Meu pai assumiu seu cargo na diretoria regional do antigo Departamento de Correios e Telégrafos – DCT-DR-PI no povoado de Papagaio, hoje a florescente cidade de Francinópolis, em 1958. Levou a família, que então era constituída por ele, Miguel, minha mãe, Rosália, e eu, com apenas dois anos de idade. Nessa localidade nasceu meu irmão João José. Residimos ali durante apenas um ano e meses, mas meus pais fizeram bons e inesquecíveis amigos, que durante várias décadas não mais reviram. Meu pai, de temperamento emotivo e saudosista, sempre recordava esses amigos e sempre alimentou o desejo de algum dia revê-los. Falava da boa acolhida que teve ao chegar para morar na povoação e de fatos pitorescos dessa época. De maneira especial recordava do senhor Joel, seu colega do antigo DCT, que o acolhera de maneira fidalga e fraterna, e que dera um filho para ser afilhado de meus pais.
Muitas décadas depois, já morando e trabalhando em Teresina, fui até a biblioteca do Ministério da Fazenda, em cujo prédio estava instalada a repartição em que eu trabalhava, para ter alguns minutos de conversa com o chefe dessa biblioteca, meu amigo Astrogildo Soares, professor de português e literatura da rede estadual, que costumava chamar de Astro-Rei, por causa de seu nome e de sua sapiência. Conversava com ele uma moça, que ele chamava de Do Ó. Lembrei-me de que meus pais diziam que o senhor Joel tinha uma filha, minha contemporânea, de nome Maria do Ó. Sabedor de que meu pai há muito desejava reencontrar o seu amigo e compadre Joel, e acreditando num excepcional golpe de sorte, perguntei a essa moça se ela, porventura, seria filha desse homem. Respondeu-me que sim, e que ele trabalhava na Procuradoria Regional da República, instalada no próprio edifício onde nos encontrávamos. Agradeci a Deus tamanha coincidência, pois nunca antes vira Do Ó, em Teresina, e não mais a revi posteriormente. Tratei logo de fazer contato com o senhor Joel, e promovi o seu reencontro com meu pai, que se deu em minha casa, em ambiente de muita emoção e de furtivas e disfarçadas lágrimas. Depois, ambos voltaram a se reencontrar, em visitas recíprocas. Desde esse primeiro encontro, tornou-se mais forte ainda o desejo de meu pai de rever o velho Papagaio ou a nova Francinópolis, desejo que foi reforçado pela visita da professora Glória, da UFPI, que reavivou a já muito viva saudade de meus pais.
Acertamos, meu pai, meu irmão César e este cronista, que iríamos visitar Francinópolis, numa viagem no tempo e no espaço, já que destinada a matar (ou aumentar) a saudade de meus pais.
Num belo dia o telefone tocou. Era o meu irmão César convidando-me para a viagem a Francinópolis, que se daria no sábado seguinte (04.08.07), logo cedo da manhã. Meus pais vieram de Campo Maior e dormiram em minha casa, para que a viagem não sofresse atraso. Seguimos por rodovia federal até Elesbão Veloso, de onde continuamos por uma estrada estadual, que, um pouco depois, deixa de ser asfaltada, para ser apenas recoberta de piçarra, com as suas indefectíveis e características “costelas de vaca”.
Nesta época do ano a paisagem do semi-árido perde a cor verde e adquire um tom amarronzado, de poucas folhas, de galhos esquálidos, como dedos longos, raquíticos e desesperados. Esparsamente, rebenta o verdor espinhento dos mandacarus e xiquexiques da caatinga, e o verde extravagante e brilhoso dos juazeiros, que formam um belo e inusitado contraste. As poucas folhas pairam inertes no sertão esturricado, exceto quando perpassa a escaldante canícula nordestina, que não traz o frescor da brisa. Com efeito, mais parece um bafo quente e desconfortável, que não afaga a pele, ou a baforada fumegante de uma fornalha.
Subitamente, deparamo-nos com verdadeira alameda de faveiras e casas simples. Pensamos tratar-se de um povoado. Na verdade era um subúrbio da cidade de Francinópolis. Em seguida a alameda de faveiras transformou-se numa avenida repleta de tenras palmeiras imperiais, que haverão de crescer frondosas, para encher de graça e beleza a pequena e graciosa urbe. Logo encontramos o morro, em cujo cimo ficava a antiga ermida do povoado. A igrejinha, segundo meus pais, parece continuar sendo a mesma. Entretanto, o morro, que na época de meus pais era apenas terra nua, despido de belezas artificiais, ganhou um belo paisagismo, com floridos e verdejantes jardins, com elegantes e singelos passeios e escadarias. No alto, além da bucólica ermida, encontra-se agora um Cristo Redentor, de braços bem abertos, para bem receber os visitantes.
Aos pés da colina, vimos o desativado hotel da senhora Maria José, que se revelou uma anfitriã simpática e bem informada, a esclarecer meu pai sobre o que ele desejava saber a respeito dos amigos e conhecidos. Muitos residiam agora em outras paragens e outros já habitavam o campo-santo de Francinópolis. Por feliz coincidência, na pousada se encontrava a passeio, posto que ele já morasse em outra cidade, o senhor José Nogueira, que fora o alfaiate do velho povoado de Papagaio, numa época em que não havia roupa feita, em que as lojas apenas expunham nos tabuleiros e prateleiras o colorido festivo dos tecidos, tais como chita, morim, popelina, mescla, brim, opala, riscado, seda, em meio à quase uniformização dos cáquis e linho. Meu pai mesmo teve várias roupas cortadas e costuradas por esse mestre da tesoura e da agulha.
