Elmar Carvalho
Meus ancestrais maternos nasceram em Piracuruca. De modo que, desde a minha infância, eu ouvia falar nessa terra de muita tradição e história. Também ouvia contar, em narrativas em que a história se misturava com lendas e mistérios, que ali existiam as Sete Cidades, onde pessoas haviam sido transformadas em pedra, como se por ali tivesse andado uma poderosa Medusa. Falavam de uma igreja de pedra, que fora erigida por causa de uma promessa dos irmãos Dantas. Eles haviam sido aprisionados por índios canibais, e prometeram a Nossa Senhora do Carmo que, se escapassem, ergueriam o majestoso templo. As lendas falavam que essas cidades de pedra seriam desencantadas, e que as pessoas petrificadas voltariam a ser de carne; que as carruagens e os habitantes voltariam a percorrer as ruas e veredas do sítio, liberto do feitiço ou maldição que lhe transformara em cidade morta. Dizem os doutos, que num tempo muito antigo, Sete Cidades foram o fundo de um oceano que então havia. Schwennhagen, que as pessoas simples chamavam de “chove n’ água”, afirmou, em seu livro, que ali estiveram os fenícios. Erich Von Daniken escreveu que elas foram visitadas por “deuses astronautas”. Também contam que esse parque teria um túnel que o ligaria a Pedra do Sal, no litoral parnaibano. O certo é que os índios deixaram suas marcas, através das inscrições rupestres, que ali são encontradas. De minha parte, acho que todo o encantamento e beleza, que a natureza produziu ao longo de milênios, possibilitaram o surgimento dessas lendas e mistificações, que mais contribuem para o fascínio desse sítio cheio de mistério e feitiço.
Em meados de 1975 fui morar em Parnaíba. Em nossa mudança, descansamos um pouco em velho sobrado, que tinha uma espécie de torre cilíndrica, a evocar pequeno castelo. Anos depois, quando fui residir em Teresina, passei várias vezes pelo centro histórico de Piracuruca, e sempre admirei as suas várias praças, a sua imponente matriz, os seus vetustos casarões e solares e os sobrados povoados de recordações, fantasmas e saudades de uma época que persiste em permanecer. Por uma decisão própria dos piracuruquenses, e não de iniciativa governamental, esses antigos prédios ainda se encontram relativamente bem preservados, ao contrário de outras cidades, em que esses monumentos arquitetônicos foram substituídos por “modernosos” e feios prédios comerciais.
Várias vezes estive em Sete Cidades, e sempre admirei as formações rochosas, esculpidas pelo tempo, pela chuva e pelo vento, em paciente trabalho de arte e encantamento. Contemplava, com muito gosto, a floresta, os regatos, as piscinas naturais e a cachoeira, a estender o “véu de noiva” de suas águas. Por demorados anos, alimentei o desejo de lhes dedicar um poema épico moderno, mas sempre adiava esse projeto, porque não me vinha nada que fosse digno dessas cidades encantadas. Somente me sobreveio esse ensejo quando, em janeiro de 1998, tomei posse de meu cargo de juiz nessa Comarca de Piracuruca, em curta temporada, de menos de um mês, como auxiliar do magistrado titular, Dr. Dioclécio Sousa. Mandei fazer um cartaz da primeira parte do poema, ilustrado pelo grande João de Deus Netto, e o divulguei em pequena e breve solenidade no fórum, em que estiveram presentes o padre Oney Braga e o intelectual Valdemar Meneses, se não me falha a memória. Sob o impacto da satisfação de ter escrito esses versos, mandei uma carta ao meu amigo General João Evangelista Mendes da Rocha, escritor e herói da guerra contra o nazifascismo, com cópia do poema, em primeira mão. Esse saudoso amigo escreveu uma crônica sobre o meu texto e o publicou num de seus livros. Dias depois, escrevi-lhe outra missiva, em forma de crônica, que agora transcrevo, parcialmente:
“Estive em sua bucólica e simpática Piracuruca, de muita glória e tradição, hospedado nas proximidades da velha estação ferroviária, onde os trens não mais passam, onde só passam os longos comboios de saudade e solidão.
Acordei cedo e resolvi olhar a linha férrea. Era uma manhã de densas névoas. Os frondosos oitis se esvaíam, embranquecidos, no meio das brumas, como em certas pinturas impressionistas. Ao longe, na curva, a estrada férrea se dissolvia na neblina, despertando a imaginação para longas viagens no tempo e no espaço, feitas de pura emoção. O bairro sossegado mais parecia uma aldeia, em que só faltavam os repiques saudosos de um sino e o canto vibrante e melancólico de um galo, ambos anunciando e saudando o alvorecer.
De longe eu contemplava a pequena estação, de longa história, pois uma inscrição em suas paredes assinalava a sua construção como sendo de 1922. E eu lamentava que ao invés do progresso, com locomotivas mais ágeis e confortáveis, a velha ferrovia estivesse desativada, em completo abandono e desperdício.
O frio leve e gostoso dessa madrugada de muito sentimento e quietude era por vezes avivado pela carícia suave de uma quase imperceptível brisa, que perpassava como um leve toque sobrenatural, em que nos sentimos envolver pela paz e proteção do Onipotente, em verdadeira sensação de êxtase e beatitude.
E como não poderia deixar de ser, lembrei-me do amigo, um dos mais ilustres e dedicados filhos de Piracuruca, sempre fidalgo nos gestos e no trato, e sempre em prontidão, na defesa dos interesses maiores da pátria, do Piauí e de sua cidade natal. É que a sua condição de militar, e de militar herói da guerra contra o nazifascismo, nunca o impediu de ser um perfeito cavalheiro e cidadão sensível e preocupado com a justiça social, com os desmandos administrativos, com a sorte dos miseráveis e com os valores artísticos e culturais de seu Estado natal.
O senhor tem, com muita propriedade e argúcia, analisado em seus artigos e crônicas as mazelas que afligem o povo brasileiro, sempre com um elevado senso de justiça, e invariavelmente apontando sugestões e alternativas.
Embora não seja propriamente um crítico literário, em sentido estrito, todavia pela sua capacidade de análise e observação, embasada em larga cultura humanística e em profunda sensibilidade e empatia para com a arte literária, tem produzido comentários críticos com muita propriedade e pertinência, e desvelado ângulos e aspectos que os afoitos, apressados e superficiais nunca vislumbrariam.
Quando estive em sua Piracuruca, por força de minha nova função, como forma de homenageá-lo, e talvez movido pelos incentivos que o senhor sempre me dispensou, escrevi longo poema sobre Sete Cidades, em que canto:
Sete Cidades:
Sonho feito
de pedra
pedra feita
de sonho
sonho que se fez sonho
na concretude da pedra.”
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