coça-coça. Da raça toy, faz jus ao nome: é literalmente o nosso brinquedo preferido.
Tem linguagem própria e bem definida, para os seus diferentes caprichos e desejos. Para entrar num quarto, arranha a porta. Para sair, fica postada diante da porta. Se demoramos a abri-la, começa a grunhir, como se pedisse "por favor". Se ainda assim não abrimos, late com o verbo no imperativo, dando uma ordem incontrastável, um verdadeiro ultimatum. Temos que obedecer. Já me considero o seu porteiro número um. Se deseja ir para cima da cama, late de um jeito. Se quer descer, late, digo, pede de outra forma, em outro tom e timbre. Porém, se nos alongamos em atendê-la, o latido torna-se imperioso, estridente e irrecusável.
Como a vida tem os seus contrastes e confrontos, havia em nossa casa uma cadela grande, uma fiel guardiã da residência. Não era mimada como Anita o era. Vivia no quintal. Era brava, sem bravata. Era bela, em sua beleza graúda e forte. Como eu trabalhasse em outra cidade, ela me estranhava, de modo que eu nunca a afaguei e nunca tive o prazer de sua amizade e fidelidade. Esse nobre animal contraiu calazar, pelo que me senti no dever de determinar o seu sacrifício. Também o fiz por desencargo de consciência, temendo o contágio da vizinhança. Não sei se nesse dever e nesse ato de consciência não haveria também certa dose de pusilanimidade e de utilização da lei do menor esforço e trabalho. Soube que, durante certo período, o órgão local encarregado do sacrifício de animais utilizava, por economia e rapidez, o método brutal de aplicação de choque elétrico. Para minimizar o meu remorso, levei-a para uma clínica particular e paguei a sua morte suave, através de drogas. Levaram-na para o local em que ficaria segregada até a “morte misericordiosa”. O veterinário me perguntou se eu gostaria de vê-la pela última vez. Disse que sim. Chegando até o cubículo em que ela se encontrava, vi os seus olhos tristes, os olhos tristonhos de quem se sentia abandonada pelos entes que ela mais amava e que deveriam protegê-la, qual se adivinhasse o que lhe aguardava e como se considerasse aquilo um ato de covardia e ingratidão. Mas, ao me enxergar, olhou-me altivamente, latiu com força, como se me estivesse mandando sair, como se dissesse: Recuso a tua piedade hipócrita e pusilânime. Talvez tenha feito isso por piedade, para que o meu remorso fosse mitigado. Voltei-lhe as costas, e saí cabisbaixo e envergonhado. Eu é que saía com o “rabo entre as pernas”. Senti-me um trapo, ante a nobreza daquela cachorra. Era um bravo, fiel e belo animal. Espero que ela tenha uma alma e esteja no paraíso dos animais. Chamava-se Kika.
Após esse parêntese de homenagem a Kika, retomo a apologia de Anita. Através do amor dessa mimosa cadelinha, passei a gostar dos outros animais e a tentar interagir com eles. Não gostava dos cães vadios, mas, por causa dela, passei a lamentar a sorte desses animais. Passei a mais admirar meu pai, ao vê-lo alimentando as aves que pousam em suas fruteiras e alguns vira-latas abandonados, que ficam a espreitá-lo, com os olhos esperançosos e pidões, do portão de sua casa.
Quando volto de viagem, Anita me vem receber, saltitante, elétrica, balançando o rabinho, em sinal de sua alegria, ou correndo em minha volta, galvanizada em pura vida e em puro regozijo. Quando está no colo de alguém, dá-me as patinhas, querendo o meu conchego.
Muitas vezes, quedo-me a admirar o seu formoso nariz de piche e a sua bela lingüinha de fita escarlate, no contraste artístico com a plumagem clara.
Em suas memórias, Humberto de Campos refere-se a uma mulher do povo, que andava acompanhada de um verdadeiro séqüito de cães, que formavam a sua guarda, como se ela fora uma espécie de Diana. Li que o grande Clóvis Beviláqua tinha amor aos animais, tanto que alguns passarinhos adejavam dentro de sua casa, pousando em seus móveis, talvez em sua biblioteca. Ouvi falar de um homem, que, ao falecer, teve o seu sepultamento acompanhado por um bando de aves, quiçá uma celestial homenagem a alguém que amara os passarinhos. Com Anita, repito, passei a respeitar e estimar as criaturas de Deus. Aliás, em Atos dos Apóstolos, consta que Pedro teve uma visão, em que um grande painel descia dos céus, com “toda sorte de quadrúpedes e bichos rastejantes da terra e aves do céu” estampados nele. Tendo esse apóstolo dito que não comeria os animais aviltados e impuros, foi repreendido por uma voz, para que não mais chamasse de impuros os seres feitos pela mão divina. Todos têm a sua beleza, todos têm a sua serventia e todos amam e querem continuar vivos. Amemo-los e deixemo-los vivos e em paz, para gáudio nosso e glória do Senhor.
Na pequenina Anita, contemplo a imensidão de sua beleza e bravura, aliás, bravura inversamente proporcional ao seu gracioso, porém, minúsculo porte. Relembro a lapidar, literalmente lapidar frase do imenso poeta Lord Byron, referente ao seu inesquecível cão: “Aqui jazem os restos mortais de um ser que possuiu a beleza sem vaidade, a força sem a insolência, o valor sem a ferocidade e todas as virtudes dos homens sem os seus vícios. Aqui estão os restos de um amigo. Eu não conheci mais nenhum, senão este que aqui repousa e dorme o sono eterno.”
Quando o divino Mozart foi sepultado, num dia cinzento, frio, encoberto por espessas névoas, fustigado, em certos momentos, por violenta borrasca de neve, ninguém acompanhou a entrega de seu corpo aos cuidados da mãe terra, salvo o coveiro. Exceto o coveiro, sim, e o seu devotado cãozinho branco, que o acompanhou, como amigo fiel que era, prestando-lhe a sua última e saudosa homenagem. E, talvez, tenha orvalhado o seu túmulo com lágrimas sentidas.
E ao lembrar os cães de Byron e de Mozart, sei que a centelha divina do amor sem jaça, que pulsava neles, também pulsa na alma de minha pequenina e graciosa Anita.
Conheci a Anita; ela me recebia e me aompanhava (junto ao Elmar, claro) latindo o tempo inteiro. Mesmo eu já lá no segundo andar da casa, escutava a Anita lá embaixo budejando por mais uns cinco minutos, dando a entender de que não tinha simpatizado com minha cara feia. Fico imaginando como aqueles latidos da irrequieta Anita, devem fazer uma falta danada.
ResponderExcluirCaro Netto,
ResponderExcluirFelizmente, a Anita ainda está vivinha da silva.
Quem morreu foi a cachorra Kika.
Tio Elmar eu me lembro bem, apesar de pequena, o vovô alimentando os cachorros de rua. Eu achava lindo.
ResponderExcluirMe lembro também uma vez que a Anita me mordeu...(risos). Morria de medo dela. Mas ela tinha muita graciosidade.
Amo muito os animais, e pretendo seguir carreira de bióloga.
Tenho um lindo cachorro, também poodle, muito amável, carinhoso, fofo....
Parabéns pelo seu blog tio, gostei muito.
Saudades.
Beijos, Joélia.