Percorremos os passeios e as escadarias do morro. Meus pais foram fazer suas preces na pequenina e simpática igreja, que costumavam freqüentar na juventude e no início de sua vida conjugal, que já vai além das bodas de ouro. Andamos pelas ruas e logradouros, já modificados pelo tempo e pelo progresso. Era a busca do tempo perdido, do tempo passado, de que nos falam os romances de Proust, que sempre esperamos reconquistar, embora em vão.
Essa viagem saudosista até me fez recordar o impecável conto, verdadeira obra-prima, Viagem aos Seios de Duília, de Aníbal Machado, em que um personagem, burocrata exemplar em sua assiduidade e disciplina, mas que, após a sua aposentadoria, quis reencontrar a sua longínqua aldeia, perdida nos confins do passado, e a mulher bela e jovem, de seios esculturais e exuberantes, que amara em sua juventude distante. Partiu nessa busca inglória. A aldeia já não parecia a mesma e a mulher se transformara numa velha bruaca, de boca murcha e desdentada, de seios flácidos e pensos.
Entretanto, apesar das mudanças de que já falei, e dos amigos perdidos, através da morte ou dos endereços longínquos, incertos ou não sabidos, a nossa viagem foi vitoriosa. Meu pai pôde rever o seu amigo da juventude, Edmar Soares da Silva – filho de Zeca Soares e Francisca (Vidinha), irmão de Odete, Gracinha, Celecinda e Glória – que veio a ser o terceiro prefeito de Francinópolis. Minha mãe e meu pai reviram e abraçaram a senhora Felícia, vizinha e amiga dos seus primeiros anos de casamento. Na frente da casa dessa senhora existe, hoje, uma bela praça, construída no lugar onde existira o pequeno mercado público do povoado. Ali perto ainda existe a casa da saudosa Maria Lameu, em cuja frente havia uma frondosa figueira. Em lugar da figueira, vimos uma exuberante e florida munguba, também chamada mamorana. Minha mãe, com muita emoção e saudade, recorda desse tempo, e conta que na porta de sua casa pegava em meu pintinho de criança de dois anos, e perguntava onde ele estava. Conta que eu fechava os olhos, esticava o braço, alongava o indicador para a figueira de Maria Lameu, como se estivesse apontando para muito além, com muita vivacidade, demorando na sílaba tônica da primeira palavra, e dizia, com a graça inocente da infância:
– Voooooou!... Foi lá pra figueira da Lamilame...
Perto da casa onde moramos, eu era a única criança pequena. Segundo minha mãe, e toda mãe é coruja quando fala dos filhos (e, portanto, é sempre suspeita), eu era um infante saudável, bonito e esperto, e por isso fui o xodó e brinquedo vivo das mocinhas da vizinhança.
Fomos até o antigo cemitério, onde meu pai rezou pelos amigos mortos. O campo-santo fica num terreno escarpado, pedregoso e duro, que deve dar muito trabalho ao coveiro, quando da abertura das covas. O finado, por mais leve de corpo e bondoso que tenha sido, deve pesar um pouco na hora da subida da encosta do morro, em que ficam encarapitadas as sepulturas. Entre estas, no mais alto do outeiro, havia uma, encravada numa espécie de panteão familiar, que ostentava o seguinte epitáfio: “*12.05.1883 - +1934. Aqui descança (sic) os restos mortais de seu Totonho D’Águas Bela (sic) – Senhor de Engenho”. A singela inscrição, mesmo com os seus erros de português, deixa entrever certo resquício de grandeza, tanto no epíteto “D’Águas Belas”, que lembra uma espécie de alcunha nobiliárquica, assim como na expressão “Senhor de Engenho”, como outrora se usava Senhor de Escravos. De qualquer sorte, a igualdade não existe nem mesmo no Cemitério da Igualdade, pois no meio de covas rasas e de túmulos humildes campeiam túmulos suntuosos, verdadeiros mausoléus. A lápide me trouxe à memória os seguintes versos do poeta H. Dobal: “Olegário Alves, / alma cheia de vaidade/ até a morte, / badalava sua grandeza / com restos de um passado / que nunca fora grande.” Nessa época, pouco verde havia. Quase que a única exceção era um imenso mandacaru, que ali parecia simbolizar a esperança de uma nova vida, de uma continuação da vida, e uma pequenina planta que teimou em rebentar das entranhas das ruínas de um túmulo, como sinal da vitória da vida através do portal da morte.
Tiramos muitas fotografias das pessoas, das ruas, das praças e dos logradouros, quase desnecessariamente, porque as pessoas, as ruas, as praças e outros sítios já estavam indelevelmente gravados em nossa memória e em nossa alma, como uma relíquia que se guarda em escrínio imaterial e indestrutível.
Te. 16.08.2007
porticipa do meu blog é o PORTAL FRANCINOPOLITANO.OBRIGADO..
ResponderExcluirObrigado pelo convite. Autorizo-o a publicar qualquer matéria de minha autoria, publicada na internet, especialmente aquelas em que falei de nossa Francinópolis.
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