segunda-feira, 19 de julho de 2010

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


O PESADELO

Elmar Carvalho

O pesadelo era repetitivo, medonho. Desde que sua consciência o vinha acusando com muita insistência de pecados que julgava esquecidos, o horror dos letargos se instalou em sua vida. Os porres cada vez mais homéricos provavelmente contribuíam para que o sonho pavoroso retornasse cada noite, sempre o mesmo, como o repeteco de um dvd enguiçado. Relutava em dormir, com medo de seu imutável pesadelo. Lia até não aguentar mais. Contudo, não desejava usar soníferos, mesmo porque sabia que em determinado ponto os comprimidos já não fariam efeito. Confessou ao velho vigário todos os seus pecados, principalmente os que mais o incomodavam; cumpriu penitência; fez e pagou promessa ao santo de sua devoção, mas foi tudo inútil, o pesadelo continuava implacável, com rigorosa assiduidade. Mudou seus hábitos. Passou a jantar cedo, pois lhe falaram que estômago cheio poderia favorecer os sonhos maus. Trocou a macia e fresca rede, à qual era fiel há muitos anos, pela cama de solteiro, pouco usada; porém essa providência resultou infrutífera. Morava sozinho, em apertada quitinete, compatível com a sua baixa remuneração de barnabé municipal. Começou a ler, preparando-se para enfrentar mais um angustiante pesadelo. Insistia em continuar a leitura, mas vinham rápidos cochilos. Algumas vezes, o livro chegava a cair. Levantou-se, foi até a pia do pequeno banheiro e molhou a cabeça na tentativa, que sabia vã, de se manter acordado. Enfim, viu que não havia outro jeito; guardou o livro, se cobriu com o lençol, e se preparou para enfrentar o sonho maldito, que não lhe dava trégua. Naquela noite, como nas demais das últimas semanas, o pesadelo aconteceu. Era como se uma força diabólica o esmagasse. Parecia que um súcubo lhe tolhia a vontade e os movimentos, sufocando sua força vital. Tudo era confuso. Parecia imerso no caos do nada, ou do quase nada, porque ainda se sentia quase vivo, ou melhor, um morto-vivo. Demônios pareciam arrastá-lo para regiões e trevas infernais. Sabia que estava quase morto, mas desejava ansiosamente acordar. Desesperado, tentava mexer os membros, os dedos, mas nada lhe obedecia. Continuava inerte, como se fosse um enterrado vivo, mas sem nenhum espaço para se mover. Forças malévolas, satânicas, pareciam envolvê-lo, subjugá-lo. Nas vezes anteriores, depois de tentar, sem sucesso, com sua exclusiva força de vontade, escapar dos demônios que o mantinham imóvel, fixava o pensamento em Deus. Orava com sofreguidão e com Fé. Só assim conseguia ressurgir de sua quase morte, da inércia total que o dominava. Porém, daquela vez sentiu que a sua dominação era mais forte; que as forças satânicas pareciam mais fortes; que o tempo de sua catalepsia fora mais demorado. Mesmo a sua oração fervorosa, que sempre o salvava, dessa vez não surtira efeito. Seu terror não tinha limites, ante a perspectiva de que os espíritos malignos ganhassem a luta, e o arrastassem para a perdição eterna. Mas, repentinamente, quando já abandonava todas as esperanças, conseguiu acordar. Foi ao banheiro lavar o rosto empastado de um suor frio, pegajoso. Sequer acendeu a lâmpada. Não precisava. Conseguia chegar ao lavabo na mais profunda escuridão. Quando sentou na cama para deitar-se, sentiu que havia tocado um corpo. Instantaneamente levantou-se, sob o impacto do susto. Acendeu a lâmpada e olhou. Viu sobre a cama, todo retorcido, o seu próprio corpo. Então compreendeu que, sob o medo atroz de seu pesadelo, havia morrido. Ante o horror de estar morto no sonho, morrera de fato.

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